sábado, 10 de julho de 2010

Lucilene Machado (A Morte Nossa de Cada Dia)


Acordo para mais um dia. Tudo igual. Cruzo com as mesmas pessoas, com os mesmos carros... passo pelas mesmas ruas com a mesma pressa e, sem reparar muito, vou atravessando o tempo sem criar espaço para desenhar a vida.

Cansada, entrego-me ao abraço da noite como se fosse uma despedida. Cada dia morro um pouco. Paro diante do espelho como uma última atitude diária. Escovo vagarosamente os fios de cabelo na tentativa de alinhar as diferenças. Foram cortados de forma assimétrica. Corte de navalha, fio por fio. Ficaram tão diferentes uns dos outros. Escovo também os anos que a navalha do tempo não corta. Eles vão se ondulando pelo corpo e fazendo caracóis na alma. A idade é um arreio que ninguém desata. Deixa o coração sôfrego pelas batidas futuras.

Diante do espelho não ouso sonhos grandes. Meu olhar interrogativo parece exigir decisões para as quais não me sinto preparada. Vou ficando distante. Há silêncios pesando sobre minhas pálpebras. De repente, vejo uma tarde dentro dos meus olhos. Uma tarde verde que não aconteceu. Quantas horas perdidas modelando uma esperança? A infinita ternura da minha insônia. Os olhos semicerrados vigiam o tempo sonhando surpresas. Talvez nunca virão. Os desenganos vão matando o desejo. As emoções vão ficando mecânicas. Perdas irreparáveis. Arrependo-me por não ter amado mais quando podia. O viver intenso me escapou. Nunca percebo se estou amando. Só quando a saudade se aproxima penetrando além da superfície, é que constato a veracidade da situação. Aí nego. Nego-me veementemente. Já até desenvolvi uma habilidade em me auto-enganar. É uma espécie de suicídio. Vai-se matando a própria afetividade, pouco a pouco para não doer tanto e depois, supõe-se, a vida volta a ser bela.

Há muito cansaço no ar. Um cansaço que vem dos edifícios vizinhos abrindo clareiras pela cidade adormecida. É a triste paz da noite sobre as ruas. Há vozes caladas sobre o asfalto. Flores caídas sobre as calçadas. Cristais quebrados de um azul de lua. É doloroso morrer sozinha, sobretudo em setembro quando as flores oferecem perfume ao vento. Mas a vida é feita de morte. Pequenas mortes que vão matando a inocência e cobrindo de luto as tardes verdes.

Mas amanhã quando a aurora voltar, será tudo igual. Todos dispersos pelo mundo, enfrentando a selva, o imprevisto, o grito. Amanhã seremos todos selvagens. Embora de uma mesma espécie, cada um em sua jaula. Cada um vítima de uma serpente que devora o lirismo do dia-a-dia. Amanhã seremos dirigidos pela insígnia da vaidade e das ausências. O hoje será apenas uma imagem de um álbum de família empoeirado. E eu continuarei representando aquela que não sou enquanto morre um pouco aquela que sou.

Fontes:
Academia Sul-Mato-Grossense de Letras
Imagem = http://diariovirtualdeumlouco.blogspot.com

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