quarta-feira, 6 de julho de 2016

Franz Kafka (Comunidade)

Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa.

A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto.

Além do mais somos cinco e não queremos ser convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, posto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.

terça-feira, 5 de julho de 2016

J. B. Xavier (Poemas Avulsos)

ENIGMA  
Sou gaivota solta aos ventos do penedo,
Sou a folha que esvoaça em liberdade,
Sou o tronco que se ergue do arvoredo,
Sou o grito lancinante da saudade.

Sou a fímbria da floresta perfumada,
Sou regato que murmura cristalino,
Sou o sonho de uma noite enluarada,
Sou o brilho do sorriso do menino.

Sou poente do sol calmo que se esconde
Sou a brisa que encrespa as ondas do mar,
Sou pergunta que ninguém jamais responde

Sou promessa que de amor está repleta,
Sou enigma que está por decifrar,
Sou um canto de esperança - sou poeta!

A ÚLTIMA ROSA

Quero agora te abraçar, por um instante!
E ficar, assim, quieto nos teus braços,
E sentir teu respirar, nesses compassos
Desta música divina e alucinante!

Quero assim, permanecer nesse teu mundo
De sussurros de hinos e de magias...
De teus olhos vem a luz onde me inundo,
De tua voz vem a candura de alegrias...

Quero assim estar contigo quando um dia,
Nos chamar para o seu seio a eternidade.
Quem ficar não deve nunca sentir dor.

Quem ficar deve viver em alegria
E na rosa carregada de saudade
Ofertar à eternidade o grande amor!

BRINCANDO DE CAMÕES

Alma minha gentil que me alucina
Na partida tanto quanto na chegada,
Alma minha gentil, és minha sina,
Minha deusa, meu sol e minha amada!

Alma minha gentil, que me enlouquece,
Nos delírios do riso e do tormento,
Alma minha gentil, és minha prece,
O sonho de loucura em que te invento.

Alma minha gentil, onde me ofusco,
Neste espelho que o tempo não desgasta.
Alma minha gentil, és mil refrões,

Diamante do meu céu, onde te busco,
Na busca que é de todas a mais vasta:
O encontro entre os nossos corações!

O QUE APRENDI SOBRE A VIDA

Demorei mais que devia simplesmente,
Recorri ao sonho e às vezes, mesmo a dor
Para ver que é no caminho, unicamente
Que se encontram a alegria e o amor...

Procurei, sempre no fim, constantemente,
O jardim onde eu buscava a bela flor,
Sem saber que me esperava complacente
As carícias deste sol libertador...

Aprendi então que a vida é a viagem,
O sorriso que vem dela decorrente,
Não o ponto de chegada encantador.

Aprendi que a vida é um sopro, uma aragem,
A viver cada minuto do presente.
Aprendi a ver seu lado sedutor!

SAUDADE

...e mesmo sem te ver quero-te tanto
que sinto-te em mim, e tua voz no pranto
que escapa-me em torrentes de tristeza.
Antes que dúvida, és minha certeza...

Quero-te na amenidade do poente,
No sol do fim de tarde, reluzente,
Quando nasces em mim, como uma flor.
...e mesmo sem te ver, és meu amor...

Quero-te tanto, que em minh’alma trago
O gosto do vinho em que me embriago
Nesses lábios sedentos que ofereces.

Algum anjo há de ouvir as minhas preces,
E há de entender a solidão que canto
Por não te ver e por amar-te tanto...

SONETANDO

Ele começa no verso primeiro,
Passa ao segundo, de poesia farto,
E adentra afoito já pelo terceiro,
Enquanto escrevo mais um verso: o quarto!

E passo ao quinto, verso alvissareiro,
Depois ao sexto bem ligeiro eu parto,
E neste sétimo me atiro inteiro
Já que este oitavo contigo reparto.

São só catorze, e já estou no nono!
No verso dez não quero mais parar,
Pois sei que o onze vai tirar meu sono,

Mas vou ao doze, falta só um terceto...
Este não digo, pois dá muito azar
Décimo quarto: fim deste soneto!
-
ESPERANÇA

Na cadeira colocada na varanda
Deve haver uma revista ou um jornal.
Carinhosa, uma brisa sopra branda
Balançando as roupas postas no varal.

Ao redor desta varanda haverá hera,
Samambaias, muitas rosas, margaridas,
E um sorriso que faceiro reverbera,
Entre lírios e açucenas coloridas...

Sob o sol cantam alegres passarinhos;
Mais adiante, todo branco, está o portão
E um caminho que tortuoso corta a grama.

É por ele que virás com teus carinhos
E trarás a este sofrido coração
Nova vida só possível a quem ama...

TUDO O QUE RESTOU

Foi tudo o que restou, amada minha,
As veias latejando de saudade,
Um triste adeus à breve eternidade
E um tempo que em tristeza se avizinha.
 
E tudo o Tempo fez como convinha
Deixando o teu sorriso e a amenidade
Tornando-te uma simples brevidade
No eterno que por ti pensei que tinha.
 
Mas sigo, e meu caminho serpenteia
Por entre o vale escuro do meu mundo
Do qual tu sempre foste uma candeia.
 
E agora sem a vida que o sustinha
O sonho se reclina moribundo...
Eis tudo o que restou, amada minha ...

BRUMAS

Por entre as brumas tua imagem vaga
Como se nunca tu houveras ido,
E o tempo fere como louca adaga
O meu passado nunca acontecido...
 
E diluída o vento em ti apaga
Essa lembrança de um amor ferido
Enquanto um mar de lágrimas alaga
Nosso passado já quase esquecido.
 
E o doce beijo, leve como as plumas
Que assim deixaste nesses lábios meus
É o meu farol com que, por entre as brumas,
 
Sigo o compasso deste amargo fim.
No triste aceno deste amargo adeus
Enquanto as brumas te levam de mim...

ESQUECIMENTO
Tu te esqueceste que esqueci de te esquecer
Mas me lembrei de relembrar tua partida
E o esquecimento na lembrança tem poder
De relembrar que possuíste minha vida
 
E por lembrar-te não consigo compreender
Por que não posso me esquecer desta ferida
Que o esquecimento da lembrança vem trazer
Me relembrando que jazias esquecida.
 
E vou lembrando e te esquecendo enquanto sigo
Revigorando o esquecimento da lembrança
Enquanto lembro como era estar contigo.
 
Até que um dia eu me lembrei de ter-te aqui
E fui eu mesmo me esquecendo nesta dança
E me lembrando de esquecer que te esqueci...

ESPELHO DE MIM
Nas lutas infernais às quais me impinjo
Mergulho-me em oceanos de incoerências
Buscando a perdição das inocências
Às quais eu minto, engano, burlo e finjo!
 
Seguindo nessa estrada eu sempre atinjo
Os planos que tracei com paciência
E se erro vou pedindo por clemência
E logo uma mentira eu busco e cinjo...
 
Por isso sou a mais perfeita farsa,
Um plano divinal no qual eu peco,
Oceano de mentiras no qual seco
 
O sonho que em enganos se disfarça.
E qual falso cristal em linda barça,
Sou grito que ressoa e não faz eco.

ESTRELAS
À janela te saúda a luz da lua
Aspergindo-te com mil gotas de luz.
E encontrando-te ofegante, ainda nua
O luar em mil carícias te seduz...

Através dessa vidraça transparente,
Ele vai se aconchegando em teu entorno
Em carícias pelo teu corpo fremente,
Desenhando nos lençóis o teu contorno...

Surge então a Estrela D’Alva lentamente
No horizonte, onde nem consegues vê-la
E em teu corpo ela se banha, finalmente,

Tendo todo o teu calor para aquecê-la.
Suspirando ela se entrega totalmente:
É uma estrela enamorada de outra estrela...


J. B. Xavier (1953)

José Xavier Borges Júnior (ou JB Xavier, como é conhecido) nasceu na ilha de São Francisco do Sul, cidade litorânea situada ao norte do Estado de Santa Catarina, em 1953. Manifestou cedo sua habilidade para as letras, escrevendo seu primeiro romance "A Mansão das Pedras Negras", aos 15 anos. Radicou-se em São Paulo/SP.
    O ponto forte do autor é sua capacidade de construir personagens e enredos. Como palestrante da área motivacional, J.B.Xavier é conhecedor do comportamento humano, e usa esses conhecimentos para construir a estrutura psicológica de seus personagens, tornando-os consistentes, sólidos e convincentes.
    Conviveu com tribos Caigangues do Noroeste do Rio Grande Sul, vivenciando seu modo de vida. Desta experiência escreveu o que considera a sua maior obra poética: “Cunhaporã – uma história de amor", um poema-romance épico, composto de 271 estrofes e 1495 versos, como homenagem a Gonçalves Dias, em agradecimento por poema "I-JUCA PIRAMA"
    É empresário, fundador da Multi Premium Artigos Esportivos Ltda, uma empresa fabricante de premiações.
    Sua vivência internacional como empresário, lhe permite construir cenários exóticos cuja ambientação encanta o leitor.
    A característica mais marcante do autor: A refinada habilidade de construir ambientes, enredos e personagens apaixonantes, e o domínio magistral de sofisticadas técnicas narrativas, capazes de levar o leitor a um profundo mergulho nas histórias que cria.
    Tem publicações como "Caminhos", uma coletânea de 23 contos. (2003), e “Não Haverá Amanhã”, um monumental romance histórico ambientado no século XVII, com ilustrações do próprio autor (2011).
 
Fonte: 

A Presença Africana na Música Popular Brasileira (Parte IV, final)

A África distante, cada vez mais

A presença africana na música brasileira, pelo menos em referências expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via Jamaica, no carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas-enredo das escolas cariocas e paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros países do Caribe.

Mesmo com a explosão comercial da chamada salsa, a partir de Porto Rico e via Miami, na música afro-caribenha de hoje é raro um disco que não contenha pelo menos uma cantiga inspirada em temas da religiosidade africana e interpretada com fervor apaixonado. Tito Puente, Mongo Santamaria, Célia Cruz, Rubén Bladez e muitos outros são exemplos fortes, o mesmo não acontecendo no Brasil, pelo menos na música mais largamente consumida.

No Brasil, o samba, a partir da década de 1990, apesar da voga inicial de grupos cujos nomes, mas só os nomes, evocavam a ancestralidade africana (Raça Negra, Negritude Júnior, Suingue da Cor, Os Morenos etc.), entendemos que foi se transformando em um produto cada vez mais fútil e imediatista para se preocupar com etnicidade. E isto talvez por conta do conjunto de estratégias de desqualificação que ainda hoje sustentam as bases do racismo antinegro no Brasil. É esse racismo que, no nosso entender, vai cada vez mais separando coisas indissociáveis, como o samba e a macumba, a ginga e a mandinga, a música religiosa e a música profana, desafricanizando, enfim, a música popular brasileira. Ou “africanizando-a” só na aparência, ao sabor de modas globalizantes made in Jamaica ou Bronx.

Desafricanização, como sabemos, é o processo por meio do qual se tira ou procura tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que o identificam como de origem africana. À época do escravismo, a principal estratégia dos dominadores nas Américas era fazer com que os cativos esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e assumissem a de “negros”, marca de subalternidade. Isto para prevenir o banzo e o desejo de rebelião ou fuga, reações frequentes, posto que antagônicas.

O processo de desafricanização começava ainda no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes do embarque. Depois, vinha a adoção compulsória do nome cristão, seguido do sobrenome do dono o que representava, para o africano, verdadeira e trágica amputação. Então, vinham as distinções clássicas entre “da costa” e “crioulo”, entre “boçal” e “ladino”.

Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de desafricanização ainda em curso. Senão, vejamos. Quando a bossa-nova resolveu simplificar a complexa polirritmia do samba e restringir sua percussão ao estritamente necessário, não estaria embutido nesse gesto, tido apenas como estético, uma intenção desafricanizadora? E quando a indústria fonográfica procura modernizar os ritmos afro-nordestinos (de maracatu para mangue-beat, por exemplo), não estará querendo fazer deles menos “boçais” e mais “ladinos”, pela absorção de conteúdos do pop internacional?

Pois esse pop milionário, sem pátria e sem identidade palpável (mesmo quando pretende ser “étnico”), é exatamente aquela parte da música dos negros americanos que a indústria do entretenimento desafricanizou.

Fonte:
Portal da Cultura Afro-Brasileira

Artur Azevedo (A Conselho do Marido)

Estamos a bordo de um grande paquete da Messagéries Maritimes, em pleno Atlântico, entre os dois hemisférios. Dois passageiros, que embarcaram no Rio de Janeiro, um de quarenta e outro de vinte e cinco anos, conversam animadamente, sentados ambos nas suas cadeiras de bordo.

- Pois é como lhe digo, meu amiguinho! - dizia o passageiro de quarenta anos - o homem, todas as vezes que é provocado pela mulher, seja a mulher quem for, deve mostrar que é homem! Do contrário, arrisca-se a uma vingança! O caso da mulher de Putfar reproduz-se todos os dias!

- E se o marido for nosso amigo?

- Se o marido for nosso amigo, maior perigo corremos fazendo como José do Egito.

- O que você está dizendo é simplesmente horrível!

- Talvez, mas o que é preferível: ser amante da mulher de um amigo sem que este o saiba, ou passar aos olhos dele por amante dela sem o ser, em risco de pagar com a vida um crime que não praticou?

- Acha então que temos o direito sobre a mulher do próximo...?

- Desde que a mulher do próximo nos provoque. Se o próximo é nosso amigo, paciência! Não se casasse com uma mulher assim! Olhe, eu estou perfeitamente tranquilo a respeito da Mariquinhas! Trouxe-a comigo nesta viagem porque ela quis vir; se quisesse ficar no Rio de Janeiro teria ficado e eu estaria da mesma forma tranquilo.

- Mas o grande caso é que se um dia algum dos seus amigos...

- Desse susto não bebo água. Já um deles pretendeu conquistá-la... chegou a persegui-la... Ela foi obrigada a dizer-me para se ver livre dele... Dei um escândalo! Meti-lhe a bengala em plena Rua do Ouvidor!

Dizendo isto, o passageiro de quarenta anos fechou os olhos, e pouco depois deixava cair o livro que tinha na mão: dormia. Dormia, e aqueles sonos de bordo, antes do jantar, duravam pelo menos duas horas. O passageiro de vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava o seu camarote.

Bateu levemente à porta. Abriu-lhe uma linda mulher que se lançou nos seus braços. Era a Mariquinhas.

- Então? - perguntou ela - consultaste meu marido?

- Consultei...

- Que te disse ele?

- Aconselhou-me a que não fizesse como José do Egito. Amigos, amigos, mulheres à parte.

E o passageiro de vinte e cinco anos correu cautelosamente o ferrolho do camarote.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A Presença Africana na Música Popular Brasileira (Parte III)

As escolas de samba e os sambas-enredo

Com relação às escolas de samba cariocas – cujos terreiros (terreiros e não “quadras”, como hoje) até os anos de 1970 obedeciam a um regimento tácito semelhante ao dos barracões de candomblé, com acesso à roda permitido somente às mulheres, por exemplo –, veja-se que elas, hoje, são, ainda, um veículo em que a temática africana é recorrente. Muito embora seus enredos e sambas enfoquem a África por uma perspectiva meramente folclorizante.

O samba-enredo – esclareçamos – é uma modalidade de samba que consiste em letra e melodia criadas a partir do resumo do tema elaborado como enredo de uma escola de samba. Os primeiros sambas-enredo eram de livre criação: falavam da natureza, do próprio samba, da realidade dos sambistas. Com a oficialização dos concursos, na década de 1930, veio a exaltação dirigida de personagens e fatos históricos. Os enredos passaram a contar a história do ponto de vista da classe dominante, abordando os acontecimentos de forma nostálgica e ufanística. A reversão desse quadro só começou a vir em 1959, quando a escola de samba Acadêmicos do Salgueiro apresentou, com uma homenagem ao pintor francês Debret, e com grande efeito visual, o cotidiano dos negros no Brasil à época da colônia e do Império, o que motivou uma sequência de enredos sobre Palmares, Chica da Silva, Aleijadinho e Chico Rei, voltados para o continente africano. Mas, se a ingerência governamental já não era tão forte, pelo menos enquanto cerceamento da liberdade na criação dos temas, um outro tipo de interferência começava a nascer: a dos cenógrafos de formação erudita ou treinados no show-business, criadores desses enredos, os quais imprimiram ao carnaval das escolas a feição que ele hoje ostenta e que, direta ou indiretamente, selaram o destino dos sambas-enredo. Tanto que, no final do século XIX, o samba-enredo é um gênero em franca decadência. Em cerca de 60 anos de existência, no entanto, a modalidade mostrou sua força em dezenas de obras antológicas.

Entre os enredos apresentados pelas escolas de samba cariocas das várias divisões, a partir de 1948, muitos fazem referência mais direta à África, como, por exemplo: 
“Navio negreiro” (Vila Isabel, 1948, e Salgueiro, 1957), 
“Quilombo dos Palmares” (Salgueiro, 1960, Viradouro, 1970, e Unidos de Padre Miguel, 1984), 
“Chico Rei” (União de Vaz Lobo, 1960, Salgueiro, 1964, e Viradouro, 1967), 
“Ganga Zumba” (Unidos da Tijuca, 1972), 
“Valongo” (Salgueiro, 1976, e Unidos de Padre Miguel, 1988), 
“Galanga, o Chico Rei” (Unidos de Nilópolis, 1982), 
“Ganga Zumba, raiz da liberdade” (Engenho da Rainha, 1986). 

Isso sem falar em outros tantos temas como “Porque Oxalá usa ekodidé”, “Oju Obá”, “Logun, príncipe de Efan”, “O mito sagrado de Ifé”, “Oxumará, a lenda do arco-íris”, “Alafin Oyó”, “Príncipe Obá, rei dos descamisados”, “Ngola Djanga”, “De Daomé a São Luiz, a pureza mina-jeje”, “Império negro, um sonho de liberdade, “Kizomba, festa da raça”, “Preito de vassalagem a Olorum” etc.

De alguns desses títulos, selecionamos, como exemplo de abordagens, e sem maiores comentários, alguns trechos:

África... misteriosa África/ Magia, no rufar dos tambores se fez reinar/ Raiz que se alastrou por este imenso Brasil/ Terra dos santos que ela não viu... (“Os santos que a África não viu”, Grande Rio, 1996 – Mais Velho, Rocco Filho, Roxidiê, Helinho 107, Marquinhos e Pipoca); 

África encanto e magia/ Berço da sabedoria/ Razão do meu cantar/ Nasceu a liberdade a ferro e fogo/ A Mãe Negra abriu o jogo/ Fez o povo delirar... (“Quando o samba era samba”, Portela, 1996 – Wilson Cruz, Cláudio Russo, Zé Luiz); 

Vem a lua de Luanda/ Para iluminar a rua/ Nossa sede é nossa sede/ De que o apartheid se destrua...(“Kizomba, festa da raça”, Vila Isabel, 1988 – Rodolfo, Jonas e Luiz Carlos da Vila); 

Vivia no litoral africano/ Uma régia tribo ordeira/ Cujo rei era símbolo/ De uma terra laboriosa e hospitaleira/ Um dia essa tranquilidade sucumbiu/ Quando os portugueses invadiram/ capturando homens/ para fazê-los escravos no Brasil/ na viagem agonizante/ Houve gritos alucinantes/ Lamentos de dor/ Ô ô ô, adeus baobá, ô ô ô/ Ô ô ô, adeus meu Bengo, eu já vou... (“Chico Rei”, Salgueiro, 1965 – Geraldo Babão, Djalma Sabiá e Binha); 

Ilu Aiê, Ilu Aiê, odara! / Negro cantava na nação nagô/ Depois chorou lamento de senzala/ Tão longe estava de sua Ilu Aiê... (“Ilu Aiê, terra da vida”, Portela, 1972 – Cabana e Norival Reis); 

Bailou no ar/ O ecoar de um canto de alegria/ Três princesas africanas/ Na sagrada Bahia/ Ia Kalá, Iá Adetá, Iá Nassó/ Cantaram assim a tradição nagô/ Olorum, senhor do infinito/ Ordena que Obatalá/ faça a criação do mundo/ ele partir, despreando bará/ E no caminho adormecendo/ Se perdeu/ Odudua, a divina senhora chegou... (“A criação do mundo segundo a tradição nagô”, Beija-Flor, 1978 – Neguinho da Beija-Flor, Mazinho e Gilson); 

Conta a lenda que a deusa Oiá/ Foi aconselhar Ifá/ A buscar a cura em Sabadã/ Pra Obaluaiê se levantar... (“O bailar dos ventos, relampejou mas não choveu”, Salgueiro, 1980 – Ala dos Compositores); 

Lá da África distante/ Trouxeram o misticismo da magia/ maçons e mestres alufás/ Usavam estratégia e ousadia... (“Salamaleikun, a epopéia dos insubmissos malês”, Unidos da Tijuca, 1984 – Carlinhos Melodia, Jorge Moreira e Nogueirinha); 

Esta negra caprichosa/ Convidou o rei da Costa do Marfim/ E o recebeu de forma suntuosa/ A festa parecia não ter fim... (“O rei da Costa do Marfim visita Xica da Silva em Diamantina”, Imperatriz, 1983 – Matias de Freitas, Carlinhos Boemia e Nelson Lima); 

Lua alta/ Som contante/ Ressoam os atabaques/ lembrando a África distante... (“Misticismo da África ao Brasil”, Império da Tijuca, 1971 – Marinho da Muda).

Sobre a predominância, nesses sambas, de temas ligados ao universo iorubano, observe-se que isso ocorre pela maior visibilidade que essa matriz tem no Brasil, notadamente através da Bahia. A Bahia, graças principalmente à sua capital, é internacionalmente conhecida pela riqueza de suas tradições africanas, apropriadas como verdadeiros símbolos nacionais brasileiros. Segundo algumas interpretações, a visualização desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica, em Salvador e no Recôncavo Baiano, de diversas “nações” africanas organizadas, e muitas vezes adversárias, cada uma ciosa de sua identidade étnica. E isto teria feito com que, lá, no combate ao racismo, os afrodescendentes se destacassem mais fortemente através da afirmação de suas expressões culturais específicas do que através da luta política, como em São Paulo, por exemplo. Entretanto, veja-se que personagens como Chico Rei, Ganga Zumba, Zumbi e Rainha Jinga, pertencentes ao universo banto, são também bastante frequentes nos enredos que relacionamos.

continua...

Fonte:
Portal da Cultura Afro-Brasileira

Franz Kafka (A Ponte)

Eu era rígido e frio, eu era uma ponte; estendido sobre um precipício eu estava. Aquém estavam as pontas dos pés, além, as mãos, encravadas; no lodo quebradiço mordi, firmando-me. As pontas da minha casaca ondeavam aos meus lados. No fundo rumorejava o gelado arroio das trutas. Nenhum turista se extraviava até estas alturas intransitáveis, a ponte não figurava ainda nos mapas. Assim jazia eu e esperava; devia esperar. Nenhuma ponte que tenha sido construída alguma vez, pode deixar de ser ponte sem destruir-me. Foi certa vez, para o entardecer – se foi o primeiro, se foi o milésimo, não o sei – meus pensamentos andavam sempre confusos, giravam, sempre em círculo. Para o entardecer, no verão, obscuramente murmurava o arroio, quando ouvi o passo de um homem.

A mim, a mim. Estira-te, ponte, coloca-te em posição, viga órfã de balaústres, sustém aquele que te foi confiado. Nivela imperceptivelmente a incerteza de seu passo, mas se cambaleia, dá-te a conhecer e, como um deus da montanha, atira-o à terra firme. Veio, golpeou-me com a ponta férrea de seu bastão, depois ergueu com ela as pontas de minha casaca e arrumou-as sobre mim. Com a ponta andou entre meu cabelo emaranhado e a deixou longo tempo ali dentro, olhando provavelmente com olhos selvagens ao seu redor. Mas então – quando eu sonhava atrás dele sobre montanhas e vales – saltou, caindo com ambos os pés na metade de meu corpo. Estremeci-me em meio da dor selvagem, ignorante de tudo o mais.

Quem era? Uma criança? Um sonho? Um assaltante de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E voltei-me para vê-lo. A ponta de volta! Não me voltara ainda, e já me precipitava, precipitava-me e já estava dilacerado e varado nos pontiagudos calhaus que sempre me tinham olhado tão aprazilvelmente da água veloz.

domingo, 3 de julho de 2016

Thalma Tavares (Poemas Avulsos)



O PRÍNCIPE

Dizem que ele nasceu em noite constelada
enquanto um anjo bom sua lira tangia.
Por isso é que se fez senhor da madrugada
e parceiro fiel de gaia confraria.

Soltando a inspiração em noites de boemia,
a Via Láctea fitou com alma extasiada
e tristonho cantou, banhado em nostalgia,
o amor que não viveu, a vida descuidada.

Foi poeta maior, conversou com estrelas,
exortou-nos a amar para, enfim, entendê-las…
E tudo o que mais fez deu-lhe fama e destaque.

Tinha mesmo de ser um bardo em seu destino,
que traria por nome um verso alexandrino:
Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac.
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 O ANJO E O FAUNO

Por que tenho de ser de dois extremos feito?…
De um extremo, o melhor, vem a luz que me eleva.
Mas se às vezes sou luz, outras vezes sou treva,
que me impede enxergar o que é certo e direito.

Do outro extremo, o pior, eu direi contrafeito
que há um fauno viril que à luxúria me leva,
contra o qual, com razão, a razão se subleva
e me faz explodir a revolta no peito.

Quantas vezes me ergui do meu lado mais nobre
como quem, com a luz, de pureza se cobre
e a seguir, sem razão, deixa tudo sombrio.

Entre um anjo e um fauno eu passo a vida assim
a suplicar aos céus que afugentem de mim
o lascivo animal que anda sempre no cio.
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A UM JOVEM SUICIDA

Pela porta entreaberta o velho pai assoma.
Olha triste, em silêncio, a família e a casa.
E em soluços explode a dor que ele não doma,
o mal contido pranto, a lágrima que abrasa.

A todos, de um só golpe, o sofrimento arrasa.
Inconsolável mágoa a casa inteira toma.
Parece que a tristeza, enfim, deitou sua asa
sobre um lar onde a paz era único idioma.

Tempos depois passou a dor e o desconforto.
Mas do pai, que um dia abraçou o filho morto,
como eterno castigo a dor não se apartou.

Ficou-lhe na lembrança – e pela vida inteira -
a débil voz do filho e a queixa derradeira:
– Estou morrendo, pai!… A droga me matou!
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AMOR EM DOIS TEMPOS

Rompendo a neblina que embaça o passado,
o sol em minha alma desperta a saudade
e eu volto contente à feliz liberdade,
ao álacre jogo do tempo encantado,

do idílio inocente, do beijo apressado
temendo os olhares do pai da beldade.
Depois uma flor do gentil namorado
no peito da amada era a felicidade!

Não sei em que ponto perdeu-se o lirismo
do amor que os “ficantes”, em seu modernismo,
mataram o encanto e a pureza ideal.

E enquanto eles “ficam”, ao som da balada,
o amor vai perdendo a feição encantada,
mudando-se em coisa sem graça e banal.
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UM CASO APENAS

Quando ouvi teu adeus cruzando minha porta,
em meu peito senti se esvair minha crença,
e vi, contendo a dor, minha esperança morta
na frieza letal de tua indiferença.

Em minha solidão um sonho me conforta:
ver-te um dia chegar e me pedir licença
para entrar nesta casa, e pela mesma porta
de onde te vi partir sem amor, sem detença.

Tudo passa e esta vida é lição permanente.
E eu aprendi que amar não é viver somente
de passada ilusão que no tempo se escoa.

E daqui desta porta eu te digo, em verdade,
que agora para mim não és sequer saudade;
mas um caso banal, um incidente à-toa.