terça-feira, 22 de janeiro de 2013

André Carneiro (O Peregrino das Dimensões Simbólicas em Xeque)



O escritor Luiz Bras entrevista o romancista e poeta André Carneiro, um dos precursores da da literatura de ficção científica no Brasil e que, há mais de uma década, está radicado em Curitiba 


 Os recém-nascidos são na verdade viajantes interdimensionais. É o que afirmam certas doutrinas místicas. Se verdadeiras ou falsas, não importa. Na obra multidimensional de André Carneiro elas fazem bastante sentido. André desembarcou neste planeta há noventa anos. Mais precisamente em 9 de maio de 1922. Veio em missão de paz. Desembarcou em Atibaia, no interior paulista, morou muitos anos em São Paulo e vive em Curitiba desde 1999.

 Como ocorre com todos os artistas e escritores deste mundo, o que mais fascinou o jovem visitante de outra dimensão, logo que aqui chegou, foi o drama humano. Para melhor entender esse drama, André rapidamente começou a escrever, fotografar, pintar e filmar, virando do avesso todas as pessoas que encontrava pela frente. A matéria-prima de sua arte e de sua literatura é o ser humano em estado sólido, líquido, gasoso e simbólico.

 “André Carneiro, antes de tudo, é um poeta”, escreveu o jornalista Dorva Rezende no prefácio da coletânea Confissões do inexplicável, de 2007. A substância poética, sempre radioativa, contamina todo o trabalho criativo de André, em prosa, verso ou imagem. Ângulo e face (1949), seu livro de estreia, é uma reunião de poemas sinuosos e comoventes, numa palavra: transfiguradores. Em seguida vieram Diário da nave perdida (1963), de contos, e Espaçopleno (1963), novamente de poemas, elogiado por Sérgio Milliet e Wilson Martins, entre outros.

 Os últimos cem anos foram tão fabulosos, que às vezes é difícil acreditar que realmente existiram. No começo do século XX não havia o plástico, a televisão, o avião, o antibiótico… No final do século, duas dúzias de pessoas já haviam visitado a lua. Por um lado, a arte e a literatura de André Carneiro examinam o presente e o futuro, mas, por outro, são uma tentativa de provar que os últimos cem anos não foram um sonho louco. Eles realmente existiram. Se não existiram, precisam ser inventados, e André já inventou uma boa parte.

 Nem mesmo a acentuada dificuldade de visão impede André de ler e escrever cada vez melhor, provando que a visão interior, mental, é muito mais potente do que a meramente orgânica.

Ao longo de sua vida criativa, você se expressou por meio da poesia, da prosa, da fotografia, da pintura, da colagem e do cinema. Sabendo que as artes visuais e a literatura estimulam nossa sensibilidade de modos diferentes, você procurou criar conexões entre elas? Ou preferiu trabalhar com as particularidades de cada meio de expressão?

 A sensibilidade e a visão crítica do entrevistador podem mostrar um retrato representativo do entrevistado. Quando criei as obras de arte e de literatura aqui citadas, sempre vivi a emoção por elas provocada. No momento da criação, não havia relação com quaisquer de minhas outras realizações. Entretanto, escrevendo tantos roteiros de cinema, senti a parecença de processos entre a descrição das imagens de cinema e as dos contos. Um bom crítico ajuda o autor a desvendar os processos da sua criação. Admito que sua proposição é correta, todas as minhas atividades têm um inegável parentesco intrínseco entre elas.

Sabemos que o vínculo afetivo entre o criador e sua obra é algo capaz de resistir a qualquer tentativa de autoanálise fria e objetiva. Mas, se você fosse convidado a fazer um balanço, o mais imparcial possível, de sua longa produção criativa, quais obras você salvaria e quais descartaria?

 Terrível pergunta que nunca me fizeram. Cheguei a sentir-me com duas asas e dois olhos de coruja, pensando: todos os meus filhos são tão bonitos... De toda a minha obra publicada, não sou capaz de separar uma que eu rejeite. Mesmo os contos antigos, publicados no meu jornal literário Tentativa, leio hoje com surpresa e nenhuma resistência crítica. Confio essa tarefa aos críticos.

 Você sobreviveu a duas ditaduras: a de Getúlio Vargas, na época do jornal Tentativa, e a dos militares que derrubaram o governo de João Goulart. Então, em 1985, a opressão e a censura foram substituídas pela liberdade e pela corrupção: Fernando Collor de Mello, escândalo dos anões do orçamento, escândalo do mensalão, caso Renan Calheiros, escândalo dos Correios etc. A espécie humana ainda tem jeito ou é um caso perdido?

 Todas as vezes que a espécie humana me causou grandes decepções, sempre me consolei com a máquina do tempo: se olharmos a História em uma visão panorâmica, é inevitável descobrirmos que agora, com todas as imperfeições do mundo contemporâneo, podemos encontrar nítidas melhoras. A horrorosa escravidão explícita de um ser humano, imposta por outro, está eliminada oficialmente. As leis trabalhistas em todo o mundo têm sido paulatinamente melhoradas. Eu ainda acredito no ser humano. Acredito até que a ciência chegará ao ponto de uma mutação que nos garanta um DNA mais favorecido.

No final do ano passado, numa votação informal promovida pelo blogue Cobra Norato, seu conto “A escuridão”, de 1963, foi eleito o melhor conto brasileiro de ficção científica. Na opinião dos leitores que conhecem bem a literatura brasileira, “A escuridão” merecia figurar em qualquer antologia do tipo Os cem melhores contos brasileiros do século 20, organizada por Ítalo Moriconi. Em sua opinião, o que está faltando para que nosso establishment perca o notório preconceito contra a ficção científica?

 Agradeço pela sua colocação. Aliás, talvez uma publicação com o mesmo peso, a maior editora do mundo, a G.P. Putnam’s Sons, em 1973 publicou uma antologia dos melhores contos mundiais daquele ano e o único representante brasileiro foi o meu “A escuridão”, traduzido para o inglês por Leo Barrow. É doloroso admitir, mas o establishment brasileiro segue o mesmo rumo das estatísticas da nossa ignorância literária em geral. Talvez por isso Fernando Henrique Cardoso tenha dito que somos um país caipira. Acrescente-se o tolo preconceito contra o gênero ficção científica, que os mal informados julgam pelos filmes B e pelas histórias em quadrinhos americanas, que o banalizam utilizando apenas temas como alienígenas, monstros e super-heróis.

 O desejo e o erotismo são a matriz de suas principais obras literárias. Estou pensando nos romances Piscina livre (1980) e Amorquia (1991), e na maioria dos contos de A máquina de Hyerônimus (1997), por exemplo. Em sua opinião, a chave de nossa transcendência não está na razão cartesiana, mas nos delírios do corpo sensível?

 Todos os delírios do erotismo e do corpo sensível, como você poeticamente afirmou, exigiriam um livro que fosse metade do entrevistador, metade do entrevistado. Nelson Rodrigues captou bem esse clima na sua dramaturgia. A mistura complexa das nossas etnias formadoras seria um ponto de partida. Sempre me impressionou nos Estados Unidos a diferença entre uma alegria ao estilo carioca, dos negros americanos quando reunidos em qualquer situação, contrastando com a sisudez dos brancos americanos, embora menos aguda que a dos britânicos.

Nelson Rodrigues é um dos teus dramaturgos prediletos? Qual a sua relação com o teatro? Você nunca se interessou em escrever também para o palco?

 Gosto muito de Nelson Rodrigues como retratista da realidade brasileira. Porém, prefiro peças mais arrojadas, como as de Arrabal, Sartre e Brecht. Escrevi uma vez uma peça que infelizmente não foi encenada. Chamava-se Azarada. A companhia que ia levá-la ao palco se dissolveu antes da estreia. E foi só essa experiência.

Muitos de seus personagens são publicitários ou ex-publicitários irritados com a profissão. Igual a outros escritores importantes, como Jamil Snege e Sebastião Nunes, você também trabalhou em agência de publicidade. Uns dizem que a publicidade também pode ser arte, outros dizem que isso é uma grande besteira…

 Acho impossível um bom publicitário que ignore a arte. É elogiável quando um comercial tem qualidades artísticas. Uma boa publicidade pode ser artística. É pena que nem sempre o produto tem as mesmas qualidades do anúncio. É pena também quando um bom artista gasta sua criatividade só na publicidade.

Outro de seus contos muito apreciado no Brasil e no exterior é “O homem que hipnotizava”, também de 1963, sobre um sujeito que aperfeiçoa a própria realidade por meio da auto-hipnose. Sobre esse assunto, a hipnose, você publicou dois livros teóricos. Em que circunstância aconteceu seu encontro com essa técnica de indução psicológica?

 O primeiro livro, O mundo misterioso do hipnotismo, foi publicado em 1963; o segundo, Manual de hipnose, em 1978. Descobertas e novidades cientificas sempre me fascinaram. A hipnose era algo revolucionário, mas pouco estudado no mundo e muito menos no Brasil. Comprei livros estrangeiros e cuidadosamente tentei com amigos algumas experiências de indução hipnótica. O sucesso que consegui rapidamente me impressionou e me motivou a seguir mais adiante. Naquele tempo eu estava mergulhado no estudo da psicologia e da psicanálise, e foi inevitável que eu utilizasse técnicas hipnóticas em alguns pacientes. À medida que minhas experiências avançavam em profundidade, eu me espantava que o assunto fosse ainda ignorado pela medicina brasileira. Escrevi os dois livros e posso dizer, através de uma só citação, que foram um grande sucesso. Carol Sonenreich, o grande cientista radicado no Brasil, classificou meus livros como os melhores até então publicados sobre o assunto. Acredito que pelo fato de eu ser escritor, minhas explicações técnicas são melhor absorvidas pelos leitores em meus contos. Tenho em meus arquivos um caso de processo criminal em que um indivíduo casado foi indiciado por ter usado a hipnose numa divisão de herança. Observei que, na literatura universal, a hipnose era explorada de maneira amadora, sem conhecimento científico. Me inspirou o fato de que a hipnose já estava sendo usada criminalmente na realidade, e usei então essa sugestão em textos ficcionais.

Amigos brincam que você é uma espécie de Leonardo da Vinci brasileiro. Além da produção artística e literária, seu apartamento está cheio de invenções, objetos e esculturas feitos de sucata…

 A pintura modernista foi para mim uma grande fascinação. De Chirico, Picasso, Pollock, não importa se abstratos ou concretos, todos que revolucionaram a visão do espectador, mostrando um mundo inventado pelo artista, me influenciaram. O uso do objeto tridimensional me permitia então experiências dentro da minha relatividade monetária. Comecei a explorar ferros-velhos por toda São Paulo, e quando visitei Manhattan foi como se descobrisse Shangri-la, nunca vi lixos tão ricos em toda espécie de objetos interessantes. Como herdei de meu pai uma loja de ferragens, sou até hoje um perito cortador de vidros usando diamante. Criei o que chamei de quadros dinâmicos, com diversos compartimentos de vidros com líquidos de cores variadas, além de mercúrio e outros materiais. Manuseado pelo espectador, podem-se formar milhares de combinações plásticas. Pesquisei também na escultura com materiais que, solidificados, pareciam cristais. E, em Murano, até no chão resgatei pedaços de cristais de cores variadas que fazem parte de esculturas minhas. Como sou muito jovem, ainda tenho intenção de dar vida a diversas criações.

E o que nos diz sobre as oficinas de criação literária? Você coordenou várias, numa época em que não havia muitas. Agora há centenas. Que benefícios uma atividade como essa costuma trazer aos participantes?

 Tenho a impressão que a minha oficina, iniciada com algumas outras na casa que foi do Mário de Andrade, foi uma das primeiras em São Paulo. Durante anos essas oficinas funcionaram com grande sucesso e eu fico espantado como uma realização tão pródiga na ampliação da nossa cultura não tenha sido ampliada ainda mais. Em Curitiba, coordeno uma oficina há muitos anos, eficientemente secretariada pelo escritor Mustafá Ali Kanso. A palavra oficina é extraordinariamente adequada a esta forma de cultura direta e prática. Contos ou poemas elaborados pelos oficinandos (não chamo de alunos, pois muitos já têm livros publicados) são analisados de um ponto de vista construtivo, com um toque final dado por mim. A crítica coletiva possibilita uma visão magnífica sobre o trabalho e infunde um conhecimento prático da técnica literária com mais eficiência do que qualquer outro método. Espero que continuem ampliando essa prática para que novos e excelentes autores surjam dessa iniciativa.

Antônio Abujamra, do programa Provocações (TV Cultura), termina seu programa de um jeito que eu gosto: ele olha para o entrevistado e diz: “Qual pergunta importante, na sua opinião, ficou faltando eu fazer?” No seu caso, André, qual pergunta ficou faltando eu fazer? Algo que você sempre julgou importante, mas nenhum entrevistador pensou em perguntar.

 Nenhuma. Você é um ótimo psicanalista, suas perguntas são aquelas que induzem à confissão das nossas verdades. Você foi gentil não pedindo detalhes do golpe militar. Eu não posso falar mesmo dele, perco a calma porque o assunto é sempre triste. Ainda bem que entre altos e baixos a nossa democracia tem melhorado visivelmente.

Fonte:
Revista Cândido n. 16 – nov 2012 – Curitiba

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