sábado, 16 de fevereiro de 2008

Plínio Marcos (Conto: Alvinho, bom palpite)

O Alvinho encarava um batente que não era mole. Se virava mais que charuto em boca de bêbado por uma grana muito mixuruca, que mal dava pra ele escorar os repuxos. Coisa que não é mole, hoje em dia, com a vida custando os olhos da cara como anda. Muito nego se abilola. Principalmente se o pinta é casado e tem montes de filhos pra sustentar. Às vezes, entra em bobeira e sai falando sozinho. E esse era o lance do Alvinho. Cheio de bronca com a sinuca de bico em que estava, ficava pelos botecos cavernosos e biroscas escamosas fazendo o maior quás-quás-quás da paróquia:

— Estou na piorada. Sei que estou. Mas um dia vira o jogo. Tem que virar. Do jeito que está não pode ser. Vê eu? Mino linha de frente, me atucanando nessa zorra encardida. Tá direito? Tá, não. Eu, Alvinho boa cuca, cheio de embaixada, perdido aqui nessa joça. Entregue às traças. A perigo perpétuo. Um dia tem que mudar.

E como esse papo que ele engrenava não dizia nada a ninguém, o jeito era ele mesmo continuar charlando:

— Nasci pra ser tratado a pão-de-ló. E, no entanto, estou só comendo capim pela raiz. Não dá pedal. Um dia me arrumo. Nem que precise fazer uma desgraça.

Claro que era conversa de bêbado. Nem o mais loque dos ouvintes botava fé. Estava tão escancarado que o bafo de boca do Alvinho era só desabafo que a curriola nem se tocava. E assim foi por anos e anos a fio. O Alvinho, na volta do trampo, parava na tendinha, enchia a fuça de cachaça e chorava as pitangas. Mas até araruta tem seu dia de mingau. Certa tarde, o Alvinho piou na parada e só deu um alô:

— Manda a penúltima.

O português do boteco fez a vontade do freguês. Botou a pinga, o Alvinho virou num gole e deu uma dica que fundiu a cuca de muito xereta:

— Inté. Vou cuidar de mim, que tou na bica pra ficar rico. E, sem maiores explicações, se picou. Largou a patota se badalando no seu destino:

— Não gostei dessa história do Alvinho.

— Nem eu. Ele não é de sair daqui antes das nove.

— Não vai ele, com essa mania de se acertar, entrar em canoa furada.

— Que ele pode fazer?

— Sei lá. Com essa mania de ficar rico, ele pode aprontar.

— Quê? Meter a mão grande em cima dos outros?

— E não pode querer sair por aí?

— Não ele. O Alvinho é de coisa nenhuma.

— Já vi muito papagaio enfeitado endoidar e fazer façanha.

— Isso eu também vi. Mas deixa andar. A cabeça dele é o seu guia. Se arrumar sarna, que se coce.

Mas não tinha chaveco nenhum na esperança do Alvinho. Acontece que, naquela semana, inaugurava a Loteria Esportiva. E como todo o povão das quebradas do mundaréu, desde onde o vento encosta o lixo até onde o vagau pisa devagarinho, o Alvinho via naquele babado a chance de tirar o pé do lodo. E, na cisma firme, se vidrou na loteria. Dali pra frente, até deixou de beber. Nem estrilava mais. Seu negócio era saber quem era o A.B.C. do escambau, o Lagarto da Barra do Catimbó, Nacional do fim da linha e tal e coisa. Então, era tentar a sorte. Sacrificava a família, deixava os mumus sem gororoba, mas arriscava seu palpite. Se alguém botava areia, ele descurtia:

— Que nada! Um dia eu faço treze pontos. Um dia dá eu na cabeceira. E tem um negócio: se eu beliscar uma nota, que nem precisa ser grande, pode ser dividida com um gango, eu nunca mais fico duro. Podem crer. Eu sei de mim. Se meu orixá me valer, eu faço e aconteço. Juro por essa luz que me ilumina.

E por nada desse mundo saía da cola. Estava rente. Fazia doze, onze, nunca menos de dez pontos. E, com essas e outras, o bruto sofria. Torcia. Passava o fim de semana inteiro com um brinco de malandro pendurado na orelha. Só de radinho de pilha, conferindo o resultado. E, remando a catraia em águas barrentas, o Alvinho ficava plantado na boca de espera.

E ficou nesse chove-não-molha até que veio o teste 44. Fanático como era, o Alvinho manjou o cartão e urrou. Se pudesse fazer três triplos, era barbada. Não teria erro. Contou sua grana e se apavorou: só tinha dois pixulés muito sem-vergonhas. No desespero, saiu caitituando pra cima do seu irmão e do seu cunhado. Azucrinou tanto os parentes que conseguiu dobrá-los. Conseguiu a bufunfa, apostou. Ficou na moita e se deu bem. Treze pontos. Uma glória! Treze pontos. Porém (e sempre tem um porém), mais novecentos e sessenta e oito negos, além dele, fizeram os treze pontos. A parte que lhe tocou foi de treze mil e novecentas jiripocas. Como teve que rachar por três, ficou com quatro milhos e caqueiradas. Quase nada. Mas, pra ele, que era salário-mínimo, era uma fortuna. E, sem se afobar, anunciou pros cupinchas:

—Como falei, nunca mais vou ficar duro.

E, mesmo a moçada do pedaço estranhando, o Alvinho meteu os peitos. Jogou o emprego pro alto. Comprou uma bicheira Buick 58, se encheu de roupas e virou outro Alvinho. Se embandeirou. Estava sempre à vontade. Sem ter que levantar cedo pra trabalhar, o pinta ficou um alegrão. E, de tanta folga que ele tinha, despertou inveja. Os bochichos começaram:

— Pombas! Quatro milhos dá pra tanto luxo?

— Sei lá. Eu nunca tive.

— Já faz tempo que ele ganhou na loteria.

— Pra tu ver. Já dava pra ter torrado a bufunfa.

— Principalmente gastando como gasta.

— E sem trampo.

— Deixa ele. Está com a vida que pediu a Deus.

E tanto o povaréu cortou o assunto que a pala bateu nas antenas de um cachorrinho. O cagüeta alertou o tira que era seu chapa. O tira precisava mostrar serviço e se botou na campana do Alvinho. O pesqueiro dele era maconha. Sem rodeio, o tira deu a dura. Flagrou o vencedor da loteria com a boca na botija. E foi cana dura.

No aperto, o Alvinho se abriu:

— Sabe como é. Arrumei a grana, me botei no comércio. Agora, ele vai puxar um tempão na galera gelada. Talvez dê pra ele se mancar que grana em bolso de otário atrapalha paca.

Fonte:
Histórias das quebradas do mundaréu", Mirian Paglia Editora de Cultura Ltda. - São Paulo, 2004. http://www.releituras.com/

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