quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

José Feldman diplomado pela ONE em Sorocaba

No dia 19 de dezembro o presidente da Ordem Nacional dos Escritores diplomou e entregou mais sete colares a novos associados.
A cerimônia aconteceu no Gabinete de Leitura Sorocabano às 10h seguido de um almoço junto aos escritores e novos sócios. No encontro, a mesa foi composta pelo presidente do Gabinete, Cel. Res. PM João Oliveira Verlangieri, o diretor do núcleo da região, Douglas Lara, e o presidente da ONE, José Verdasca dos Santos.






Além da presença do ex-presidente da Fundec, Alexandre Latuf, os sete novos associados, entre os quais as mais jovens escritoras associadas, Maria Giulia Jacção Alves e Roberta Rodrigues Giudice, ambas tem nove anos e declamaram suas poesias publicadas na antologia Rodamundinho.


Entre os novos membros estavam o escritor, trovador e criador do blog literário Singrando Horizontes José Feldman, o jornalista e escritor Pedro Viegas, o editor Mylton Ottoni e o empresário Alexandre Latuf.

No momento da entrega também foram declamadas poesias pelos escritores Gonçalves Viana, Oswaldo Biancardi, Nicanor Filadelfo, João Verlangieri e pelo presidente da Ordem.

O presidente da Ordem acrescentou que anteriormente o Estatuto não previa a admissão de menores de idade em sua associação e que hoje esse termo foi reformulado. “A Diretoria Nacional tudo fará para apoiar, estimular e incentivar aos jovens a seguirem este rumo, propiciando bons exemplos a seus colegas de escola, vizinhos e parentes, nós encaramos este trabalho como uma missão, talvez a mais importante da nossa associação”, comenta Verdasca.

Durante a reunião, a TV COM registrou o momento das entregas dos colares, também entrevistou os novos associados e o presidente da Ordem que se emocionou dizendo sobre a importância dos jovens exercitarem a escrita e não somente a leitura. A TV COM (canal 7 da NET Sorocaba) exibiu partes das entrevistas e está preparando uma matéria especial sobre literatura em Sorocaba.

A ONE é uma sociedade civil com fins culturais e científicos, sem objetivos lucrativos e abrange todo o espaço da Lusofonia. Os principais objetivos da Ordem são preservar, promover, estimular, incentivar as atividades literárias de escritores, aconselhar e auxiliar os autores em suas obras e produções, bem como defender a atuação do escritor lusófono na livre manifestação de seu pensamento e em defesa de seus trabalhos e direitos.

Segundo José Feldman «a acolhida recebida em Sorocaba foi de tal maneira surpreendente, que me senti como se fosse uma reunião de família. Foi uma honra enorme receber este colar, mas o trabalho para a divulgação da nossa cultura tão vasta em solo brasileiro é árduo, é uma semente que estamos plantando, que espero um dia dar frutos. Enfatizo que o meu blog assim como tantos outros blogs e sites é uma das sementes que eu regarei todos os dias até se tornar uma árvore frondosa que envolva em seus ramos todos os estados do Brasil, as nações de lingua portuguesa e todas as outras nações do mundo. Agradeço ao escritor Douglas Lara e à jornalista Cintian Moraes, principalmente, entre tantos outros que colaboraram direta e indiretamente para esta conquista. Um agradecimento especial ao Cel. Verlangieri pela recepção em seu Gabinete de Leitura, e à ONE pelo reconhecimento de meus esforços ».
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Fontes:
http://www.cintianmoraes.com.br/ONE/index.htm
Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece

sábado, 20 de dezembro de 2008

17 a 29 de Dezembro (Intervalo)


No período de 17 a 29 de dezembro não haverá postagem.

Dia 30 retorno com novidades e maior quantidade de postagens, e novas valiosissimas colaborações.

Feliz Natal a todos!

José Feldman

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Artur da Tavola (1936 - 2008)


José Feldman (A Virada de Ano sem Artur da Tavola)

Meu amigo,

Este ano se encerra, e você não está mais junto de nós, e as saudades de você que nos deixou, não fará com que seja um final de ano feliz, pois a sua ausência será sentida e muito, muito mesma. Esta é uma distância que não permite que possamos te ver, nem te abraçar, e nem ouvir a sua voz.

E quando partiu, você deixou saudades, pois foram marcantes senão em minha vida, mas em tantas outras. Podemos ver seus retratos, escutar sua voz gravada em algum lugar, mas sempre aquele aperto no coração persiste, pois a saudade é muito forte.

Sentimos saudades de amigos que não vimos mais, e mais ainda, nos arrependemos ao saber que a distância nos separou, e nunca mais nos veremos mais.

Daí vem à mente tantos momentos que tivemos e sentimos saudades. Das pessoas que falamos e nunca mais, da infância que vivemos, de nossos pais quando vivos, ou bem mais jovens. Dos namoros, das risadas que sempre demos. Sentimos saudades do passado e dos muitos momentos que não vivemos e também daqueles que vivemos e nunca mais teremos novamente. Saudades dos sonhos que tivemos e que hoje, talvez nem lembremos mais quais são, mas que acreditávamos como algo mágico.

Sinto saudades de você que se foi, e nem mesmo tive oportunidade para lhe dizer adeus. Dos momentos que nos falamos, sejam de dor ou de alegria, foram momentos inesquecíveis.

Queria poder fazer uma trova, um haicai, uma poesia, alguma coisa bonita que perpetuasse para sempre a falta que faz, pois direta ou indiretamente, participou de minha vida.

Mas, mesmo que eu sinta a tristeza que há pela sua ausência, meu coração sorri, pois o seu espírito está mais vivo do que nunca em mim, e fostes um dos construtores de um santuário colossal, denominado Cultura. E, a cada tijolo que colocarmos nele, poderemos sentir sua presença, sua mão nos ajudando a coloca-lo no local exato.

Até mais tarde, meu amigo Artur, que este ano de 2009 seja a consolidação de seu sonho.
José Feldman

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(Artur da Tavola ) Vida Ensina

Se você pensa que sabe; que a vida lhe mostre o quanto não sabe.

Se você é muito simpático mas leva meia hora para concluir seu pensamento; que a vida lhe ensine que explica melhor o seu problema, aquele que começa pelo fim.

Se você faz exames demais; que a vida lhe ensine que doença é como esposa ciumenta: se procurar demais, acaba achando. Se você pensa que os outros é que sempre são isso ou aquilo; que a vida lhe ensine a olhar mais para você mesmo.

Se você pensa que viver é horizontal, unitário, definido, monobloco; que a vida lhe ensine a aceitar o conflito como condição lúdica da existência.Tanto mais lúdica quanto mais complexa.

Tanto mais complexa quanto mais consciente.Tanto mais consciente quanto mais difícil.

Tanto mais difícil quanto mais grandiosa. Se você pensa que disponibilidade com paz não é felicidade; que a vida lhe ensine a aproveitar os raros momentos em que ela (a paz) surge.

Que a vida ensine a cada menino a seguir o cristal que leva dentro, sua bússola existencial não revelada, sua percepção não verbalizável das coisas, sua capacidade de prosseguir com o que lhe é peculiar e próprio, por mais que pareçam úteis e eficazes as coisas que a ele, no fundo, não soam como tais, embora façam aparente sentido e se apresentem tão sedutoras quanto enganosas.

Que a vida nos ensine, a todos, a nunca dizer as verdades na hora da raiva.

Que desta aproveitemos apenas a forma direta e lúcida pela qual as verdades se nos revelam por seu intermédio; mas para dizê-las depois. Que a vida ensine que tão ou mais difícil do que ter razão, é saber tê-la. Que aquele garoto que não come, coma.

Que aquele que mata, não mate. Que aquela timidez do pobre passe.

Que a moça esforçada se forme. Que o jovem jovie.

Que o velho velhe. Que a moça moce. Que a luz luza. Que a paz paze.

Que o som soe. Que a mãe manhe. Que o pai paie. Que o sol sole. Que o filho filhe. Que a árvore arvore.

Que o ninho aninhe. Que o mar mare. Que a cor core. Que o abraço abrace. Que o perdão perdoe.

Que tudo vire verbo e verbe. Verde. Como a esperança. Pois, do jeito que o mundo vai, dá vontade de apagar e começar tudo de novo. A vida é substantiva, nós é que somos adjetivos.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Nelson Capucho (A Vaca do Oitavo Andar)

Trrriiiiimmm.

Turíbio esfrega os olhos, olha o relógio sobre a cômoda: 9 horas. Não pode ser o despertador. Trabalha à noite, só vai para a cama por volta das 3 horas. Assim, teoricamente, alguém está lhe telefonando às 6 horas da madrugada.

Trrriiiimmm.

Vira-se, cobre a cabeça com o travesseiro. “Ninguém me deixa dormir”, pensa. Quando não é o cachorro da vizinha do 803 é o telefone.

Triiiiiimmm.

Não deve ser alguém da família. Todos os parentes sabem que ele dorme até mais tarde, que é diferente da maioria dos mortais.

Trrriiiiimmm.

Arrepende-se por não ter desligado o aparelho da tomada. Depois começa a imaginar que aconteceu alguma desgraça. Tio Luís não anda bem de saúde. O irmão que se casou com uma nissei e está morando no Japão. Lá tem muito terremoto. Movimenta a mão na direção do telefone com a agilidade de um astronauta em solo lunar.

Trrim...

Desligaram. Antes que pudesse dizer alô.

Resmunga um palavrão, ofende o coitado do Graham Bell e decide retomar o sono. Lembra-se que estava sonhando com a Sandrinha. E era bom. Tenta recuperar o roteiro do sonho. O maldito cachorro do 803 começa a latir.

Ah, a Sandrinha...

Trrriiiiimmmm.

Ah, não...

Trrriiiimmm.

Atende.

- Hum?

- Bom dia. É da residência do senhor Turíbio? (Voz feminina. Alguma secretária – logo deduz).

- É.

- O senhor Turíbio está?

- Ele.

- Aqui é da Associação dos Pecuaristas Anônimos e o senhor participou do nosso concurso beneficente, não foi?

- E eu por acaso sou boi para participar do concurso de vocês?

- Muito boa, essa. O senhor comprou uma de nossas rifas, certo?

- Sei lá, compro tanta porcaria...

- O senhor ganhou o primeiro prêmio, seu Turíbio!

- Ganhei alguma coisa? Não é possível, minha filha. Ultimamente ando perdendo até no jogo da velha para o meu sobrinho de quatro anos.

- Pois a sua sorte mudou. O senhor ganhou a novilha.

- Como é que é?

- A vaca. O primeiro prêmio!

Agradece à moça, senta-se na cama e sorri. Enfim, uma boa notícia. Mas logo começa a se preocupar. Mora em um edifício, oitavo andar. O que vai fazer com uma vaca? Precisa ir buscar o prêmio na manhã seguinte. Telefona para alguns conhecidos: ninguém quer comprar uma novilha. Quem sabe os açougues? Não, não teria coragem.

Vai à Associação dos Pecuaristas disposto a contar o seu drama, entregar o animal ao primeiro que se interessar. De graça. Mas quando vê a vaquinha, aquele olhar carente, Turíbio muda de idéia:

- Tudo bem. Vou levar. Agora a vizinha do 803 vai ver o que é bom para tosse!

Fonte:
CAPUCHO, Nelson. O Jardineiro de Flores Estranhas. Curitiba: Imprensa Oficial, 2002. (Série Crônicas de Londrina).

Machado de Assis (Duas Juízas)

Uma era a Devoção de Nossa Senhora das Dores, outra era a Devoção de Nossa Senhora da Conceição, duas irmandades de damas estabelecidas na mesma igreja. Qual igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa.

No altar da esquerda, à entrada, ficava a imagem das Dores, e no da direita a da Conceição. Esta posição das duas imagens definia até certo ponto a das Devoções, que eram rivais. Rivalidade nestas obras de culto e religião não pode ou não deve dar de si se não maior zelo e esplendor. Era o que acontecia aqui. As duas Devoções brilhavam de ano para ano; e que era tanto mais admirável quanto que o ardor fora quase repentino e recente. Durante longos anos, as duas associações vegetaram na obscuridade; e, longe de serem contrárias, eram amigas, trocavam obséquios, emprestavam alfaias, as irmãs de uma iam, com as melhores toilettes, às festas da outra.

Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a da Conceição punha à sua frente a esposa do comendador Nóbrega, D. Romualda. O fim de ambas as Devoções era o mesmo: era dar mais alguma vida ao culto, desenvolvê-lo, comunicar-lhe certo esplendor que não tinha. Ambas as juízas eram pessoas para isso, mas não corresponderam às esperanças. O que fizeram no seguinte ano foi pouco; e, ainda assim, nenhuma das Devoções pôde dispensar os obséquios da congênere. Enfim, Roma não se fez num dia, repetiram as devotas de ambas, e esperaram.

Na verdade, as duas juízas tinham distrações noutras partes; não podiam subitamente cortar por hábitos antigos. Note-se que eram amigas, andavam muita vez juntas, encontravam-se em bailes, e teatros. Eram também bonitas e vistosas; circunstância que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento de Madalena dentro de belas formas.

Vai senão quando, D. Matilde, presidindo a uma sessão de mesa administrativa da Devoção das Dores, disse que era preciso cuidar seriamente de levantar a associação. Todas as companheiras foram do mesmo parecer, com grande contentamento, porque realmente não desejavam outra coisa. Eram pessoas religiosas; e, salvo a secretária e tesoureira, viviam na obscuridade e no silêncio.

— As nossas festas, continuou D. Matilde, têm sido muito descuidadas. Não vem quase ninguém a elas; e da gente que vem pouca é a de certa ordem. Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida. Há de pontificar monsenhor Lopes; estive ontem com ele. A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana.

E foi por diante a juíza, dando os primeiros lineamentos do programa. Em seguida, adotaram certas resoluções: — alistar novas devotas — e D. Matilde www.nead.unama.br 3 indicava as suas amigas da alta sociedade —, fazer entrar as anuidades atrasadas, comprar alfaias porque, ponderou a juíza, “não é bonito estarmos a viver de Coisa interessante! Quinze dias depois, ou três semanas, quando muito, a outra Devoção celebrava uma sessão da mesa administrativa em que D. Romualda exprimia iguais sentimentos, propunha uma reforma análoga, espertava o espírito religioso das companheiras para o fim de celebrar uma festa digna delas. D.

Romualda também prometeu fazer entrar um certo número de devotas abastadas e briosas.

Dito e feito. Nem uma nem outra das duas juízas deixou de cumprir o prometido. Era uma ressurreição, uma vida nova; e justamente o fato da vizinhança das duas Devoções serviu-lhes de estímulo. Ambas souberam dos planos, ambas tratavam de levar a cabo os seus com mais particular fulgor.

D. Matilde, que a princípio não cuidava daquilo principalmente, daí a pouco não pensava em mais nada. Não rompeu com outros hábitos; mas não lhes deu mais do que se dá a um costume. O mesmo acontecia a D. Romualda. As duas associações estavam contentíssimas, porque, em verdade, a maior parte das devotas não o eram só de nome. Uma delas, pertencente à Devoção das Dores, que supunha continuar a antiga troca de serviços, lembrou que se pedisse não sei o que à outra devoção. D. Matilde repeliu com desdém: — Não; antes vendamos a última jóia.

A devota não compreendeu bem a resposta; era digna e espartana, mas pareceu-lhe que, em matéria de religião, a confraternidade e a caridade eram as primeiras leis. Entretanto, achou bom que todas se obrigassem ao sacrifício, e não tornou ao assunto. Ao mesmo tempo, dava-se na Devoção da Conceição análogo incidente. Dizendo uma das irmãs que D. Matilde trabalhava muito, acudiu D.

— Eu saberei trabalhar muito mais.

Era claro que a rivalidade e o despeito ardiam nelas. Por desgraça, tanto o dito de uma como o da outra correram mundo, e chegaram ao conhecimento de ambas; foi como lançar palha ao fogo. D. Romualda bradou em casa de uma amiga: — Vender a última jóia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas! E D. Matilde: — Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser de A festa das Dores foi realmente bonita; muita gente, boa música, excelente sermão. A igreja estava tomada com um luxo desconhecido dos paroquianos.

Alguns entendidos da matéria calcularam as despesas e subiram a um algarismo muito alto. A impressão não se restringiu ao bairro, foi a outros; os jornais deram notícia minuciosa da festa, e o trouxe o nome de D. Matilde, dizendo que a esta senhora era devido aquele esplendor. “Folgamos de ver, concluía aquele órgão religioso, folgamos de ver que uma senhora de tão superiores qualidades emprega www.nead.unama.br 4 uma parte da sua atividade no serviço da Virgem Santíssima.” D. Matilde mandou transcrever a notícia nos outros jornais.

Não é preciso dizer que D. Romualda não foi à festa das Dores; mas soube de tudo, porque uma das zeladoras foi espiar e contou-lhe o que houve. Ficou passada e jurou que havia de meter D. Matilde num chinelo. Quando, porém, leu nos , a irritação não teve mais limites. Não todos os nomes feios, mas aqueles que uma senhora educada pode dizer de outra, esses disse-os D. Romualda falando da juíza das Dores — pretensiosa, velhusca, tola, intrometida, ridícula, namoradeira, e poucos mais. O marido procurava aquietá-la: — Mas, Romualda, para que há de você irritar-se tanto assim? E batia o pé, amarrotava a folha que tinha na mão. Chegou ao extremo de dar ordem para não receber mais o ; mas a idéia de que podia merecer da folha alguma justiça, quando chegasse a festa da Conceição, fê-la retirar a ordem.

Dali em diante, não se ocupou de outra coisa, senão de preparar uma festa que vencesse a das Dores, uma festa única, admirável. Convocou as irmãs, e disselhes francamente que não poderia ficar abaixo da outra Devoção; era preciso vencêla, não igualá-la; igualá-la era pouco.

E toca a trabalhar na coleta de donativos, na cobrança de anuidades. Nas últimas semanas, o comendador Nóbrega quase não pôde ocupar-se de outra coisa, senão de ajudar a mulher nos preparos da grande festa. A igreja foi armada com uma perfeição que excedia a da festa das Dores. D. Romualda, a secretária, e duas zeladoras não saíam de lá; viam tudo, falavam de tudo, corriam tudo. A orquestra foi a melhor da cidade. Estava de passagem um bispo da Índia; alcançaram dele que pontificasse. O sermão foi incumbido a um beneditino de fama. Durante a última semana trabalhou a imprensa, anunciando a grande festa.

D. Matilde caiu em mandar para as folhas algumas mofinas anônimas, em que argüía a juíza da Conceição de ser dada à charlatanice e à inveja. Respondeu D. Romualda, também anonimamente algumas coisas duras; a outra voltou à carga, e recebeu nova réplica; e isto serviu ao esplendor da festividade. O efeito não podia ser maior, todas as folhas deram uma notícia, embora curta; o um longo artigo, dizendo que a festa da Conceição fora das melhores que se tinham dado no Rio de Janeiro, desde muitos anos. Citou também o nome de D. Romualda como o de uma senhora distinta pelas qualidades de espírito, como digna de apreço e louvor pelo zelo e piedade. “Ao seu esforço, concluía a folha, devemos o prazer que tivemos no dia 8. Oxalá muitas outras patrícias possam imitá-la!” Foi uma punhalada em D. Matilde. Trocaram-se os papéis; ela agora é que deitava à outra os nomes mais cruéis de um vocabulário elegante. E jurava que a Devoção das Dores não ficaria vencida. Imaginou então umas ladainhas aos sábados e contratou uma missa especial aos domingos, fazendo anunciar que era a missa aristocrática da paróquia. D. Romualda respondeu com outra missa, e uma prática, depois da missa; além disso, instituiu um mês de Maria, e convidou a melhor gente.

Esta luta durou uns dois anos. No fim deles, D. Romualda, tendo dado à luz uma filha, morreu de parto, e a rival ficou só em campo. Vantagem do estímulo! Tão depressa morreu a juíza da Conceição como a das Dores sentiu afrouxar o zelo, e já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores. A segunda foi feita com outra juíza, porque D. Matilde, alegando cansaço, pediu dispensa do posto.

Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão, por causa de um vestido. Não se sabe qual delas ajustara primeiro um corte de vestido; sabe-se que o ajuste foi vago, tanto que o dono da loja imaginou ter as mãos livres para vendê-lo a outra pessoa.

— A sua amiga, disse ele à outra, já aqui esteve e gostou muito dele.

— Muito. E quis até levá-lo.

Quando a primeira mandou buscar o vestido, soube que a amiga o comprara. A culpa, se a havia, era do vendedor; mas o vestido era para um baile, e no corpo de outra fez maravilhas; todos os jornais o descreveram, todos louvaram o bom gosto de uma senhora distinta, etc... Daí um ressentimento, algumas palavras, frieza, separação. O paroquiano, que, além de boticário, era filósofo, tomou nota do caso para contá-lo aos amigos. Outros dizem que era tudo mentira dele.

Fonte:
ASSIS, Machado de. Contos sem data. Rio de Janeiro: Ediouro (coleção prestígio).

Jane Tutikian (O acordeão e a bicicleta de motor)

Doce paz em mim,
em minha família, que veio de brumas sem corte de sol
e por estradas subterrâneas regressa às suas ilhas,
na minha rua, no meu tempo — afinal — conciliado,
[...]
— Carlos Drummond de Andrade

Difícil de saber exatamente o que passou pela cabeça do pai, quando tomou aquela decisão. Talvez porque já tivesse tentado outras coisas. Talvez porque acreditasse que a educação devia mesmo passar por isso. Eu não sei. Mas estava decidido: teria, sim, que estudar música. Desta vez, estava decidido, seria acordeão. Por mais que tentasse — ou pensasse, melhor diria se dissesse — por mais que pensasse em explicar, dizer que não queria, que não gostava, por mais que pensasse em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, por mais que pensasse em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre - eu sabia, minha mãe sabia, minhas irmãs sabiam o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim.

Tínhamos tentado o piano, mas aqueles pedais que me colocavam em um carro de alta velocidade eram muito mais sedutores do que o teclado e. Aquelas partituras não eram mais do que esboços de pistas em que as curvas e os obstáculos se desenhavam pelas claves, pelas notas cheias e vazias. Era de tirar o fôlego de qualquer sujeito! Não aprendi música inteira. Uma que fosse, só para que meu pai se orgulhasse de mim. Não aprendi. Agora, entretanto, era o que passava pela sua cabeça, não haveria mais os pedais a distrair minha atenção. E, no final de tarde do final de semana, seria bonito, minhas irmãs sentariam ao piano e eu estaria ao lado delas, no acordeão. Pensei que sempre poderia deixar de comer ou deixar de falar. Mas. Minha intuição também não me deixava saída. Corri para o quarto. Bati a porta e fiquei longo tempo assim: em silêncio. Já sabia que, com ele, não adiantava discutir nem nada. Poderia, quem sabe, levar uma surra, mas isso não me assustava, me assustava o olhar pequeno, fechado, pensativo. Fizesse o que fizesse e teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida, com toda a turma da rua andando de bicicleta! Ou trocando figurinha de carros de corrida! Ou montando carrinho de lomba com rolimã de aço e tudo!, Teria de dedicar longas e intermináveis horas da minha vida a longos e intermináveis solfejos. Isso é de arrasar qualquer sujeito de quase 11 anos!

Quando a campainha tocou, me apresentaram dona Conceição. Ela era gorda, baixa, usava uma saia justa que avolumava ainda mais a barriga, onde acomodava, mesmo de pé, acomodava o acordeão. Usava uns óculos pretos, de aros redondos, que aparavam uns olhinhos pequenos e sempre sorridentes. Pensava que estava ali para me ajudar e foi o mais simpática possível. Essas coisas de mulher. Ela me chamou de querido, assim que me viu, e eu odiava que me chamassem de querido assim que me viam, sobretudo uma professora, sobretudo uma professora de acordeão. Passamos para o escritório e começou o martírio. Primeiro a mão direita. Sem olhar para as teclas, queridinho. Odiava mais ainda que me chamassem de queridinho! Teria sido uma tarde inteira de dórémifásollásidódósilasolfámirédó, se minha mãe não tivesse entrado com uma limonada e uma fatia de bolo de milho. Vamos de novo, amor. Amor era absolutamente insuportável! Não esquece de abrir o instrumento, aqui, o fole. Muito bem. Assim. Ele precisa cantar. Não. Não olha. Dórémifásollásidódósilasolfámirédó.

Ficou combinado: as aulas seriam às segundas, quartas e sextas, às quatro horas da tarde. Antes disso, eu faria os temas da escola. Não me parecia nem um pouco justo! Quando eu pudesse sair para a rua, a tarde já teria quase passado, e, quando fosse noite, eu teria de entrar. Pensei em falar com a minha mãe sobre isso, mas ela diria que o meu pai. Pensei em falar com o meu pai sobre isso, mas. Se o assunto fosse aquele, como das outras vezes, ele não queria falar. Então, me conformei. Eu ia crescer, mesmo, um dia.

Tentamos a outra mão e ela batia palmas rápidas para que eu pudesse acompanhar. Tã -tã,tã-tã-tã,tã-tã. Depois, depois era questão de juntar tudo, mas. Só depois, porque em todos os agora que tentamos não conseguimos e, algumas vezes, os querido, queridinho, amor e amado eram acompanhados de uma visível irritação. Eu até que tentava me concentrar, mas sabia quando as bicicletas passavam, porque a gente prendia uma papeleta com prendedor de roupa, na roda, ela pegava nos raios e dava um barulho parecido com motor. É verdade! Eu até que tentava me concentrar, mas aí ouvia, ao longe, o barulho de um carrinho de lomba. E, então, eu ia, sentado no banquinho do escritório, com um acordeão vermelho e preto, imenso e pesado, muito maior do que eu, eu ia junto e sentia o vento na cara e tudo. E foi muito, muito tempo assim.

Agora, tentávamos uma música: Ó Minas Gerais! Ó Minas Gerais! Quem já te viu não te esquece jamais. Ó Minas Gerais! Eu não sabia por que tinha que tocar Ó Minas Gerais, não sabia, não queria saber e, mais do que tudo, não queria tocar. Agora, o desafio era tocar uma musica inteira.

Passado um ano, meu pai achou que as aulas não estavam rendendo e decidiu dispensar dona Conceição que saiu com o coração pesado, porque, apesar de tudo, ela sabia que eu tinha certo talento, era só uma questão de tempo e de treino!, argumentou.

Eu? Fiquei entre o que se pode dizer de um homem feliz e um homem meio culpado. Dona Conceição não era tão ruim assim, pensei olhando as miniaturas de carros que tinha nas prateleiras do meu quarto, eu é que era, mas. Nada que durasse muito tempo, e meu pai anunciou que as aulas seriam, a partir de então, com o professor Clóvis.

Pensei, de novo, em explicar, dizer que não queria, que não gostava, em me atirar no chão e gritar e chorar e bater com os pés e com as mãos, em sofrer um terrível e incontrolável ataque de asma, se trancasse a respiração para sempre — mas. Não podia. Já tinha quase doze anos e sabia, de novo, minha mãe sabia, de novo, minhas irmãs sabiam, de novo, o que vinha daquele olhar pequeno, fechado, pensativo: eu estudaria acordeão, sim, nem que fosse a última coisa que fizesse na vida e, desta vez, com o professor Clóvis. Além disso, agora, me dava certo prazer, quase físico, ficar tentando, uma hora inteira, três vezes por semana, tocar Ó Minas Gerais. Minha mãe trazia um olhar desesperançado, junto com cada fatia de bolo de milho com limonada, mas. Minhas irmãs, aos poucos, foram trocando os olhares debochados de risos furtivos por olhares desesperados, e disso eu gostava e imaginava que, um dia, os vizinhos viriam tocar à porta e pedir, por amor de Deus que. Só meu pai não mudava o olhar.

Soube que o professor tinha chegado, quando uma bicicleta de motor parou diante da porta da minha casa. Eu nunca tinha visto uma! Embora aquele homem alto, magro, curvado, de cabelos muito compridos, de olhos grandes num rosto encovado dissesse que era o professor Clóvis, e embora eu achasse um tipo muito engraçado, eu não conseguia responder nada, queria ver inteiro 0 que havia atrás dele: e o que havia atrás dele era uma bicicleta azulzinha, de guidão prateado e tudo, ali, na minha frente, atrás dele, tão na minha frente que parecia sonho e tudo.

Minha mãe disse-lhe que entrasse, fomos direto para o escritório e, enquanto ele queria explicar que aquele era um instrumento de sopro muito antigo, inventado em Viena, no século 19, eu queria falar daquela máquina maravilhosa que estava estacionada na frente da minha casa e da potência daquele motor, e da velocidade que andava e de como funcionava a correia. Ele, então, riu um sorriso magro e decidiu que, sim, certo, era do que falaríamos, e começou a me explicar o funcionamento. Quando minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim — enfim, alguém cúmplice que não me chamaria nem de querido, nem de queridinho, nem de amor, nem de amoreco! — quando a minha mãe entrou com o bolo, ele piscou para mim e continuou a história do instrumento, que quando a conversa é para ser só entre homens é assim mesmo. Quando minha mãe saiu, quis fazer, de homem para homem, uma aposta. Pediu que eu mostrasse o que sabia e eu, rindo, de homem para homem, disse-lhe que não sabia nada, só o começo de Ó Minas Gerais, mas que nunca tinha tocado música inteira, o que ele, evidentemente, podia entender entendido. Foi quando o professor fez a proposta: quando tu tocares uma música inteira, pode até ser este Ó Minas Gerais, eu te deixo andar na minha bicicleta de motor, mas só uma volta na quadra.

Eu mal podia respirar de tanta excitação. Bastava tocar uma música inteira e eu subiria naquela máquina e daria a volta na quadra! Decerto toda a turma ia ficar me fazendo perguntas: de quem é? É tua? Posso dar uma voltinha? E eu diria que sim e que não. Seria minha, como mulher que se ama de verdade, aquela bicicleta de motor de verdade, por toda uma volta na quadra.

— Fechado?, Ele perguntou.

— Fechado, respondi, falando com um igual. Apertamos as mãos, a minha pequena e a dele enorme, quase seca, e ele foi embora.

Ninguém me perguntou sobre a operação do milagre e, se perguntasse, também não responderia. Acabada a aula, não fui para a rua e comecei a me exercitar: dórémifásollásidódósilasolfámirédó, era o aquecimento. Depois, a outra mão, e eu tinha no ouvido as batidas das mãos de dona Conceição: Tã-tã, tã-tã-tã, tã-tã. E foram muitas vezes seguidas, vezes repetidas, monótonas, enlouquecedoras. Minha mãe chamou para jantar, mas, embora a fome de sempre, eu não podia. Meu coração estava acelerado em uma bicicleta de motor azul, minha respiração estava difícil, o que me separava dela era só uma Ó Minas Gerais inteira. Às dez horas, meu pai disse que tinha que terminar com aquele barulho. Fiquei muito brabo, bem quando eu queria tocar ninguém me apoiava! Ninguém me apóia, resmunguei, sem resposta. Passei a noite tocando sem som, sem deixar que o instrumento cantasse, apenas tocando, levemente, tocando as teclas e os botões, enquanto imaginava Ó Minas Gerais.

De manhã, não pude ir ao colégio, e foi fácil fazer com que acreditassem no enjôo porque estava abatido por uma noite não dormida. Até minhas irmãs ficaram preocupadas! Quando o enjôo acalmou um pouco, pude voltar ao acordeão e voltei o dia inteiro.

Ninguém dizia nada, mas eu sabia — e até era engraçado saber — que todos estavam achando tudo aquilo muito estranho. Era um pacto e, de pacto, homem não fala, pensava, embora meu pai firmasse e reafirmasse como era bom aquele professor, tinha, enfim, achado a pessoa certa para lidar comigo.

Quando o professor Clóvis chegou — soube que ele havia chegado desde que dobrara a esquina, pelo ronco do motor — fui eu a abrir a porta, levei-o ao escritório e toquei, cheio de orgulho, toquei toda a Ó Minas Gerais, soltei o acordeão e perguntei: agora posso? Acho que o professor não entendeu muito, ou não esperava que o progresso fosse tão rápido. Disse que sim, claro, decerto profundamente arrependido, que tem coisas na vida, como as grande paixões, que a gente não empresta nunca — isso eu só descobri muito mais tarde — mas só uma volta na quadra, hein?, e me entregou uma chave pequeninha, a que guardava toda a minha felicidade.

Subi na máquina e fui para o lado oposto do que estava a turma. Não queria nada nem ninguém que pudesse atrapalhar aquele momento que me valera todo o sacrifício que havia por trás de uma Ó Minas Gerais inteira e andei. Difícil dizer o que eu estava sentindo porque, algumas vezes, o que se sente ainda e sempre é maior. Estava sentindo ainda e sempre maior A máquina eu a liberdade as ruas o barulho do motor meu pai eu a liberdade eu grande a liberdade a máquina meu pai o motor acelerador a máquina as outras ruas o professor que tinha ficado para trás gostava dele a bicicleta de motor aquele era meu amigo sim a liberdade eu de verdade meu pai as ruas a minha casa lá atrás a noite caindo o chão andando ruas desconhecidas liberdade. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, ou talvez só mais tarde, teria de voltar. Sabia que encontraria o professor, contrariado, na calçada, e o meu pai furioso, de olho apertado e faiscante, e a minha mãe chorando, e as minhas irmãs caladas de tanto susto. Sabia, mas tinha que arriscar porque aquele isso dentro de mim me dizia que tinha de arriscar e arrisquei.

Quando voltei, o professor Clóvis disse que eu não sabia cumprir um acordo, pegou a bicicleta e não disse mais nada. Senti uma coisa, assim, forte, no peito, dessas que parecem dor e que a gente sente quando se dá conta de que está perdendo um amigo. Um amigo de duas aulas, mas amigo. Minha mãe me abraçou chorando. Minhas irmãs, pulando, nervosas, só diziam pulando, nervosas, que eu ia apanhar. Meu pai me mandou para o quarto e as vizinhas diziam, nas minhas costas, graças a Deus!, não aconteceu nada.

Tinha acontecido, sim, mas talvez ainda não fosse visível. Meu pai entrou no quarto, os cabelos grisalhos despenteados faziam com que ficasse arrumando com a mão a toda a hora, e me olhava como se quisesse dizer alguma coisa enquanto ia e vinha, e acho que, desta vez, quase conversamos. Tinha o olhar pequeno, fechado, decidido, o meu pai. Só não falamos porque ele estava ocupado: colocou o acordeão dentro da caixa e levou embora. Eu era um homem de 12 anos e, na linguagem dos homens e seus imponderáveis, ele começava a me enxergar.
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Sobre a Autora
Jane Tutikian (1952) nasceu em Porto Alegre (RS). É formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutora em Literatura Comparada, atua, na mesma Universidade, como professora de literatura na graduação e pós-graduação. Colaborou com diversos jornais (“Correio do Povo”, Folha da Tarde”, “Jornal do Brasil”, etc.). Participou de várias antologias e seus contos foram traduzidos para o inglês e o espanhol.

prêmios recebidos:

1982 – Prêmio Alfredo Machado Quintella – Fundação Nac. do Livro Infanto-Juvenil – RJ.

1984 – Prêmio Jabuti – categoria infanto-juvenil – Câmara Brasileira do Livro – SP.

1986 – Finalista da Bienal Nestlé de Literatura – categoria conto – SP.

2001 – Prêmio Açorianos – categoria infanto-juvenil – Secretaria Municipal de Cultura – Porto Alegre (RS).

Obras:

Batalha naval (contos), 1981 – Civilização Brasileira
A cor do azul (novela infanto-juvenil), 1984 (21ª edição)
Pessoas (contos), 1987 – Movimento
Geração traída (novela), 1990 – Mercado Aberto
Um time muito especial (novela infanto-juvenil), 1993 (12ª edição)
Inquietos olhares (ensaio), 1999, Arte & Ciência
O sentido das estações (contos), 1999 – Movimento
Alê, Marcelo, Ju & eu (novela infanto-juvenil), 2000 – WS Editor
A rua dos secretos amores (contos), 2002 – WS Editor

Fonte:
TUTIKIAN, Jane. A rua dos secretos amores. Porto Alegre, RS: WS Editor, 2003.

Guimarães Rosa (O espelho)

Pintura de Leonora Weissmann
O espelho é o centro da obra Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, onde o narrador, em primeira pessoa, conta de sua luta para provar a falta de lógica e de sentido do mundo. Diante de um espelho, foi descobrindo com o passar dos dias a mentira que é a aparência humana. Num processo de “desimaginar-se”, vai verificando que o homem, como todas as coisas, não passa de uma metáfora. No limite do absurdo, ele chega a ver sua “forma” invisível.

O tema da identidade é tratado através da metáfora do ato de se ver e se reconhecer no reflexo dos espelhos.

No conto reaparece a estrutura narrativa inovadora, trata-se da relação diálogica de um narrador que não se identifica nominalmente e que interpela o leitor por "senhor". O narrador relata uma experiência insólita: Se quer seguir narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. /.../ O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade – um espelho?. Assim, o leitor é chamado a trilhar as veredas de uma devassa da alma humana.

De tema metafísico, transcendente, o conto não é uma narrativa com história, intriga, no sentido tradicional. É uma experiência, como o próprio narrador personagem declara.

Seguindo um método próprio, o narrador desenvolve a sua busca durante anos, experimentando as diferentes formas que podem brotar de sua própria imagem no espelho e eliminando todas, na tentativa de encontrar a sua verdadeira essência, livre de qualquer ilusão que os seus olhos pudessem criar.

Após anos dessa experiência, o personagem chega ao ponto de não conseguir ver nenhuma imagem, quando está diante de um espelho. Então, resolve parar por um bom tempo com as experiências e não dirige mais o olhar a nenhum espelho. Porém, num dia, ele retoma essa experiência e consegue ver apenas um esboço muito mal feito do seu rosto, um quase rosto. Nesse instante, o narrador se sente contente e tranqüilo e convida o leitor a refletir sobre o que é de fato a vida.

O elemento anedótico consiste na situação absurda, relatada pelo narrador, de que é possível ver outras pessoas, objetos e até animais no lugar da própria imagem no espelho. O narrador passou a acreditar nessa louca idéia, quando ainda era jovem e estava num lavatório, onde de súbito, se deparou com um perfil humano feio, desagradável que lhe gerou nojo e repulsa. Porém, essa figura era ele mesmo dentro de um jogo de ângulos produzido por dois espelhos: um fixo na parede e outro numa porta lateral. A partir desse acontecimento, o narrador inicia uma busca pelo seu eu através dos espelhos: comecei a procurar-me - ao eu por detrás de mim - à tona dos espelhos.

O conto é como um jogo da verdade. O espelho é o instrumento da análise. O narrador vai descendo em suas experiências até não encontrar mais sua imagem: as máscaras (aparência) vão sendo destruídas. Por fim, começa a emergir no espelho uma outra imagem ...um rostinho de menino, de menos-que-menino.

Este conto apresenta um aspecto que o destaca em relação aos demais de Primeiras Estórias: sua linguagem é erudita, carregada de termos científicos e filosóficos, numa formalidade que se afasta do caráter oral dos outros 20 textos, significando o fascínio exercido pelo espelho sobre cientistas e filósofos de todos os tempos.

Seu narrador, que parece conversar com o leitor diz que realizou um enorme esforço, por meio de seu reflexo num espelho, de busca do seu verdadeiro eu, o “eu por trás de mim”.

Esse verdadeiro eu precisa ser encontrado por meio de seu reflexo. Estuda-se, pois, sua imagem e semelhança. Assim, a busca do verdadeiro eu está na busca de Deus. Para tanto, o narrador vê-se na necessidade de realizar exercícios que têm a proposta de eliminar as superfícies enganadoras de sua imagem. Com esforço, elimina sucessivamente a imagem do seu sósia animal, dos seus pais, de suas paixões, das idéias que os outros lhe atribuem, dos interesses efêmeros. O resultado de todos esses esforços causa-lhe muito sofrimento, principalmente uma terrível dor de cabeça. Resolve, pois, abandonar a tarefa.

Tempos depois, voltou a se olhar no espelho e não viu nada. Aos poucos, uma imagem vai-se formando, de forma luminosa. No final, surge a imagem de algo que é menos que um menino. Eis a idéia de que a criança enxerga melhor a verdade (eis um dos motivos para a predileção para esse tipo de personagem na obra). Tornando-se adulto, a visão é embaçada. No entanto, existe a promessa de que se voltará ao estágio da perfeição. Vai-se estar face a face com Deus, como se diante de um espelho.

No conto O Espelho, predominou o aspecto esotérico, quando a obra Primeiras estórias nos apresenta vivamente retratos de pobreza, exclusão e abandono a que são entregues os habitantes do sertão.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/o/o_espelho_conto

sábado, 13 de dezembro de 2008

Lançamento dos livros de Marli Fantini Scarpelli "A Poética migrante de Guimarães Rosa" e "Crônicas da antiga corte"

A poética migrante de Guimarães Rosa é uma coletânea de textos que privilegia a diversidade dos olhares sobre a obra do escritor. Os autores abordam a riqueza lingüística, estrutural e temática do romance, de novelas, contos, crônicas e poemas produzidos com dedicação e genialidade do escritor mineiro. Crônicas da antiga corte – Literatura e memória em Machado de Assis, também uma coletânea, evidencia o paralelismo entre a obra e a vida de Machado de Assis. Ser-tão natureza – a natureza em Guimarães Rosa é resultado da tese de doutorado defendida por Mônica Meyer em 1998.
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Marli de Oliveira Fantini Scarpelli

Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq 2 É professora Associada da Faculdade de Letras da UFMG, onde leciona na Graduação e na Pós-Graduação, nas áreas de Teoria da Literatura, Literatura Comparada e Literatura Brasileira. É Coordenadora da Câmara de Pesquisa da FALE/UFMG, Coordenadora da Comissão editorial da Ed. FALE/Ed. da UFMG, Membro titular do Comitê Assessor de Letras, Lingüística e artes da Pró-Reitoria de Pesquisa da FALE/UFMG. Foi chefe do Departamento de Semiótica e Teoria da Literatura, Diretora do Centro de Estudos Portugueses e Editora da Revista do CESP. É líder (CNPq) do Grupo de pesquisa REDES - Literatura e Cultura ibero-afro-americanos; e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa MESCLA - Literatura, Memória e Cultura na Esfera Ibero-Afro-Americana, na FALE/UFMG. Atua principalmente nos seguintes temas: Guimarães Rosa, Machado de Assis, literatura ibero-afro-americana. Possui Mestrado em Estudos Literários (1994) e Doutorado em Literatura Comparada, ambos pela FALE-UFMG (2000); e Pós-Doutorado em Literatura Brasileira na USP (2003-2004).
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Livros publicados

1. A poética migrante de Guimarães Rosa. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
2. Guimarães Rosa: Fronteiras, margens, passagens. 2. ed. São Paulo: Senac; Ateliê Editorial, 2008.
3. Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. 1. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
4. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. 1. ed. São Paulo: Senac/Ateliê, 2004. v. 1.
5 FANTINI, e DUARTE, E. A. (Org.) . Poéticas da diversidade. Belo Horizonte: POSLIT/Faculdade de Letras da UFMG, 2002.
6. FANTINI e DUARTE, C. L. (Org.) . Gênero e representação nas literaturas de Portugal e África. Belo Horizonte: POSLIT/Faculdade de Letras da UFMG, 2002. v. III.
7. FANTINI, Marli (Org.) . Revista do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. v. 22.
8. FANTINI e OLIVEIRA, Paulo Motta (Org.) . Os centenários: Eça, Freyre, Nobre. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001. v. 1.

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Fontes:

Colaboraçaõ de Douglas Lara. http://www.sorocaba.com.br/acontece
Currículo Lates

Caldeirão Literário do Rio Grande do Sul

ADEMIR ANTONIO BACCA

iceberg

o que escondo
nem sempre é
a minha parte
mais perigosa

um bloco de ternura
hiberna
há muitos invernos
submerso em mim
à espera
de tantos reencontros
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insônia

inventei tantos mundos
e abri tantas portas
em minha insônia
que tem noites
que não encontro caminho
para voltar para dentro de mim
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ferido de morte


me deixe quieto
no meu canto

não toque no rádio
não mexa na ferida
nem provoque o sonho

deixe a noite
acontecer sem pressa

não fale meu nome
não atravesse a ponte

fique onde estás
e me deixe entregue
ao meu silêncio

hoje,
eu calo por nós dois
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nós

essa coisa
que há em nós

busca que não cessa
palavra que não sacia

esperança que a gente tece
teimosamente
todos os dias

essa coisa
que há em nós

bálsamo para tantas dores
que a gente acostumou
e nem mais sente

força estranha
que há em nós
e nos leva pelas ruas
em busca dessas coisas todas
que na madrugada
desatam sobre nós
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migração

sonhos

sonhos
batem asas
dentro de mim

quem sabe para o norte
quem sabe para morte
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do conformismo

eu toco
a minha vida
como que conduz
um tropa de bois

de que me vale
a sensibilidade
de poeta
se a insensatez
dos governantes
sempre põe tudo
a perder?
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Sobre o Autor

Natural de Serafina Corrêa, RS, é poeta, contas, folclorista e jornalista. Publicou, até 2007, oito livros de poesia, além de organizar e participar de muitas antologias. Ativista cultural, organizador de festivais e eventos de poesia com repercussão nacional e internacional.

“Ao alçar seu Plano de Vôo, com poemas curtos e tocantes, é possível imaginar o poeta navegando sua asa delta emocional pelas querências gaúchas, captando o silêncio do silêncio, num horizonte sempre distanciado.”

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CELSO GUTFREIND


Conversa de menino

O silêncio era infinito
mas acabou
perguntando ao menino:
- O que fazes nesta manhã?

Ele agarrou no que não tinha:
- Reinvento a minha mãe.
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NADO


De máscara em máscara
passas como um fósforo.
Já riscas a próxima,
porém ainda lembras
um outro de antes
ou depois da chama.
E segues a luta
de torna-se alguém
igual a ti mesmo,
até encontrar
tua natural
e forma própria,
a de
teu pai.
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OS INOCENTES


Nós íamos ao parque na inocência
para muito prazer, divertimentos
e um pouco de sorte nas argolas.
Jamais nós retivemos uma imagem
de forma superior à sua essência
a fim de que depois fosse expressada.
Jamais observamos qualquer ritmo
de carrossel, de roda ou trem-fantasma
exatos e velozes como o medo.
Jamais nos dirigimos ao porteiro
a fim de questionar o que não fosse
um preço de bilhetes ou a hora.
Jamais pensamos que essa arte toda
seria assim um dia necessária.
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PROMESSA DE PALAVRA


Embora tornado texto
frio, gabinete, impres-
tável para os quintais,
fechado em coisas de coisas
velhas, frias e sem dança,
a cada novo capítulo,
escreve-se uma esperança.
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A LONGEVA

E lidos todos os livros
o dos livros incluído
letra pequena história comprida
conteúdos fundo vivos
Amadas muitas das carnes
de águas fotos ofícios
incluída a dos planos
na reta curva da vida
(e dos livros os seus ritmos
e das carnes seus espíritos)
restam vivos somente os decassílabos
fluentes na extensão de suas imagens
talvez levando em si seu próprio modo

e a amiga querendo saber como vais
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PRESCRIÇÃO DE ANDARILHO


Dar a volta ao mundo
para tocar flauta
Tocar cada volta
apesar do áspero
Parar num lugar
apesar do tempo
Dizer desdizer
até o som, a dança
Ver cor sentir cor
olhar um segundo
Esquecer a hora
sonhar muitos anos
Viver e viver
antes que seja arte
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Sobre o Autor

Nasceu em Porto Alegre, em 1963. Como escritor tem 12 livros publicados, entre poesia e histórias infantis. Também participou de diversas antologias e recebeu alguns prêmios. Tem textos traduzidos para o espanhol, francês e inglês. Colabora na imprensa, assiduamente, sobretudo com crônicas. Como médico, Celso Gutfreind especializou-se em Medicina Geral Comunitária (Hospital Nossa Senhora da Conceição), Psiquiatria (Fundação Mário Martins e Associação Brasileira de Psiquiatria) e Psiquiatria Infantil (Universidade Paris V). Realizou na França doutorado em Psicologia Clínica (Universidade Paris XIII) e pós-doutorado em Psiquiatria Infantil, no grupo hospitalar Pitié-Salpetrière, da Universidade Paris VI. Atualmente, é professor da Faculdade de Medicina e do mestrado de Saúde Coletiva da ULBRA e da Fundação Universitária Mário Martins.
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DOLORES MAGGIONI

O meu Fantasma e seu Bloco de Rabiscos

ESTAÇÃO PRIMEIRA- É NOITE DE OUTONO


Há alguém batendo à porta. É ele, o meu fantasma
trazendo na algibeira um bloco de rabiscos.
Descansa o chapéu roto, no encosto da cadeira
me olha de soslaio. Nos seus olhos ariscos
o jeito de quem veio ficar a noite inteira.
Desfaz-se da sandália e calça o seu chinelo.
No colo estende. o abrigo da manta de pelúcia.
Debruça o seu olhar tristonho na janela
perscruta o céu violáceo, em cada sua minúcia.
Vivaldi e seus violinos, na sua Estação de Outono.
O bloco de rabiscos é aberto e o meu fantasma
ensaia no rascunho a minha história antiga.
Invade docemente a minha intimidade
e assim, enternecido, com sua mão amiga
rabisca no seu bloco, do Adágio de Vivaldi,
o ébrio adormecido, dos aldeões o canto,
os cães, a espingarda, a fera abatida.
O seu olhar se esteira por sobre mim em prece
e ele, o meu fantasma, sem um sinal de pressa
se aninha na cadeira, tão terno, e adormece.
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ESTAÇÃO SEGUNDA - É NOITE DE INVERNO


Crepita, tão sombrio, o fogo na lareira.
De volta, o meu fantasma, tão trêmulo de frio.
Se assenta na cadeira, aperta a minha mão
com sua mão gelada.
O seu roto chapéu descansa na almofada.
Fica a me olhar de um jeito, tão meigo e tão antigo,
parece que hoje veio para ficar comigo.
Um copo de conhaque. Faz parte da rotina.
A chama sinuosa que arde na lareira
se espelha, do fantasma, em sua triste retina.
O bloco de rabiscos se amolda, à sua maneira,
por sobre seus joelhos, de frio enrijecidos.
O disco chora agora o Largo de Vivaldi
na sua Estação de Inverno.
Saudades batem pés, pra não morrer de frio
e a chuva, sem cuidado, escorre pelo chão
formando enorme rio. O meu triste fantasma
parece pouco a pouco, se transformar num louco.
Estampa velozmente, com seus olhos ariscos,
toda a poesia da alma, no bloco de rabiscos.
Lá fora, pavoroso, o vento, todos ventos
explodem na vidraça. Os sonhos, congelados,
deslizam sobre o gelo, iguais ao movimento
do Alegro de Vivaldi.
Tristeza que não passa.
A chama assim brejeira do olhar do meu fantasma
se apaga lentamente, junto à última brasa
que arde na lareira.
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ESTAÇÃO TERCEIRA- É NOITE DE PRIMAVERA


A tarde anoitecida se veste de estrelas. Chegou a primavera.
Num terno azulado, na sala acomodado, está o meu fantasma,
de novo à minha espera.
Saímos de mãos dadas, ele de temo azul, eu, com azul na saia.
A imensa lua cheia brilha novo poema, em cada onda da praia.
O mar nos faz suas rondas, quebrando o silêncio
com o espocar das ondas.
Voltamos irmanadas, as nossas duas almas.
Um drink bem gelado. Borbulhas no espumante.
Gemidos de violinos irrompem o constante
Alegro de Vivaldi louvando-a primavera.
Se assenta o meu fantasma, em sua fiel cadeira.
No rosto, tão de volta, os seus olhos ariscos
e tão nas mãos de volta, o bloco de rabiscos.
Trovões, cantar de aves, até um pastor que dorme,
as fontes que murmuram, também plantas e folhas,
a dança pastoral, na sua tristeza enorme.
Só ele, o meu fantasma, me lembra, sem prudência
histórias do passado. Imploro por clemência,
mas ele, o meu fantasma, assim, rindo-se de mim
vai rascunhando um sonho, do início até o fim.
Já tarde. A lua se esconde, prateada de carinho
e ele, o meu fantasma, suave adormece
tão doce ... de mansinho.
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ESTAÇÃO QUARTA - É NOITE DE VERÃO

Parece que hoje o sol retarda em retirar
seu cobertor vermelho de sobre o entardecer.
Me chega bem mais cedo, esta noite, o meu fantasma,
ansioso por me ver. Veio jantar comigo.
Pois fique à vontade. Assim seja. Não se vá.
Trazidos na bagagem, presentes de sonhar.
Me veio o meu fantasma, como quem vai ficar.
De volta ao aconchego do seu antigo ninho
lhe sirvo, com ternura, um cálice de vinho.
Vivaldi e os movimentos da sua Estação Verão.
Sobras de antigos sonhos, olhando-me das coisas
como velhos retratos, com olhos de piedade
Alegro na saudade e sua languidez.
O cuco, a rolinha, este calor intenso
e este rubor na tez.
O pintassilgo, o vento, o pranto do aldeão,
as moscas, os moscões, o Presto que descreve
trovões e temporais. O meu fantasma triste
com seus olhos ariscos, de súbito rascunha
seu bloco de rabiscos.
Logo um pranto desliza, na sua face mansa.
Ele hoje se parece com tímida criança
que crê que tem um bicho
papão dentro da lua. A dor que se insinua
é como uma serpente, que enrosca sua curvas
na dor da alma da gente.
É tarde. As estrelas nos olham distraídas
por sobre a noite intensa.
Eu sirvo framboesa, pra uma saudade imensa.
De novo, o meu fantasma, sem um sinal de pressa
esteira sobre mim o olhar enternecido.
Se aninha na cadeira ... Tão doce ... adormecido.
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Sobre a Autora

Pós-graduada em História das Artes é professora Universitária de Estética e Filosofia da Arte e História da Música Universal. Desempenha atualmente a função de Assessora Cultural da Escola "Província de São Pedro" em Porto Alegre, RS. Integra várias Academias Literárias do País e do Exterior: Membro "Ad Honorem" do Centro Cultural e Artístico a Gazeta de Felgueiras ¬Felgueiras - Portugal e Membro Simpatizante do Centro Europeu para Promoção das Artes e das Letras - cadeira n° 225 - Ano 2001 ¬Thoinville - França. Foi publicada na Espanha: obra Poetas da Humanidade em homenagem a Garcia Lorca.

Uma das 20 personalidades que marcaram o século XX em Farroupilha, RS, sagrou-se vencedora do Prêmio lararana de Poesia da Revista de Arte, Crítica e Literatura - Salvador - Bahia Ano 2000. Foi painelista em Conclaves Literários, destacando-se o Seminário Nacional de Literatura Brasileira - Acre - Rio Branco, O Seminário de Literatura de Ibiraçu - Espírito Santo e o Congresso Nacional de Trova Literária - Corumbá - Mato Grosso do Sul.

Detentora de inúmeros prêmios em poesia e prosa poética tem 15 livros publicados, Lps e Cds gravados com poemas recitados, por ela própria.
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MARILENE CAON PIERUCCINI

TOQUE DE CARRILHÕES

A manhã adormece o sol.
No beiral fundo do mundo
Rouxinol acalanta o ninho
Trança de corda e espinho,
Escondido no ramo vazio

De caladas rosas, só rosas.

Sozinho voa o pássaro
Das asas abertas na rua.

Ícaro se faz sonho escorrido
Nas violas desacordoadas
De notas perdidas na aragem.

A imagem de luz desaparece,
Além da vida, as Três Marias
Sopram forte o vento do norte

Sozinho canta o pássaro
Das asas despidas de lua.

A roupagem da ave canora
Seduz na cor da folha ausente,
O trinado afina, ressente dor.

Criança ergue o véu e chora.
Na esquina a piorra balança
É hora de sombras vazias

Sozinho está o pássaro

De asas partidas e nuas.
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PRELÚDIO

No espaço da noite os passos
Da hora que se nega ir embora

Assola o tempo aflito
O grito de vento d’alma

Calma, mas que’inda chora
os traços de idos abraços
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SOLO DE CLARINETA


Escuto o barulho do mar
Marulho de cantiga
Antiga mais que o ar

Magia que nina a lua
Na rua vazia de você

Pensamentos desertos
Abertos com a sombra
Que assombra o lugar

Perdidos na dor da escolha
Havida no meio de mim
Nunca há paz neste jardim
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NOTA DE VIOLA

É um encanto sob a lua
O canto da rua, se tonta
Desponta a alegria de voltar
A canção da fantasia voa
No abraço da saudade
Onde a ansiedade de chegar
É acorde de segundo a toa
Que muda o mundo vão
No toque do coração
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COMPASSO PARA TUBA

No filme das paredes de vento
Cenas que o tempo reteve

Uma bola
Uma mão
Um rabisco

Um nome escrito de giz

Roda inteira a história
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TIO FONSIO

Tio Fonsio era um velho preto
Que vivia nas bandas de Vacaria.
Carregava no peito um amuleto
A respeito do qual sempre dizia
Ser a marca de sua vida escrava.
Porém o que ele nunca contava,
Por farejar catinga de agouro no ar,
Era a quantia de anos que fazia.

À noitinha com a lua já despontada
Sentava ao lado do fogo de chão
Chamava acenando a calejada mão
E com memória lúcida e endomingada
Encantada história se largava a contar.
O galpão então todo de cor se iluminava
Na faísca de vento do cavalo orelhano
Que em quatro paletadas varava
De laço a laço o assovio do frio Minuano

A luz do candieiro se transformava
Em madrinheiro da tropa de sonho
Que ele criava com seu jeito risonho
Prá eu cavalgar no galope da fantasia.
De mim escondia o lombo guasqueado
E a marca da tronqueira que desenhava
Nos pulsos a porteira do Rio Grande amado
Sabia, com certeza, onde morava a coruja.

E quando o braseiro enfim se apagava
Feiticeiro me aconselhava: menina não fuja
Das taperas que pela vida vier encontrar
Reponte as feras pra dentro da mangueira.
Tendo charola, nunca deixe o poncho rasgar
E quando alguém lamber a canga pro seu lado
No mesmo espeto querendo churrasquear
Se achar que não vale a pena, se faça fumaça,
Que é melhor seguir só que mal acompanhado.

Há muito tio Fonsio partiu e eu já cresci
Nunca dele e de seus conselhos esqueci.
Quando a tristeza de mim se aproxima,
Juro por Deus e pela luz que me ilumina,
É só pensar no que o preto velho ensinava
Quando a noite no campo descambava
E no braseiro pro chimarrão a água aquentava
Para voltar a ser dia na dor de minha alma.
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PIALO DE AMOR


Quando é tardinha no pampa espraiado
As chilenas anunciam o taita aporreado
Que boleia a perna, lento solta a açoiteira
Levanta os olhos prá Estrela-Boeira,
E faz uma prece a Senhora-Madrinha
Enquanto no céu aguado a lua caminha.

Acende o fogo de chão sob a chaleira
Arruma de pelego e badana a esteira
Estende como coberta o poncho azulado
E ouve o Minuano na ceva do chimarrão,
Rebenqueando de saudades o coração.
No entanto, vira o mate o guasca orelhano.

Charla só, jogando de mano com a solidão.
Lança o olhar matreiro em direção à coxilha
Ao escutar o chasque da tropilha de vento.
O estandarte farroupilha preso no tento
Da alma maltrapilha é o seu parceiro alento
Tão longe dos olhos da chinoca caborteira.

Cincha o peito do bravo o cabresto da paixão
A Água-Benta desenha a imagem faceira
Do cambicho que lhe pialou entranha e emoção
O guapo seca a lágrima na noite estranha
Que não é vergonha chorar a dor de amor,
Uma braça de sesmaria separando a moça-flor.

O viço da aurora encontra as Três Marias
Boleando a relva orvalhada e macia
O guasca, num tranco, encilha a montaria
Bota na mala de garupa só a sua poesia
Retoça por diante o manotaço da vida
E vai buscar a sua prenda tão querida.

Como regalo leva com carinho e jeito
Embretado no aramado do seu peito
Um querer haragano para ser domado,
Marca de estância velha a ser garantida
Orelhada na esperança de jamais
Riscar a estrada em solita andança.
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Sobre a Autora

Nascida em Vacaria, Rio Grande do Sul. Brasil.Formação superior em Filosofia e mestre em História da América Latina.Historiadora e escritora.
Membro da Academia Caxiense de Letras, cadeira nº 15, do Conselho de Cultura Municipal, da Comissão de Avaliação do Fundoprocultura e Responsável pela Área de Literatura da Lei Municipal de Incentivo à Cultura do município de Caxias do Sul, onde reside atualmente.
Autora de diversos livros, tendo recebido inúmeras premiações, inclusive o de “Melhor Obra Literária” em Caxias do Sul. Pesquisadora e documentalista do livro “Lendas do Brasil”.
Destacam-se entre seus livros já publicados: “Os Sertões na Teoria de Carl Gustav Jung”, “Retalhos de Mim”; “Retalhos de Uma Alma Nua”, “Retalhos”, “História do Aço no Brasil”. Incorporada na antologia “Grandes Escritores do Cone Sul”, volumes 1 e 2 e no “Dicionário de Escritores da Serra Gaúcha”.
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SIMÕES LOPES NETO(1865-1916)

A GALINHA MORTA

Vou cantar a galinha morta:
Por cima deste telhado.
Viva branco, viva negro,
Viva tudo misturado!

Eu vi a galinha morta,
Agora, no fogo fervendo...
A galinha foi p´ra outro,
Eu fiquei chorando e vendo!

Minha galinha pintada...
Ai! Meu galo carijó...
Morreu a minha galinha,
Ficou o meu galo só.

Minha Galina pintada...
Com tão bonito sinal!
Meu compadre me roubou
Pelo fundo do quintal.

Minha galinha morta
Bicho do mato comeu:
Fui ao mato ver as penas,
Dobradas penas me deu.

A galinha e a mulher
Não se deixam passear:
A galinha o bicho come...
A mulher dá que falar!

Eu vi a galinha morta,
A mesa já estava posta;
Chega, chega, minha gente,
A galinha é p´ra quem gosta!

Minha galinha pintada,
Pontas d´asas amarelas:
Também serve de remédio
P´ra quem tem dor de canelas...
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A POLCA MANCADA

A mancada ´sta doente,
Muito mal, para morrer;
Não há frango nem galinha
Para a mancada comer.

A dita polca mancada
Tem mau modo de falar:
De dia corre co´a gente,
À noite manda chamar.

A mancada está doente,
Muito mal, para morrer;
Na botica tem remédio
P´ra mancada beber.
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QUERO-MANA


Tão bela flor digo agora,
Tão bela flor quero-mana.
Que passarinho é aquele
Que está na flor da banana.
Co´o biquinho dá-lhe, dá-lhe,
Co´as asinhas, quero-mana!

Tão bela flor digo agora,
Tão bela flor quero-mana.
Que eu ando neste fado,
A própria sombra m´engana.

Tão bela flor quero-mana,
As barras do dia aí vêm.
Os galos já estão cantando.
Os passarinhos também.
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O PINHEIRO

Quem tem pinheiros tem pinhas
Quem tem pinhas tem pinhões,
Quem tem amores tem zelos
Quem tem zelos tem paixões.

Quem tem pinheiro tem pinha,
Quem tem pinha tem pinhão,
Do homem nasce a firmeza,
Da mulher a ingratidão.

Oh! Que pinheiro tão alto,
Com tamanha galharada;
Nunca vi moça solteira
Com tamanha filharada...

Oh! Que pinheiro tão alto,
Que por alto se envergou.
Que menina tão ingrata,
Que d´ingrata me deixou!
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O BOI BARROSO


Meu boi barroso,
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.

Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora
E gritei — aperta, gente,
Que o meu boi se vai embora!

No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou,
Dei de rédea p´ra esquerda,
E o meu boi me atropelou!

Nos tentos levava um laço
Com vinte e cinco rodilhas,
P´ra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!

Mas no mato carrasquento
Onde o boi ´stava embretado,
Não quis usar o meu laço,
P´ra não vê-lo retalhado.

E mandei fazer o laço
Da casaca do jacaré,
P´ra laçar meu boi barroso
No redomão pangaré.

Eu mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
P´ra laçar meu boi barroso
No remomão pangaré.

Eu mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
P´ra laçar meu boi barroso
Lá no paço da restinga.

E mandei fazer um laço
Do couro da capivara,
P´ra laçar meu boi barroso
E lacei de mia cara.

Pois era um laço de sorte,
Que quebrou do boi a balda
Quando fui cerrar o laço,
Só peguei de meia espalda!
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O BALAIO

Mandei fazer um balaio
P´ra guardar meu algodão;
Balaio saiu pequeno;
Não quero balaio, não.

Corta, meu bem, recorta,
Recorta o teu bordadinho;
Depois de bem recortado,
Guarda no meu balainho.
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O GUARAXAIM

Lá vem o guaraxaim
Com cara de disfarçado;
Ele vem comer galinha
E soltar cavalo atado!
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O ANU


O anu é pássaro preto,
Passarinho de verão;
Quando canta à meia-noite
Oh! que dor no coração!

E se tu, anu, soubesses,
Quanto custa um bem querer,
Oh! pássaro, não cantarias
Às horas do amanhecer.

O anu é pássaro preto,
Pássaro do bico rombudo:
Foi praga que Deus deixou
Todo negro ser beiçudo!...
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TROVAS DOS FOLIÕES

Aqui chegou o Divino
que a todos vem visitar;
vem pedir-vos uma esmola
p´ra o seu império enfeitar.

O Divino Espírito Santo
não pede por carestia,
pede somente uma esmola
p´ra festejar o seu dia.

O Divino Espírito Santo
agradece a sua oferta,
que lhe deram seus devotos,
para fazer sua festa.

O Divino agradece
aos senhores e senhoras,
e também aos inocentes
que lhe deram sua esmola.

A pombinha do Divino
de voar já vem cansada,
vem pedir aos seus devotos
que lhe dêem uma pousada.

O Divino Espírito Santo
vai seguir sua jornada;
agradece aos seus devotos
que lhe deram esta pousada.

Se despeçam, nobre gente,
que a pombinha do Divino
vai seguir sua jornada,
visitar outros vizinhos.
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O GAÚCHO FORTE

Sou gaúcho forte, capeando vivo
Livre das iras da ambição funesta;
Tenho por teto do meu rancho a palha
Por leito a pala, ao dormir a sesta.

Monto a cavalo, na garupa a mala,
Facão na cinta, lá vou eu mui concho;
E nas carreiras, quem me faz mau jogo?
Quem, atrevido, me pisou no poncho?

Por Deus, eu digo! que já fiz, um dia,
Uma gauchada de fazer pasmar:
De — ginetaço — ela deu-me o nome;
Tinha razão; eu lhes vou contar:

Foi que num dia numa bagualada,
Passei o laço num quebra, um puava;
Montei; ferrei-lhe na paleta a espora;
Ele ia às nuvens, porém eu brincava!

Mas, de repente, o animal se atira;
E sai correndo, pela várzea fora;
E eu, que, folheiro, lhe pisei a orelha,
Maneei as bolas, e o bagual estoura.

Gauchadas destas, tenho feito muitas,
Por isso ela me chamou um dia,
Rei dos monarcas, gauchão em regra!
Por Deus! te digo: que ela não mentia!

E, se duvidam, eu já marco a raia,
E que se enfrente parelheiro ousado;
Tiro ou parada; não reservo guasca;
E sou o juiz... de facãozinho ao lado!...

Lá no fandango, de botas e esporas,
Danço a tirana, o folgazão balaio;
E ainda mesmo que me dêem pancadas,
Saio rolando, porém; qual! não caio!

Lá na cidade, qualquer um baiano,
Pode, sem susto, me passar bucal;
Mas, tenho consolo, que cornetas desses,
Cá nos meus pagos têm passado mal!...

Se lá me perco nas encruzilhadas;
Eles sorriem pro me ver assim;
Aqui eu monto num cuerudo desses,
E rio, mesmo sem lhe dar mau fim.

Isto é que é vida; o demais é história;
E nem invejo do monarca a sorte;
Se a fronte cinge-lhe uma coroa de ouro
Eu cinjo a coroa de um gaúcho forte...

Se ele adormece em florido leito,
Sobre os arreios, é meu sono igual;
Se ele se nutre de iguarias mil,
Eu de churrasco, muita vez sem sal!

Não tenho trono onde vá sentar-me,
Nem falsa corte de adulação servil:
Mas sou a glória, perenal e eterna,
Da minha terra, do feliz Brasil!
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A ROCEIRA


Minha mãe nasceu na roça,
E eu criei-me na palhoça,
Eu sou filha do sertão;
Sou delgada e sou faceira,
Como o leque da palmeira,
Como o ramo do chorão.

Minha irmã é mais morena...
Tem os seios de açucena,
Tem os lábios de carmim...
Minha irmã é tão mimosa!
Minha irmã chama-se Rosa...
Porém gostam mais de mim!

Eu vagueio pelos campos,
Semelhante aos pirilampos,
As mariposas azuis...
Sei cantar... e canto e choro...
Sei bordar com fios d´ouro
Sei rezar na minha cruz.

Eu sei tudo quanto quero!
Sou esbelta, sou faceira,
Como a rama do chorão...
Minha mãe nasceu na roça,
Eu criei-me na palhoça,
Eu sou filha do sertão!

A quem amo? Não o digo;
Fique o segredo comigo,
Guardado no coração!
Amo os valos... amo a roça...
Eu criei-me na palhoça
Eu sou filha do sertão!
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MUSA GAÚCHA

Bonitaça no mais a Maricota.
Guapetona chinoca requeimada,
Braba como potranca malmarcada
Quando, de cola alçada, se alvorota.

Um defeito qualquer ninguém lhe nota:
Mãos pequenas, a face colorada,
E uma graça dengosa, malcriada,
Se requebra o fandango, a perdigota.

Não quer casar; e quando algum pealo
De sobre-lombo atiram-lhe, no calo
Ofendida se sente e faz negaça,

Pega o freio nos denes, e adeusito!...
Que então, como bagual que sai no jeito,
Nem à bola se pega a matreiraça!...
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Sobre o Autor

João Simões Lopes Neto (Pelotas, 9 de março de 1865 — Pelotas, 14 de junho de 1916) foi, segundo estudiosos e críticos de literatura, o maior escritor regionalista do Rio Grande do Sul.

Filho dos pelotenses Catão Bonifácio Lopes e Teresa de Freitas Ramos, era neto paterno do Visconde da Graça, João Simões Lopes Filho, e de sua primeira esposa Eufrásia Gonçalves, e neto materno de Manuel José de Freitas Ramos e de Silvana Claudina da Silva. Nasceu na Estância da Graça, propriedade de seu avô paterno.

Com treze anos de idade, foi para o Rio de Janeiro, estudar no famoso colégio Abílio. Retornando ao Sul, fixa-se em sua terra natal, Pelotas, então rica e próspera pelas mais de cinqüenta charqueadas que lhe davam a base econômica.

Envolveu-se em uma série de iniciativas de negócios que incluíram uma fábrica de vidros e uma destilaria. Os negócios fracassaram. Uma guerra civil no Rio Grande do Sul - a Revolução Federalista - e a economia local fora duramente abalada. Depois disto, construiu uma fábrica de cigarros. Os produtos, fumos e cigarros, receberam o nome de "Diabo", "Marca Diabo", o que gerou protestos religiosos. Sua audácia empresarial o levou ainda a montar uma firma para torrar e moer café, e desenvolveu uma fórmula à base de tabaco para combater sarna e carrapatos. Fundou ainda uma mineradora, para explorar prata em Santa Catarina.

Casou-se em Pelotas, aos 27 anos, com Francisca de Paula Meireles Leite, de 19 anos, no dia 5 de maio de 1892, filha de Francisco Meireles Leite e Francisca Josefa Dias; neta paterna de Francisco Meireles Leite e Gertrudes Maria de Jesus; neta materna de Camilo Dias da Fonseca e Cândida Rosa. Não tiveram filhos.

Como escritor, Simões Lopes Neto procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições.Entre 15 de outubro e 14 de dezembro de 1893, J. Simões Lopes Neto, sob o pseudônimo de "Serafim Bemol", e em parceria com Sátiro Clemente e D. Salustiano, escreveram, em forma de folhetim, "A Mandinga", poema em prosa. Mas a própria existência de seus co-autores é questionada. Provavelmente foi mais uma brincadeira de Simões Lopes Neto. Em certa fase da vida, empobrecido, sobreviveu como jornalista em Pelotas.

Publicou apenas quatro livros em sua vida: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914).

Morreu em Pelotas, aos 51 anos, de uma úlcera perfurada.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br

Miguel Perrone Cione (Ouvir Estrelas…)

Vincent Van Gogh (1853-1890)
Não há quem não esteja farto de conhecer as coisas da Terra; por isso, saber um pouco das maravilhas que se encontram além de nós, é salutar para o homem que, perdido na explosão das suas paixões, não consegue avaliar a fragilidade e a insignificância de sua presença no universo.

Talvez para que não olvidemos nunca essa insignificância, o Criador resolveu colocar diante dos nossos olhos, no painel das noites amenas, o infinito reino fulgurante das estrelas.

Muito além da Terra há um imensurável universo que tem vida, porque palpita no sinergismo dos seus componentes, tem luzes, cores, som, energia, e se eterniza na substituição cíclica dos seus elementos; é um universo intangível, sem limites, repleto de belezas e mistérios insondáveis, onde só o olhar dos que buscam a luz no fulgor divino das estrelas pode penetrar.

Mas, o fascínio e o esplendor das estrelas, vão além da nossa fantasia, do encanto e da fé que elas podem nos proporcionar: elas são responsáveis pelo equilíbrio do Cosmos, porque, como os seres vivos, elas nascem, vivem e morrem, mantendo constante o número necessário ao desempenho universal. Elas são das mais variadas cores, as branco-azuladas são as mais novas e as mais quentes, as amarelas, como o nosso sol, são as de média temperatura e meia vida. As alaranjadas, e por fim as vermelhas, são as menos quentes e mais idosas. Quanto maior é a estrela, mais breve a sua existência, porque a sua fornalha acesa consome mais rapidamente o combustível da sua reserva.

Vistas com um simples binóculo, ou ao telescópio, elas ficam mais brilhantes realçando a limpidez do seu colorido.

Existem agrupamentos de rara beleza, é o caso da jewell box, chamado em nosso idioma a caixa de jóias, no qual se aglomeram estrelas de diversos matizes, formando a figura de um “A” deitado; não menos de 50 estrelas fazem parte desse aglomerado. O colorido vai do esverdeado ao azulado e ao violeta, no centro do grupo há uma pequena estrela vermelha. Essa jóia celeste, do mais fino lavor, pode ser vista na constelação do Cruzeiro do Sul. Outra jóia é encontrada no sistema binário de Abireo, uma dupla da constelação do Cisne, observável desde o fim do outono até o início da primavera, que se compõe de duas belas estrelas, uma alaranjada e outra de cor azul intenso.

Por incrível que pareça, as estrelas também falam, mas em um idioma que ainda nos é totalmente estranho. Existem nelas potentíssimas fontes sonoras, como se fossem emissoras de rádio. A ciência que estuda essa linguagem com auxílio de computadores é a Radioastronomia. A mais potente de todas essas emissoras do espaço situa-se na constelação de Sagitário, praticamente no centro da Via-Láctea. O nosso sol também não foge à regra. Southworth, nos EUA, foi o primeiro observatório a registrar as radioemissões do sol, em 1942.

Embora os próprios computadores não tenham conseguido ainda codificar o idioma das estrelas, há na Terra os que podem entendê-las; são os que trazem na alma a crença e as sutilezas do amor. Talvez por essa razão que Bilac, referindo-se às estrelas, escreveu:

“Direis agora: Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
tem o que dizem, quando estão contigo?
E eu vos direi: Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas”.

Fonte:
http://www.movimentodasartes.com.br/miguelcione/default.htm

O Nosso Português de Cada Dia (Deram Duas Horas)



Deu duas horas no relógio da praça ou deram duas horas no relógio da praça???

Está aí uma dúvida comum. O correto é a segunda maneira de dizer: DERAM duas horas no relógio. Tanto a palavra BATER quanto a palavra DAR concordam com o número de horas. Se for mais de uma hora, as palavras BATER e DAR devem ficar no plural. Assim o correto é:

Deu uma hora, mas DERAM duas horas.

Bateu uma hora, mas BATERAM dez horas.

No entanto, preste atenção! Quando na frase eu digo quem é que deu ou quem é que bateu as horas, então os verbos BATER e DAR concordam com essa palavra, independente do número de horas. Por exemplo:

O relógio bateu dez horas.

O relógio deu dez horas.

Nesses dois casos, os verbos BATER e DAR concordam com a palavra relógio, pois ela indica que bateu ou deu as horas.

Fonte:
Prof. Dr. Ozíris Borges Filho. http://www.movimentodasartes.com.br/

Machado de Assis (O Relógio de Ouro)



AGORA CONTAREI a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.

Clarinha não estava na alcova quando Luís Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas, porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte. Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.

Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram dele; também não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada. Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.

Por este motivo, e outros que são óbvios, compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira, puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor, Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso, interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma explicação de Clarinha, qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.

Foi ter com ela.

Clarinha acabava justamente de ler uma página e voltava a folha com o ar indiferente e tranqüilo de quem não pensa em decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam dous reluzentes punhais.

— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e meiga que toda a gente concordava em lhe achar.

Luís Negreiros não respondeu à interrogação da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:

— Que tens?

Luís Negreiros parou defronte dela.

— Que é isto? disse ele tirando do bolso o fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com voz de trovão.

Clarinha mordeu os beiços e não respondeu. Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo em seguida à esposa:

— Vamos, de quem é aquele relógio?

Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele, abaixou-os depois, e murmurou:

— Não sei.

Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:

— Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma?

Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico.

Clarinha saiu da sala.

Pouco depois veio um escravo dizer que o jantar estava na mesa.

— Onde está a senhora?

— Não sei, não senhor.

Luís Negreiros foi procurar a mulher; achou-a numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si, Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira e sentou-se em frente de Clarinha.

— Estou tranqüilo, como vês, disse ele, responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?

— Não.

— Mas então...

— Oh! não me perguntes nada! exclamou Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é... deixa-me.

— É demais! urrou Luís Negreiros, levantando-se e atirando a cadeira ao chão.

Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do sogro, que subia as escadas gritando:

— Ó seu Luís! ó seu malandrim!

— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo me pagarás.

Saiu da sala de costura e foi receber o sogro, que já estava no meio da sala, fazendo vira-voltas com o chapéu de sol, com grande risco das jarras e do candelabro.

— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr. Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.

— Não, senhor, estávamos conversando...

— Conversando?... repetiu Meireles.

E acrescentou consigo:

"Estavam de arrufos... é o que há de ser".

— Vamos justamente jantar, disse Luís Negreiros. Janta conosco?

— Não vim cá para outra coisa, acudiu Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.

— Não o convidei?...

— Sim, não fazes anos amanhã?

— Ah! é verdade...

Não havia razão aparente para que, depois destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta vez com um tom descomunalmente alegre:

— Ah! é verdade!...

Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca, súbita e inexplicável alegria.

— Está maluco! disse baixinho Meireles.

— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo para dentro, enquanto Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.

Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:

— Obrigado, disse.

A moça olhou para ele admirada.

— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado e perdoa-me.

Dizendo isto, procurou Luís Negreiros abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para a sala de jantar.

— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.

Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar, e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.

Meireles era um homem alegre, pilhérico, talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa. Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha mais de dous em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia ele.

A causa da longa hesitação eram os costumes pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das mais invejadas moças da cidade.

E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às tormentas do alto mar.

Clarinha amava ternamente o marido, e era a mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense. Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a primeira nuvem?

Durante o jantar Clarinha não disse palavra, — ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.

"Estão de arrufo, não há dúvida, pensou Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. "Ou a arrufada é só ela, porque ele parece-me lépido."

Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.

Já se vê que o jantar, por maiores que fossem os esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua idéia é que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.

Quando veio o café, Meireles propôs que fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a idéia com entusiasmo. Clarinha recusou secamente.

— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens?

Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros.

— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão.

— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher, que desatou a chorar.

O jantar acabou assim triste e aborrecido. Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu que lhe diria tudo em ocasião oportuna.

Pouco depois saía o pai de Clarinha protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca mais voltaria a casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas ninguém lhe prestou atenção.

Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e pegou-lhe numa das mãos.

— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me fazias.

Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido. Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem duas; saiu do quarto, e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
"Mas que enigma é este? perguntava a si mesmo Luís Negreiros. Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o tal relógio?"

A situação era a mesma que antes do jantar. Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou tudo o que se havia passado desde que chegara a casa. Pesou friamente todas as razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a moça.

Luís Negreiros, depois de muito cogitar, inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma idéia má começou a enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina alumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama, mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu entrar o marido.

Houve um momento de silêncio.

Luís Negreiros foi o primeiro que falou.

— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?

A moça não respondeu.

— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.

A moça levantou os ombros.

Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:

— Responde, demônio, ou morres!

Clarinha soltou um grito.

— Espera! disse ela.

Luís Negreiros recuou.

— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.

Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:
"Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá."
Assim acabou a história do relógio de ouro.

Fontes:
ASSIS, Machado de. Histórias da Meia Noite. 1. Ed. SP: Companhia Editora Nacional, 2005.
Foto do Relógio = http://www.artmuseum.gov.mo