sábado, 19 de janeiro de 2008

Augusto dos Anjos (1884 - 1914)

Referendado como o Poeta da Morte, dos cemitérios, dos ossos e da carne em putrefação, Augusto dos Anjos, ao contrário do que muitos imaginam, segreda em sua obra poética uma filosofia esotérica libertária,capaz de nos guiar pela senda da mais pura transcendência.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão, esta pantera,
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


Estes são seus "Versos Íntimos", escritos em 1906 pelo poeta Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, a compor um dos mais declamados trabalhos deste enigmático discípulo de Baudelaire, cuja breve vida esteve marcada por um intenso questionamento filosófico, disseminado por toda a sua obra.

"Versos Íntimos" expõem, de modo formal e cruel, a nossa efêmera condição, fadados que estamos a nos prostrar na lama sepulcral não sem antes experimentarmos toda a sorte de sofrimentos advindos do relacionamento humano.

Só mesmo a perfeição faria toda a filosofia Hobbeana, a considerar o homem lobo do próprio homem, caber assim metrificada nos catorze versos (geralmente dois quartetos e dois tercetos) decassílabos heróicos - 6a e 10a sílabas são tônicas - de um único soneto. O poeta observa laconicamente o definhar de nossos sonhos, lembra-nos a todos de que a ingratidão é o natural presente que nossas mãos estão acostumadas a receber por toda a vida, e nos adverte acerca das traições a que estamos sempre sujeitos, considerando por isso inútil qualquer espécie de remorso que possamos sentir esboçar-se em nosso peito. São versos realistas, eivados de um pessimismo desconcertante, a reproduzir o comportamento da sociedade hipócrita à qual estamos condenados desde o nascimento.

Por dizer verdades como estas, Augusto dos Anjos pagou seu preço. Sua poesia, considerada por muitos impressionista, não agrada à maioria, posto que seus versos rasgam as principais feridas da natureza humana, não acostumada a falar da morte sem estremecer, pouco disposta a observar os erros de sua maneira absurdamente competitiva de viver.

Entretanto, se nos detivermos mais serenamente sobre sua obra, encontraremos não obstante os termos difíceis por onde esbanja o cientificismo, toda uma mística que lhe serve de arcabouço, inequívoca função compensatória para o pessimismo declarado do poeta, sempre a questionar severamente o sentido de nossas vidas. Em alguns de seus sonetos e outras partes não tão popularizadas de seus versos, deparamo-nos com um caráter filosófico ocultista absolutamente singular em toda a literatura brasileira, com genuínas reflexões à moda esotérica, em versos sublimados por uma religiosidade espiritualista, voltados para a libertação e transcendência desta nossa alma, a mesma que, no mais das vezes, vive atormentada.

Augusto dos Anjos nasceu aos 20 de abril de 1884 no engenho do Pau-d’Arco, na Paraíba do Norte. Criado no seio de um austero regime patriarcal, o poeta veio ao mundo em época tumultuada, quando a sociedade assistia ao crescimento dos movimentos abolicionista e republicano que se contrapunham à decadente monarquia de fim de século. Filho do advogado Alexandre Rodrigues dos Anjos e de D. Córdula Carvalho Rodrigues dos Anjos, Sinhá Mocinha para os íntimos, foi alimentado na primeira infância pelo leite da escrava Guilhermina, a quem dedicaria anos mais tarde o soneto "Ricordanza della mia Giuventú"

Augusto, terceiro filho de uma prole de seis, não cursou escola alguma até seus 16 anos, quando iniciou sua produção literária. Recebeu do próprio pai, junto de seus irmãos, todas as lições de humanidades. Somente o caçula não pôde ser educado pelo "Dr. Alexandre", vitimado que fora o genitor pela paralisia geral em 1905, ano em que faleceu; e foi o próprio Augusto quem se encarregou de ensinar o irmão menor. Ao pai, dedicou três sonetos na ocasião: "A meu pai doente", "A meu pai morto", e "Ao sétimo dia de seu falecimento". A família reunida, tomava lições às sombras do tamarindo, árvore que marcou a vida de Augusto, considerada membro da família, sob a qual o jovem se sentava para ler, estudar, e compor seus versos. A "árvore de amplos agasalhos" acha-se homenageada nos sonetos "Debaixo do Tamarindo" e "Vozes da Morte" entre outros, peças de elevada sensibilidade.

Dr. Alexandre era um misantropo. Por nada trocava a quietude de sua vida doméstica, e passava seus dias lendo, sempre alienado das questões administrativas do engenho, que ficavam a cargo de seu primo, Dr. Aprígio, monarquista de índole racista e reacionária. Alexandre era homem ilustrado, dono de vasta biblioteca. Títulos de todos os gêneros incluíam os hinos sagrados do "Rig Veda", cujo nome sânscrito significa "saber", e o "Phtah-Hotep", livro egípcio de sabedoria reputado à V dinastia, cerca de 2400 a.C. Augusto os menciona em seu soneto "Agonia de um Filósofo". O acervo abrangia obras filosóficas, poesia, literatura clássica, códigos do Direito, livros nacionais e obras importadas da Europa que chegavam por navio, escritas em todas as línguas latinas, inglês e alemão, além dos dicionários e das gramáticas de grego e latim. Todos liam de tudo naquela casa, até faziam circular internamente três jornais escritos à mão pelos próprios membros da família, "O Miserável", "O Espinho", e "O Ourinol da Tarde", este último temido pelo tanto de pilhérias que trazia, dirigido com bom humor pelo conservador Dr. Aprígio. Neles, semanalmente, "publicavam-se" crônicas, comentários políticos, opiniões, receitas, enigmas e charadas, além de verdadeiras disputas literárias. Lamentavelmente, deles nada resta; nenhum exemplar desta "imprensa sui generis" sobrou.

A família também se divertia promovendo sessões espíritas. Embora todos ali se intitulassem católicos fervorosos, a virada do século trazia em seu bojo a febre das sessões espíritas, muito praticadas na Europa em torno de manifestações curiosas que alimentavam a crença nos espíritos desencarnados, capazes de interferir em nosso mundo e nos trazer mensagens do além. Augusto dos Anjos não perdeu tempo e resolveu investigar o outro mundo por si mesmo. Passou a promover as sessões na sala de jantar de sua casa, para o desespero de sua mãe que, nestas horas, se agarrava ao terço ou recitava o responso de Santo Antônio, temendo o sobrenatural. Conta-se que Augusto logo passou a ser visto como médium qualificado. Certa feita teria recebido o espírito de Gonçalves Dias que poetou na melhor da verve maranhense. Não houve quem duvidasse da autoria dos poemas psicografados.

Mas convém lembrar que Augusto bem conhecia o estilo dos grandes poetas, ele próprio era repentista nato, capaz de fazer sonetos de cabeça em questão de dois ou três minutos, para só depois transcrevê-los num papel. Porém, nessa época, o Pau-d’Arco foi assolado por medos de assombração de toda gente. A família presenciara fenômenos no estilo Poltergeist na casa grande, eram batidas que à noite assustavam. Na capela do Pau-d’Arco (também cemitério), pegada à casa, surgiram manchas de gordura em seus ladrilhos, às quais o poeta chamou de "óleo malsão". A família estava atarantada. À noite não havia quem abrisse as janelas com medo dos espíritos, e os empregados se apavoraram por conseguinte, julgando que a gordura que escorria na capela era dos espíritos perturbados que haviam acordado com as sessões praticadas por Augusto. Dona Mocinha tomou atitude enérgica e proibiu as tais sessões. Nas "Cismas do Destino", o implicado perpetraria as pancadas que os atemorizavam:

"Todas as divindades malfazejas,
Siva e Ahriman, os duendes, o Yn e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas".

No ano de 1900 matricula-se no Liceu Paraibano, e após rápida passagem pelos bancos escolares presta exames para a Faculdade de Direito de Recife, sendo facilmente aprovado em 1903. Fez o chamado curso vago, estudava no Pau-d’Arco e ia a Pernambuco apenas cumprir as provas que, em seu caso, eram mais severas e incluíam todos os pontos do início ao fim do curso. Nesta época é influenciado pelo positivismo de Comte, propalado aos quatro cantos por seu professor, Tobias Barreto.

O poeta formou-se em 1907, mas, igual ao pai, não exerceu a profissão. Em 1908 é nomeado professor de literatura do Liceu Paraibano. Também passa a dar aulas particulares que serão seu ganha pão, uma vez que a família, por conta das crises econômicas e da vertiginosa baixa do açúcar no mercado internacional, viu-se obrigada a hipotecar seus dois engenhos, para os perder definitivamente em 1910. Neste mesmo ano, aos 4 de julho, casa-se com Ester Fialho, de quem haverá três filhos. O primeiro deles foi um natimorto de sete meses a quem o poeta escreveu seu soneto "Agregado infeliz de sangue e cal...". Em 1912 mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, vivendo sempre em pensões baratas e ministrando aulas. Nasce sua filha Glória nesse ano, e no seguinte, Guilherme. Mas sua permanência no Rio seria curta, só serviria mesmo para empreender a publicação de seu livro.

Mas antes de falarmos dele, convém ainda citar outro nome, não muito importante, mas que exerceu certo fascínio sobre a juventude de Augusto. Foi seu tio Generino dos Santos, que não vivia no engenho. Ao visitá-lo provocava-o com os ideais libertários que, como maçon convicto e republicano extremado, professava. Era também defensor ferrenho do positivismo que, embora presente na obra augustiana, não absorveu toda a inquietação do poeta. Augusto fora buscar suas verdades mais além; transpondo o cabedal de toda a literatura clássica, leu Darwin, Leibnitz, também os alemães Spencer e Haeckel, e abraçou-se ao filósofo Schopenhauer, precursor da noção de inconsciente, que o conduziu às portas do brahamanismo e do budismo, temas centrais de Augusto, a denotar a espiritualizada busca de sua mente efervescente, acusada pelos incautos de ter sido meramente pessimista e mórbida.

Exemplo disso é o "Monólogo de uma Sombra"; são 31 sextilhas que abrem seu único livro intitulado "Eu". A primeira edição data de 1912; trazia 58 poemas em 131 páginas impressas pela Princeps da Guanabara, dois anos antes da morte do poeta. Foi custeado por seu irmão Odilon dos Anjos, e não vendeu o suficiente para ressarcir o investimento de 550 mil réis. Só a foto de Augusto, a figurar no livro, custou 50 mil.

O que a princípio possa parecer egolatria, em verdade revela um Eu em amplo sentido de expressão, repleto de conflitos, tomado por densas questões existenciais e uma preocupação permanente com a transcendência da alma. O Eu de Augusto mais parece ser um Eu profundo, distante do ego, e substancializado como essência. Por ele Augusto se apresenta aos leitores em pleno exercício de reflexão cosmogônica, à moda dos antigos pré-socráticos, que se perguntavam acerca do cósmico segredo, a respeito da substância de todas as substâncias. Perpassa por toda sua poética uma noção monista e panteísta do universo, isto é, uma idéia defendida também pelos gnósticos e alquimistas, cuja raiz se encontra no orfismo, de que tudo na natureza é vivo, mesmo a matéria inanimada, e de que cada uma de suas partes representa o todo. À moda schopenhaueriana, Augusto acreditava na expiação como forma de solucionar a perene luta entre as vontades, e aguardava pelo advento de uma humanidade redimida e pura, quando os homens valorizariam o sentido universal da vida em detrimento das questões egóicas e particulares da alma. Isto está bem claro em seu título "Os Doentes", onde encara a morte como mera etapa do processo ininterrupto da vida, a assinalar não o fim, mas uma continuidade ou recomeço de seu perene ciclo.

A métrica rígida, a cadência musical, as aliterações e rimas preciosas dos versos fundiram-se ao esdrúxulo vocabulário extraído da área científica para fazer do "Eu" — desde 1919 constantemente reeditado como "Eu e outras poesias" — um livro que sobrevive, antes de tudo, pelo rigor da forma. Com o tempo, Augusto dos Anjos tornou-se um dos poetas mais lidos do país, sobrevivendo às mutações da cultura e a seus diversos modismos como um fenômeno incomum de aceitação popular.

Augusto dos Anjos bateu também às portas do ocultismo e da teosofia, galgando a mesma senda de Fernando Pessoa, de quem era leitor. Pessoa tornar-se-ia divulgador da doutrina de Mme. Blavatsky em Portugal, tradutor que fora das obras teosóficas de Annie Beasant. A doutrina esotérica ocupava a mente do poeta paraibano, que também se interessou pela astrologia, mas sua breve existência não lhe deu o tempo para que se iniciasse formalmente nas Escolas de Mistério.

Esta sua mística, espécie de filosofia em forma de poesia inclassificável, destoante de qualquer escola literária, transborda por seus intrincados versos, científicos sim, mas sobretudo herméticos. Exemplos tácitos de sua espiritualidade poética, dentre tantos outros, são "O Lamento das Cousas", soneto schopenhaueriano que bem sintetiza os paradoxos atualmente pesquisados pela mecânica quântica; "O Meu Nirvana"; "Caput Immortale"; "Louvor à Unidade", soneto que privilegia a mônada de Leibnitz (ou pitagórica, se preferirem); "Supreme Convulsion"; "Natureza Íntima", verdadeira máxima alquimista, a de que a natureza evolui per si e também em decorrência do aprimoramento pessoal de cada um; "Ao Luar", soneto em que descreve aquilo que bem pode ter sido uma experiência sua fora do corpo, fenômeno este com que se preocupam hoje os parapsicólogos; e "Ultima Visio", no qual é a alquimia gnóstica quem se pronuncia.

Vejamos um dos melhores exemplos desta sua visão budista-panteísta, essencialmente presente em seu diálogo interno "Solilóquio de um Visionário", publicado na citada edição do "Eu":

"Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue, transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo.

Vestido de Hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!"

O poeta, evidentemente, está aqui às voltas com o eterno mistério da morte, ao qual classifica como "velho e metafísico". Caberia uma tese inteira somente sobre este soneto, mas indiquemos o essencial. Suas metáforas tratam mesmo de um corpo que, uma vez enterrado, libertaria sua alma. O poeta diz comer seus olhos crus avidamente, ou seja, imagina transpor seu olhar superficial sobre as coisas, seu entendimento comum da vida. Uma vez liberto dos limites impostos pela carne, ao completar sua "digestão", isto é, ao metabolizar suas reflexões sobre o labiríntico tema, o poeta tem suas impressões visuais (algo próprio dos sentidos físicos) substituídas por visões divinas, recurso dos que se elevam em suas orações, e que permitem perceber as coisas pela ótica superior de um habitante das alturas (íncola etéreo). Esta é a condição da alma "desprendida", que se veste de Hidrogênio incandescente (a maiúscula é alegorizante, sugere não o elemento químico, mas algo extraordinário), original metáfora para o estado anímico incorpóreo. Passa assim o poeta a vagar pelas monotonias siderais, talvez uma alusão ao interregno entre duas existências para todo aquele que, como Augusto dos Anjos, acredite na reencarnação. Mas ele vaga improficuamente, e o sem sentido de seu vagar se explica justamente por causa de sua atual condição, a de se achar encarnado, com a alma às escuras, pois é necessário que nesta existência a alma ainda aprenda mais!

Cético em relação às possibilidades do amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me"), Augusto dos Anjos fez da obsessão com o próprio "eu" o centro do seu pensamento. Não raro, o amor se converte em ódio, as coisas despertam nojo e tudo é egoísmo e angústia em seu livro patético ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"). A vida e suas facetas, para o poeta que aspira à morte e à anulação de sua pessoa, reduzem-se a combinações de elementos químicos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas. Tal materialismo, longe de aplacar sua angústia, sedimentou-lhe o amargo pessimismo ("Tome, doutor, essa tesoura e corte / Minha singularíssima pessoa"). Ao asco de volúpia e à inapetência para o prazer contrapõe-se porém um veemente desejo de conhecer outros mundos, outras plagas, onde a força dos instintos não cerceie os vôos da alma ("Quero, arrancado das prisões carnais, / Viver na luz dos astros imortais").
Augusto dos Anjos, que nunca ficara doente em sua vida, foi tomado por uma pneumonia dupla de funesta proporção. Morreu assim, precocemente, aos 30 anos, em Leopoldina, aos 12 de novembro de 1914. Seu livro foi reeditado por seu amigo Órris Soares, acrescido de todas as suas outras poesias dispersas, em 1920. Desde então vem sendo o poeta nordestino mais lido, também o menos compreendido. Poeta não da morte, nem da carne em putrefação, mas sim da vida, capaz que foi de ver o mundo num grão de areia e de ouvir verdades ditas pelas pedras mortas

Fontes:

URBAN, Paulo. Augusto dos Anjos: O Poeta da Espiritualidade. Publicado na Revista Planeta nº 337 / outubro 2000. Disponível em


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