domingo, 24 de fevereiro de 2008

Richard Wagner (O Anel do Nibelungo: Parte 1: O Ouro do Reno)

Dando início a série "Literatura na Música", discorreremos sobre algumas óperas famosas.

O ciclo de óperas O Anel do Nibelungo (Der Ring des Nibelungen) é uma das obras mais importantes de Richard Wagner. É baseado na mitologia nórdica, semelhante à germânica e mais documentada. Música e libretto foram escrito por Wagner entre 1848 e 1874.
A obra é constituída das óperas:

Das Rheingold (O ouro do Reno) - prólogo
Die Walküre (A Valquíria)
Siegfried
Götterdämmerung ou Ragnarök (O Crepúsculo dos Deuses)

1 - O OURO DO RENO

Ato Único - Cena 1.

Nas Águas do Reno, três ninfas, as irmãs “ondinas” - uma espécie de “sereias de água doce” (sem cauda de peixe), jovens guardiãs do “Ouro do Reno” - nadam, em ágeis movimentos. As mais afoitas, Wellgunde e Woglinde, brincam de correr atrás uma da outra, como crianças travessas. A terceira, Floßhilde, mais ajuizada, repreende as irmãs por sua brincadeira excessiva e seu descuido na vigilância do “Ouro”. Sem ser visto pelas três, um gnomo, o “nibelungo” Alberich, sobe a um rochedo e as observa, encantado. Dirigindo-se às jovens, elogia-lhes a graça, manifestando o desejo de tê-las para si. Elas, a princípio, assustam-se, mas logo passam ao gracejo, ante a investida apaixonada do feio e repulsivo gnomo. Maliciosamente - na típica malícia da implicância infantil - elas fingem ceder a suas tentativas, mas logo fogem, e caçoam dele. As três alternam-se, uma a uma, nessa maldosa brincadeira, despertando a raiva de Alberich, que, por fim, pára, exausto e furioso, erguendo, impotente, o punho cerrado.

Neste momento, começa algo a brilhar, de dentro das águas, num fulgor dourado que intensifica-se até ocupar todo o ambiente. As três ninfas param de brincar e divertir-se à custa do nibelungo, e passam a reverenciar aquela irradiação esplêndida, a que chamam “Ouro do Reno”: “Ouro do Reno! Ouro do Reno! Luminoso júbilo!”- Intrigado e curioso, o gnomo pergunta às meninas “o que é aquilo que tanto brilha”. Elas demonstram incredulidade perante o fato de alguém desconhecer “a esplêndida luz do fundo do rio, que reluz, sublime, através das águas”. Convidam o gnomo a participar de sua alegria, banhando-se, com elas, na luminosidade que se faz. Alberich não compreende o devoção das ninfas àquele “ouro”, que para ele nada significa. Woglinde e Wellgunde, empolgadas, deixam escapar comentários sobre o poder do ouro, “de cuja beleza o gnomo não faria pouco caso, se conhecesse a sua magia: aquele que do Ouro do Reno forjar um anel tornar-se-á senhor do mundo.”

Floßhilde, na prudência que lhe é peculiar, adverte as irmãs, que falam demais, pondo em risco a segurança do Ouro. As outras riem-se de seus cuidados, uma vez que “só aquele que renunciar ao amor” poderá apossar-se do Ouro, e o gnomo, lascivo que é, jamais se disporia a tal privação. Floßhilde concorda e despreocupa-se. As três voltam a convidar Alberich a participar do seu júbilo. Ele, porém, numa atitude totalmente mudada, olha fixamente para o Ouro e manifesta um resto de dúvida - talvez simulada - quanto ao poder mágico mencionado pelas jovens: “Estais brincando! Vou entrar no vosso jogo!” E salta ao rochedo onde está o Ouro. As meninas movimentam-se em algazarra, e, ainda sem perceber a intenção de Alberich, voltam a caçoar do nibelungo. Mas ele conclui seu objetivo: chega ao cume do rochedo, leva a mão ao Ouro e, após proferir: “Assim eu amaldiçôo o Amor!”, foge com sua prenda. As águas baixam, imergindo consigo as ondinas, que escutam, vinda do subsolo, a terrível gargalhada de Alberich, e gritam por socorro pelo Ouro roubado. A luminosidade anterior dá lugar a densa escuridão; as águas continuam baixando.

Ato Único - Cena 2.

A cena altera-se ante nossa vista, à medida em que as águas assumem o aspecto de nuvens, que transformam-se gradualmente numa névoa diáfana, sob uma claridade matinal, e vemo-nos diante de um espaço amplo nas montanhas. A luz solar, cada vez mais viva, torna visível um imponente castelo, sobre um cume rochoso. Num ponto da cena, sobre um terreno florido, dormem Wotan, o Rei dos Deuses, e sua mulher, Fricka, a Deusa do Matrimônio.

Esta acorda e tenta despertar o marido, que não acorda de imediato, e põe-se a falar, em sonho, sobre seu contentamento pelo castelo, cuja construção acaba e ser concluída: “A beatífica mansão do fausto, cujas portas e ameias hão de guardar-me; a honra do homem e o poder eterno, que elevam-se à glória imperecível!” Fricka, irritada, sacode-lhe o corpo, forçando-o a despertar: “Deixa de devaneios! Acorda e pensa!

Ao despertar e erguer-se, Wotan manifesta a mesma disposição de ânimo, e contempla, extasiado, “o mais augusto, o mais magnífico edifício!” Fricka o repreende por sua fixação na imponência da fortaleza, pois há um porém: “Esqueces, acaso, o preço que prometeste pagar?” O pagamento combinado é justamente Freia, a Deusa da Juventude, irmã de Fricka, e os construtores do castelo, a quem foi prometida a cunhada de Wotan, são os gigantes Fasolt e Fafner.

Wotan, displicente e sereno, responde a Fricka, como dando a entender que ela não deve imiscuir-se neste assunto: “eis a fortaleza, erguida, graças aos fortes gigantes; quanto ao pagamento, não te preocupes”. A deusa, revoltada, reprova a atitude do marido, “leviano, irônico”; diz que, fosse ela avisada a tempo, teria impedido aquele acerto, “mas vós, homens, tudo ocultam às mulheres, para que possam cometer sossegados os vossos desatinos; assim pusestes à venda minha querida irmã, tudo por causa da avidez que vós, os varões, têm pelo poder!

Sempre fleumático, Wotan argumenta, perguntando à mulher se ela é mesmo tão isenta de “semelhante avidez”, já que fôra ela própria que sugerira a construção do castelo. A resposta de Fricka - cujas palavras e a bela temática musical expressam nitidamente seu caráter caseiro e familiar - esclarece que “desejando a fidelidade de meu esposo, fui tola e julguei que um lar aconchegante e belo poderia sossegá-lo dentro de casa; mas a casa para ti nada mais significou que soberania e poder; o castelo só serviu para aumentar o tormento.” Seguindo a mesma linha melódica, um tanto alterada, Wotan - que é dado a freqüentes e longas ausências, e nada tem de marido fiel - replica, em tom de riso, que seria inútil aos intentos da mulher mantê-lo dentro da fortaleza, pois, mesmo apartado do mundo, ele disporia dele, à distância. Fricka volta a repreendê-lo com veemência, acusando-o de não respeitar nem valorizar as mulheres. Ele, agora sério, responde com severidade à acusação da esposa: “Para obter-te como mulher, perdi um de meus olhos;” - pois, de fato, lhe falta um olho - “que tola censura acabas de fazer!” E acrescenta que, quanto a Freia, não a dará em pagamento aos gigantes: jamais levara a sério aquele acordo. Fricka, então, exige-lhe atitude: “Trata, pois, de protegê-la agora!” A própria Freia então surge, a correr aflita, pedindo socorro à irmã e ao cunhado, pois “Fasolt já se aproxima, e vem buscar-me!

Wotan, na sua costumeira e irritante calma, dá a entender que não importa; pergunta a Freia se ela não viu Loge (o Deus do Fogo). Ao ouvir o nome de Loge, Fricka fica ainda mais aflita e furiosa, pois não entende a confiança que Wotan vota “àquele ardiloso”; Wotan argumenta que pode agir sozinho, sempre que bastam força e coragem; mas precisa do esperto Loge quando é necessária a astúcia, para vencer o inimigo. “Ele me estimulou a este acordo, e tudo agora depende dele.” Fricka reage: “É! E ele te deixa sozinho! Lá vêm os gigantes, e onde anda o teu experto auxiliar?” Freia grita pelos irmãos - Donner e Froh, Deuses do Trovão e do Sol - , e Fricka diz-lhe, soturnamente: “Primeiro te traem com um pacto imoral, e agora se escondem todos.

No exato momento, ao som, pela orquestra, de um tema estrondoso, repetitivo e pesado, entram Fasolt e Fafner, os dois irmãos gigantes, vestidos de peles cruas e portando rústicas e pesadas clavas. Fasolt, mais dado ao diálogo que Fafner, cujo temperamento é mais bruto e taciturno, dirige-se a Wotan: “Enquanto dormias serenamente, nós erguíamos o castelo, em árduo trabalho, jamais relaxando; e ei-lo de pé, levantado por nós. Faz agora a tua parte: paga-nos!

Hipocritamente, Wotan pergunta: “Sim, meu povo, dizei vosso preço.” Fasolt replica, ingenuamente: “Ora, já temos um preço; não te lembras? Freia, a bela; Holda, a livre;” (Holda é outro nome de Freia; os dois termos estão associados aos vocábulos “Frei”, livre, e “Holde”, bela) “tal foi o pagamento contratado; levá-la-emos, pois, para nossa terra.” Wotan responde, com brusquidão: “Estais loucos?! Solicitai outra paga! Freia não está à venda!” Fasolt, então, emudece, sem poder acreditar no que ouve, mas, por fim, reage: “O que? Tu, o próprio Wotan, estás pensando em trair um contrato?!”, e seu irmão, Fafner, escarnece dele, chamando-o de “imbecil”, por ter acreditado na trapaça de Wotan.

(Um dos atributos de Wotan é a condição de legislador, que ele exerce por meio de pactos de honra, ou seja, os tratados ou contratos, aos quais ele próprio deve rija fidelidade; sobre o cabo de sua inseparável lança, um arquétipo de seu poder, estão gravadas as Runas, caracteres teutônicos com os quais são selados os pactos. É, pois, indiscutivelmente cabível a indignação de Fasolt, ante esta atitude recalcitrante do “Deus dos Tratados”.) Com sua peculiar dignidade, Fasolt reprova o comportamento de Wotan, dizendo que é seu dever “guardar fidelidade aos tratados”, e que, ainda que Wotan seja sábio “mais do que os gigantes possam ser apenas astutos”, é exatamente um tolo gigante que lhe dá esta lição de moral, e que “maldito seja aquele que, sendo o guardião dos tratados, ainda assim é capaz de ser infiel aos mesmos.” Wotan, em crescente descaso aos argumentos do ogro, retruca: “Como pudeste levar a sério um contrato feito por pura brincadeira? De que pode valer a vós, brutos que sois, os encantos da bela e radiosa deusa?”

Fasolt, ofendido com a alusão à inferioridade que Wotan atribui aos gigantes, expressa-se, agora, em tom de mágoa: “Zombas de nós, não é? Que injustiça! Os luminosos deuses servem-se do trabalho dos rudes, prometendo-lhes uma bela e terna mulher, e agora invalidas o contrato?” Fafner, irritado com as simplórias instâncias do irmão, interrompe-o rispidamente: “Para com isso! Não vai adiantar! E a posse de Freia é de pouca valia para nós!” E, em tom mais baixo: “O único interesse que podemos ter com ela é o enfraquecimento dos deuses, que nutrem-se das maçãs douradas, que só ela sabe cultivar.” (Freia, a Deusa da Juventude, cultiva maçãs mágicas, douradas, que fornece aos seus parentes, os quais, ingerindo-as, são dotados de juventude eterna.

A falta dessas frutas causaria o envelhecimento e a fraqueza dos deuses, o que interessa aos gigantes, pois, de tal sorte, ficariam livres de seu jugo.) Wotan demonstra impaciência com a demora de Loge, do qual ele espera uma alternativa para o pagamento dos construtores. Fasolt exige uma pronta resolução, e só aceita Freia, nada mais! Os dois gigantes fazem menção de levar a deusa à força, quando irrompem Donner e Froh, os dois irmãos de Freia e Fricka. Ambos intentam impedir a investida dos gigantes, e Donner os ameaça com seu martelo (um martelo de grande porte, atributo do Deus do Trovão). Wotan reprime sua agressividade, interpondo, imperiosamente, a lança entre os inimigos: “Nada pela força! Minha lança guarda os pactos.

Todos estão desolados, quando, finalmente, aparece Loge. Em seus típicos movimentos “flamejantes” e ágeis, ele chega, e, irônico, parece zombar das aflições dos outros deuses. Ao ser argüido por Wotan sobre a solução “que fora buscar para corrigir o mau negócio”, ele torna: “De que negócio falas? Acaso te referes ao pacto que acertaste com os gigantes?” Começa, então, a tagarelar a respeito de suas características pessoais. Ele é um andarilho, que movimenta-se como bem entende; não é como os outros deuses, que desejam casar-se e gostam de “casa e lareira”. A eles, certamente, aquele castelo vem a calhar: uma imponente construção, como quer Wotan, agora pronta e sólida. Ele próprio fora fiscalizar as estruturas, e estavam perfeitas: “Fasolt e Fafner estão de parabéns!”

Wotan interrompe sua sarcástica eloqüência, e lembra-lhe a promessa que ele fizera de conseguir livrar Freia, promessa esta que fôra a única razão de ter ele, Wotan, aceito o seu conselho de firmar aquele contrato com os construtores da fortaleza. Loge, com ironia, diz que não: “O que eu prometi foi tentar achar um modo de livrá-la. Uma tentativa, sim, eu prometi. Mas como posso prometer encontrar, de fato, uma coisa que não existe?” Todos os deuses revoltam-se contra Loge, e ameaçam-no. Wotan ordena calma e defende “seu amigo”. Os gigantes tornam a exigir a solução, e Wotan dirige-se energicamente a Loge: “Vamos, seu cabeça-dura, cumpre o que prometeste.”

Loge, num simulacro de mágoa, diz que todos lhe são ingratos, e que só para resolver o problema de Wotan correu mundo atrás de um substituto para Freia que bem satisfizesse aos gigantes. Mas tudo em vão. Ninguém soube apontar nada mais interessante ao homem que “o amor e o prazer que a mulher pode proporcionar”. Loge prolonga-se nesse discurso desanimador, até que insinua que “há um, apenas um que renunciou ao amor e à mulher, optando pelo poder que lhe proporcionara o ‘ouro reluzente’”; este era Alberich, o nibelungo que roubara das “cristalinas crianças do Reno“ seu amado Ouro. Todos, sobretudo Wotan, ficam interessados; até os gigantes tendem a admitir uma mudança de idéia, caso lhes seja possível obter o ouro mágico. Inclusive o fato de estar em poder do traiçoeiro Alberich é mais uma razão para o cobiçarem, pois o gnomo, com ele, poderá escravizar e arruinar a todos. Fafner, por fim, sugere autoritariamente ao irmão que aceite o Ouro em lugar de Freia.

Fasolt concorda, a contragosto. (Diferentemente de Fafner, que é prático e objetivo, Fasolt, menos rude que o irmão, é um tanto romântico e está apaixonado por Freia. Seu único interesse para com ela é, realmente, tê-la como mulher.) Fafner, decidido, dirige-se a Wotan e declara que os gigantes abrirão mão de Freia, se, em lugar dela, lhes for entregue o tesouro do nibelungo. Wotan exaspera-se: “Como posso dar-vos aquilo que não tenho?” Fafner diz que, se o castelo foi construído a duras penas, nada custará a Wotan conseguir, pela astúcia, subjugar o gnomo, coisa que eles, os gigantes, jamais conseguiriam pela força.

Como Wotan tenta ainda recusar o que eles pedem, Fasolt e Fafner decidem levar Freia como garantia, dizendo que “voltaremos ao anoitecer, e se lá não estiver o tesouro, pronto para nós, Freia nos pertencerá para sempre”. Freia é levada, aos gritos. Donner e Froh querem reagir, olham para Wotan, como a pedir consentimento, mas o patriarca não dá ordem alguma. Eles ficam. Loge põe-se a observar, à distância, a grotesca marcha dos gigantes, que carregam Freia. Comenta, zombeteiro, cada etapa do percurso, conforme observa. Depois, olhando para os deuses, nota como eles envelhecem rapidamente. Escapa-lhes o vigor.

O coração de Froh baqueia, o martelo de Donner pende-lhe da mão, Wotan está encanecido, todos sentem-se fracos e desencorajados. Todos, menos Loge. Ele compreende o que está ocorrendo. Privados das maçãs de Freia, os deuses perdem o vigor da juventude; eles são dependentes das maçãs. Ele não. Loge é um “meio-deus”, sua natureza é outra, e Freia sempre lhe fôra avara, concedendo-lhe menos maçãs que aos outros. “Debilitada e submetida ao sarcasmo do mundo” - escarnece ele - “a estirpe dos deuses perecerá.” Fricka lamenta-se, repreendendo Wotan por sua irresponsabilidade. Wotan, tomando uma decisão súbita, ordena a Loge que o conduza ao “País dos Nibelungos” (Nibelheim), para que juntos apossem-se do Ouro do Nibelungo. Loge, ironicamente, pergunta-lhe se pretende devolvê-lo às ninfas do Reno. Wotan esbraveja com ele, e diz que o Ouro é para a libertação de Freia. Ordena aos outros que esperem até à noite.

Enquanto Donner, Froh e Fricka expressam votos de boa sorte, Loge e Wotan imergem numa fenda sulfurosa, rumo às cavernas onde vivem os nibelungos, sob a tirania de Alberich.

Ato Único - Cena 3.

Vemos uma passagem rochosa interna, movendo-se verticalmente, o que dá a entender uma descida ao subterrâneo. Surge o interior de uma furna. Saindo de uma estreita abertura, vem Alberich, arrastando brutalmente pelas orelhas um outro nibelungo, Mime, seu irmão. Alberich cobra do outro um artefato cuja confecção lhe ordenara. Mime tenta ludibriar Alberich, dizendo não estar certo da boa compleição da peça, mas, ante a atitude ameaçadora do irmão, acaba cedendo, por medo, e lhe entrega um objeto metálico. Alberich, constatando a perfeição do trabalho, castiga Mime, por perceber que ele tentava enganá-lo, no intuito de ficar com o artefato para si. (O artefato é o “Tarnhelm”, um elmo mágico que dá a quem o use o poder de invisibilidade ou de qualquer transformação desejada).

Para testar a eficiência mágica da peça, Alberich experimenta tornar-se invisível, o que dá certo, e, sem ser visto, surra Mime com uma chibata, rindo e escarnecendo do irmão: “Obrigado, estúpido! Fizeste um bom trabalho!” Ele vocifera, impondo sua tirania a todo o seu povo: “Nibelungos todos! Curvai-vos ante Alberich!” (Desde que do Ouro do Reno, obtido por roubo, forjara um anel mágico, Alberich tem a todos os nibelungos como seus escravos, que agora trabalham para ele na mineração do ouro, cujo acúmulo aumenta a cada dia.) Chegam, finalmente, Loge e Wotan, vindos das alturas das montanhas.

Loge percebe Mime, que, caído ao chão, está gemendo e se lamentando pelos golpes que recebera de Alberich. Cinicamente, Loge o cumprimenta, e pergunta o motivo de seus lamentos. O gnomo desventurado reage: “Deixa-me em paz!” Loge diz que pretende ajudá-lo, ao que Mime demonstra incredulidade, comentando a situação em que se encontra, sob a senhoria cruel do próprio irmão. Loge, então, dá início a uma série de perguntas sobre tal estado de coisas, às quais Mime vai respondendo, até que, intrigado, pergunta quem são os dois forasteiros. Loge responde: “Amigos teus. Aqui viemos para libertar-te, e aos demais nibelungos, deste jugo.” Mas, como percebe a aproximação de Alberich, Mime recomenda-lhes cuidados. Os dois forasteiros postam-se à espera do tirano, que chega, mais uma vez impondo terror e submissão a seu povo.

Reparando na presença dos dois estranhos, dirige a Mime interrogações ameaçadoras, mas, sem esperar resposta, fustiga-o a chicote, forçando-o a juntar-se aos outros servos. Por fim, exibindo ameaçadoramente o anel, profere, mais uma vez, sua expressão de déspota: “Tremei e obedecei prontamente ao senhor do anel!” Todos os nibelungos dispersam-se, apavorados, dirigindo-se aos diversos fossos, onde trabalham. Ficando a sós com os forasteiros, Alberich os interroga, com desconfiança: “O que quereis aqui.” É Wotan que responde, citando uma série de rumores que ouvira falar sobre “as maravilhas que estariam sendo operadas por Alberich, em Nibelheim.”

Envaidecido, o gnomo diz que “a inveja é que os atrai a seus domínios.” Loge intervém, reprovando a falta de hospitalidade e a ingratidão de Alberich, que “deve a ele o fogo do qual precisa para iluminação e aquecimento das frias cavernas onde vive, e para alimentação de suas forjas”; Alberich alude à “falsa amizade de Loge”. Este procura conduzir a conversa de modo a fazer com que Alberich revele detalhes sobre seu poderio e riqueza. Envaidecido e seguro de si, o nibelungo nada oculta; afirma que, tão logo o tesouro atinja um grande acúmulo, ele poderá assenhorar-se do mundo inteiro. Fingindo indiferença, Wotan pergunta-lhe de que modo começará seu empreendimento dominador. Alberich responde que será justamente lá nas alturas onde eles, os deuses, vivem. Entra em detalhes a respeito de seus planos que despertam a fúria do temperamental Wotan, que ameaça golpeá-lo mortalmente.

Alberich parece não perceber sua investida, prontamente bloqueada pelo astuto Loge. Este dá prosseguimento a seus estratagemas, tecendo efusivos elogios às conquistas de Alberich, cuja vaidade, cada vez mais inflada, leva-o a fazer mais e mais revelações. Fala sobre o “Tarnhelm”, que lhe confere a possibilidade de “vigiar tudo sem ser visto”. Loge manifesta incredulidade quanto a esse poder. Alberich desdenha: “Achas que sou fanfarrão como tu?” Loge exige uma prova, ao que o vaidoso Alberich assente. Colocando o Tarhelm sobre a cabeça, profere a fórmula mágica, e logo transforma-se numa serpente monstruosa. Loge simula pavor, suplicando à serpente que “não o devore”. Wotan, por sua vez, ri-se e faz um elogio hipócrita à façanha de Alberich, que, voltando à sua forma original, pergunta desafiadoramente aos “sábios” se acreditam nele agora. Ainda fingindo medo e admiração, Loge se dá por convencido, mas interpela-lo novamente, perguntando-lhe se “assim como pudeste crescer, podes também diminuir?” Refere-se Loge a uma eventual necessidade de escapulir, o que faria necessário tornar-se pequeno, de modo a que pudesse escapar por qualquer mínimo espaço. “Mas creio que isto seja muito difícil”, conclui Loge, despertando ainda mais o exibicionismo de Alberich, que ri-se de tamanha “estupidez”, e pede-lhe que ordene a que proporção quer que ele encolha. Loge insinua a dimensão do corpo de um sapo.

Usando novamente o elmo, e proferindo a invocação, Alberich assume justamente a forma de um sapo. Pronto: Loge alcançou seu intento. Com o pé, Wotan imobiliza o metamorfoseado Alberich; Loge retira-lhe o elmo mágico. Alberich volta ao normal, esbravejando, e, sendo amarrado com uma corda, é carregado por Wotan e Loge, pelo mesmo caminho que os trouxera à caverna.

Ato Único - Cena 4.

De volta à mesma região montanhosa onde ocorreram os incidentes com os gigantes, os triunfantes Wotan e Loge trazem Alberich, aprisionado. Loge zomba dele, que responde com impotentes ameaças. Wotan declara que sua libertação tem um preço. Ao que Alberich continua a ameaçar, Loge lembra-lhe que “só pagando o preço exigido, poderá ficar livre e vingar-se”.

Sem alternativa, o nibelungo pergunta o que lhe cobram. Wotan exige o tesouro. Contrafeito, Alberich cede, lembrando que, se o anel continua em seu poder, poderá recuperar tudo depois. Conclama seus escravos para que tragam para cima todo o ouro acumulado. À medida em que eles obedecem, Alberich manifesta a vergonha que sente ao ver-se naquele estado (atado em cordas) diante de seus servos. Estes concluem o transporte do tesouro, e Alberich ordena-lhes, com sua usual arrogância, que voltem ao trabalho, que ele logo regressará para vigiá-los. Julgando ter cumprido a exigência de seus carcereiros, o nibelungo exige que o deixem ir, e que lhe devolvam o Tarnhelm. Loge diz que o elmo também faz parte do preço, e junta-o ao tesouro. Mais uma vez indignado, Alberich, no entanto, torna a ponderar, supondo que o mesmo que lhe confeccionara o artefato (Mime) far-lhe-á outro igual.

Alberich exige novamente que o libertem. Loge pergunta a Wotan se pode soltá-lo, ao que o outro responde que ainda falta o anel, que o gnomo também deve entregar. Ante a alusão de perder o anel, fonte de todo o seu poder, Alberich sobressalta-se: “A vida, mas não o anel!” Wotan replica, autoritário: “Eu quero o anel; quanto à tua vida, faz dela o que quiseres!” Desesperado, Alberich grita que o anel é tão próprio dele o quanto o são as partes do seu corpo.

Com iracunda veemência, Wotan acusa: “Chamas o anel de ‘tua propriedade’. Estás variando, desprezível gnomo? Pergunta às Filhas do Reno se elas de bom grado te ofereceram o ouro!” Alberich vocifera, ocultando uma interna súplica, pelo que tenta manter seu tom de exigência, expondo argumentos que não comovem nem convencem Wotan, que, por fim, arranca-lhe o anel da mão, à força. Alberich emite um grito de desespero, após o que profere um lamento arrasado, ao passo que Wotan exprime seu triunfo. Loge torna a perguntar a Wotan se pode libertá-lo. Wotan consente. Após ser desamarrado por Loge, que, ironicamente, o declara livre, o nibelungo, no auge do ódio, exclama: “Estou livre agora?” - emite um riso curto e furioso - “Realmente livre? Pois eis a vós minha primeira saudação de homem livre: Assim como por maldição me foi útil, amaldiçoado esteja este anel!” Profere, então, a famosa e longa praga, pela qual determina a desgraça a todo aquele que venha a possuir o anel, até que o mesmo “volte à sua mão”. Vai-se embora, a correr. Dirigindo-se a Wotan, Loge faz uma lacônica referência à maldição de Alberich. Wotan responde com indiferença. Olhando à distância, Loge informa que os gigantes estão chegando, com Freia.

À medida em que a névoa se dispersa, aparecem Froh, Donner e Fricka, que vêm ao encontro dos recém chegados, ansiosos por saber como se haviam saído. Wotan tranqüiliza-os, mostrando o tesouro que libertará Freia. Donner comenta a aproximação dos esperados, e Froh, num belíssimo andamento melódico, exprime seu contentamento: “Que adorável ar volta a soprar sobre nós! Deleitosa sensação que invade os sentidos! Trágico seria a todos nós ficarmos para sempre apartados da juventude eterna e isenta de infortúnios, que nos concede o prazer jubiloso.” Clareia-se, aos poucos, o ambiente.

Chegam Fasolt e Fafner, trazendo Freia. Fricka tenta aproximar-se da irmã, mas é detida por Fasolt, que adverte-a sobre a condição ainda cativa da jovem deusa, pois ainda não foi pago o resgate. Wotan esclarece os gigantes, indicando o tesouro: “Eis aí o resgate. Seja, pois, devolvida Freia.” Fasolt, que, como sabemos, é apaixonado por ela, dirige-se a Wotan e, com tristeza, lembra ao deus o quanto lhe será penoso renunciá-la. Diz que, para esquecê-la, será preciso que o tesouro - isto é, a prenda que a substitui - seja empilhado ante a jovem, até que ele, Fasolt, não mais a veja. Wotan ordena que assim se faça.

Os dois gigantes fincam suas respectivas clavas ao solo, a cada lado de Freia. Wotan ordena aos outros que façam o trabalho, “demasiado repugnante para ele próprio”. Começa a deposição do tesouro, por Loge, que pede ajuda a Froh, passando ambos à desagradável tarefa, acompanhada de incômodas intervenções de Fafner, o qual acha que “aqui e ali” o acúmulo está mal compactado. Loge o repele, com impaciência, mas o gigante continua a exigir mais coesão. O trabalho é entremeado de comentários indignados de Wotam, Fricka e Donner. Este último quase provoca Fafner a uma briga, mas Wotan intervém, observando que, segundo parece, o acúmulo já perfaz a altura de Freia. Fafner diz que os cabelos da deusa “ainda brilham”, e exige o Tarnhelm para ocultá-los. Loge tenta argumentar, porém Wotan ordena a entrega do artefato. Após arremessar o elmo sobre o tesouro, Loge diz aos gigantes que o trabalho está feito. Fasolt, em seu peculiar sentimentalismo, lamenta-se ainda pela perda de Freia. “Tenho mesmo que deixá-la?” E, num súbito arroubo de paixão, percebe que ainda vê “o raiar dos olhos” de sua amada. Afirma que não a deixará enquanto ainda o veja. Fafner exige o fechamento da lacuna pela qual seu irmão enxerga aquele brilho. Loge argumenta que “já foi tudo entregue”. Fafner discorda: “Não, meu caro! Na mão de Wotan reluz ainda um dourado anel!”

Ante a hipótese de privar-se do anel, Wotan, reage, indignado. Loge tenta contemporizar, dizendo aos gigantes que o anel pertence às Filhas do Reno, a quem Wotan o devolveria. Num misto de indignação e sarcasmo, Wotan ridiculariza o argumento de Loge, dizendo que o anel lhe pertence, uma vez que o obtivera com dificuldade. Todos tentam, em súplicas, convencê-lo a abrir mão do anel, sem o que Freia permanecerá em poder dos gigantes. Wotan é categórico: “Deixai-me! Não cederei o anel!” De repente, ouvimos um forte, grave e profundo acento da orquestra, anunciando o que segue: após novo escurecimento da cena, emerge, de uma fenda na rocha, uma luz azulada, em meio à qual surge, a meio corpo, Erda, uma forma feminina de aspecto nobre, envolta em sua basta cabeleira negra. (Esta misteriosa personagem é - como veremos a seguir, e em próximas passagens da Tetralogia - a “mulher original”, uma espécie de “mãe universal”, detentora de todo o conhecimento e sabedoria, chamada às vezes de “Deusa da Terra”, pois vive nas profundezas, num eterno sono, em cujos sonhos acumula conhecimento. Sua existência “subterrânea” talvez seja uma representação simbólica do inconsciente, que tudo absorve e guarda; ou, mais amplamente, um símbolo do contexto espiritual do homem, ou mesmo do Universo, ao(s) qual(is) o inconsciente está ligado.

O despertar de Erda, isto é, o momento em que ela acorda e emerge à superfície, parece uma alusão aos raros momentos em que, altamente inspirada, nossa consciência percebe elementos profundos, que ordinariamente ignoramos, embora sejam inerentes a nosso espírito.) Num lento e sugestivo andamento melódico, Erda dirige-se a Wotan, numa firme e zelosa advertência: “Cede, Wotan, cede! Foge à maldição do anel!” A “mulher primeva”, sempre no mesmo tom profundo, avisa a Wotan que o anel lhe levaria à ruína “tenebrosa e irremissível”. Impressionado, Wotan dirige-se a ela: “Quem és tu, admoestadora mulher?” Em resposta, Erda expõe a grandeza de seus atributos: “Enxergo tudo o que foi, o que é e o que está para ser".

A mulher primordial do Eterno Mundo é quem adverte o teu espírito. Três filhas primevas que meu ventre gerou, as Nornas, costumam dizer-te à noite o que eu vejo. Porém, hoje, um grande perigo obrigou-me a vir-te em pessoa. Ouve! Ouve! Ouve! Tudo o que existe acaba. Um dia sombrio se abaterá sobre os deuses: eu te aconselho: renuncia ao anel!” Enquanto ela imerge lentamente, de volta ao subterrâneo, Wotan, tocado pelas profundas palavras de Erda, pede-lhe que fique e lhe conceda mais ensinamentos. Erda, concluindo sua imersão, responde que basta a Wotan o aviso que ela acaba de lhe dar, e que ele reflita “com ânsia e temor”. Acaba de imergir completamente, e Wotan tenta ainda segui-la, ao que é contido por Fricka e Froh. Donner, por sua vez, percebendo que a decisão está consumada, dirige-se aos gigantes, avisando-lhes que o anel lhes será entregue. Todos fitam Wotan, que, após ficar pensativo por momentos, chama Freia para junto de si, e, aos gigantes: “Eis vosso anel!” E lança a jóia sobre o tesouro. Fasolt e Fafner libertam Freia, que corre a abraçar os outros deuses. Fafner, tomando a iniciativa, abre um enorme saco, no qual começa a introduzir as peças do tesouro. Fasolt, percebendo que o irmão está armazenando para si uma parcela exagerada, o que resultaria numa partilha desigual, e que ele, Fasolt, ficaria em prejuízo, reclama com Fafner, dizendo que aquilo não está direito.

Fafner, arrogante, responde com um argumento absurdo: “És um janota, a quem me foi difícil convencer a aceitar o ouro em lugar da garota. Se ficasses com ela, não a dividirias com ninguém; é justo, portanto, que seja minha a maior parte do tesouro.” Indignado, Fasolt pede aos deuses que atuem como árbitros daquela questão. Wotan dá-lhe as costas, com desprezo, e Loge tem a idéia de sugerir a Fasolt que fique com o anel e deixe o resto todo para Fafner. Fasolt, então, exige o anel, alegando que a jóia corresponde aos olhos de Freia. Fafner, no entanto, não quer ceder o anel, e os dois irmãos passam da discussão à luta corporal; Fasolt toma o anel à força, mas Fafner dá-lhe um golpe mortal com a clava.

Fasolt cai por terra, e, enquanto ainda agoniza, Fafner retira-lhe do dedo o anel, e diz, com desprezo: “Agora sonha com a tua Freia; no anel nunca mais porás a mão”. Fasolt morre, e enquanto Fafner conclui o ensacamento do tesouro, ocorre uma forte comoção entre os deuses, após a cena de fraticídio que acabaram e presenciar. Wotan entende, então, a força da maldição de Alberich, que acabara de apresentar seu primeiro efeito. Fricka procura acalmar Wotan, e Donner, também abalado, decide convocar suas servas, as nuvens, para provocar uma tempestade que purifique o céu e o ambiente. Após subir a uma rocha, brande seu martelo e profere a célebre invocação: “He da! He da! He do! A mim, nevoeiro! Vapores, a mim! Donner, vosso amo, convoca-vos!” .

Donner conclui suas ordens, e, com um sonoro golpe do martelo sobre a rocha, brada a Froh: “Aqui, irmão! Mostra o caminho da ponte!” Faz-se o arco-íris, ao qual Froh convida os demais a passar, rumo ao castelo, agora pronto para ser ocupado. Wotan pronuncia uma longa saudação à fortaleza, e fala a Fricka, como um cônjuge cordial: “Vem, mulher, viver comigo no ‘Walhall’” (ou “Walhalla”, nome que Wotan acaba de dar a seu castelo). Fricka indaga-lhe pelo significado de tal nome. Wotan responde que o sentido daquele termo “será dado a ela pela coragem de Wotan, que soube inspirá-lo, vitoriosa sobre o medo” (é, sem dúvida, uma explicação enigmática). Entrementes, Loge os acompanha e observa à distância, fazendo um comentário crítico. (Por ser mais realista que seus companheiros, Loge não incide no erro deles, que tendem a ocultar de si mesmos a série de fatores e eventos negativos ou indignos, pelos quais tornara-se possível a conjuntura desse momento, que tranqüiliza e alegra a todos.) Diz o Deus do Fogo: “Envergonha-me cooperar com eles. Sinto o belo desejo de transformar-me de novo na chama tremulante, para consumir estes que um dia puseram-me entre cegos para que eu acabasse como um parvo. Assim os deuses seriam mais divinos!

Entretanto, faz-se ouvir, das profundezas, o lamento das Filhas do Reno, por seu Ouro perdido. Wotan pergunta a Loge o que é aquilo. Loge esclarece, e Wotan, irritado, ordena-lhe que as repreenda. O outro obedece, sugerindo às jovens um ridícula compensação: “Se vosso Ouro não mais brilha, Wotan quer que, a partir de agora, fiqueis felizes com o novo esplendor dos deuses!” Os deuses riem. As ondinas reiteram seu lamento, ao passo que os deuses continuam a caminhar sobre a ponte. Cai o pano.

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