quarta-feira, 5 de março de 2008

Adriano Macedo (O Velório das Fotos ... Defunto Velado)

Os olhos vividos acompanhavam cumprimentos consternados, sorrisos escassos, rostos disformes, sentimentos divididos e solidários, cenas típicas de um velório comum. Mas aquele não era como outro qualquer para o tio Aristides. O ambiente ganhava um ar diferente ao chegar com a máquina a tiracolo e o álbum com as fotos do encontro no ano anterior, o enterro do primo Alberto. As imagens provocavam alegre nostalgia nos familiares, especialmente quando se detinham em algum retrato onde estivesse tia Joaquina. Enquanto o semblante gélido da tia causava consternação na câmara mortuária, as fotos incitavam recordações de outros velórios, quando Joaquina, como a parenta mais velha da família, assumia a responsabilidade de consolar irmãos, sobrinhos e primos.

Franzino, careca, de comportamento delgado e pensamento robusto, tio Aristides, ao contrário de todos, sentia íntima satisfação nos velórios da família, raras oportunidades de rever os parentes. Tirava fotos dos sobrinhos - alguns com a rebeldia estampada no rosto -, dos primos de feições dilapidadas pelo consumo excessivo de bebida, das cunhadas a tricotarem experiências reveladas em novos fios brancos na cabeça, e dos agregados que regavam a paciência com benevolente apatia para tolerar as birutices da tia Nazaré.

O ritual se repetia a cada velório. Com uma única regra: o corpo não podia ser fotografado. Para Aristides, as últimas lembranças do parente deveriam ser apenas as fotos batidas em ocasiões anteriores. Daí a importância dada aos álbuns de fotografia levados por Aristides. No entanto, a norma para não fotografar o corpo existia por uma questão técnica. “Foto de defunto dá azar, vela o filme inteiro”, dizia com a autoridade de quem perdeu todas as chapas na primeira e única vez a infringir a lei. Aconteceu no velório de tia Honorina. Ao buscar as fotos no laboratório, o moço do balcão deu a notícia com a mesma frieza dos mortos:

- O filme velou.

- Como velou?

- Não sei, deve ter sido o espírito de porco do laboratorista de segunda-feira.

- O sujeito estraga o meu filme e você vem com gracinha pra cima de mim?

- Sinto muito, mas não posso fazer nada.

- Me chama o Joaquim!

O máximo que tio Aristides conseguiu com o proprietário foi um novo filme, as fotos ficaram no esquecimento. “Deve ter sido praga da tia Honorina”, presumiu. Aristides era jovem naquela ocasião e tia Honorina, irmã do pai, era uma das poucas da família a repudiarem as fotografias em cemitério.

Quando começou a fotografar os velórios da família, Aristides, com apenas dezessete anos, provocou um escândalo. A primeira vez foi no Cemitério do Bonfim, com a Rolleiflex que um tio lhe dera de presente. Era o enterro do avô Geraldo, que cedeu à cirrose. Ao chegar em casa, Aristides levou algumas varadas de bambu e ainda teve o filme retirado à força da máquina.

- Isso é uma falta de respeito, Aristides. Onde já se viu reunir parentes pra fazer foto num velório?

- É uma recordação pra posteridade...

- Não me responda, Aristides.

E toma varada de bambu. Aristides ficou tão indignado com a incompreensão que pensou inúmeras formas de vingar a humilhação sofrida pelo pai. O que mais incomodou não foi a surra recebida e sim uma espécie de dor moral, como se o pai tivesse arrancado de dentro dele um sonho oculto e jogado no lixo, junto com o filme, uma íntima esperança de imortalizar os familiares. Mas Aristides nem precisou executar qualquer plano porque o próximo enterro foi o do progenitor, atropelado na avenida Afonso Pena. Lá estava ele, no mesmo Cemitério do Bonfim, tirando fotos da família. A mãe sofreu tanto com o falecido que nem se preocupou com o filho. Com o tempo, os parentes não estranharam mais a atitude de Aristides, agora tio de quase vinte sobrinhos. Os irmãos censuraram no começo, hoje se divertem ao comparar fotografias antigas com as mais recentes.

- Tides, ela tava tão bem no velório do Zé. Manda uma cópia pra mim? – pediu a irmã Antônia, ao ver a foto de Joaquina no álbum, tirada três anos antes.

. Flashes digitais .

A novidade no velório de Joaquina era a máquina digital. Depois de quase cinqüenta anos fazendo fotos com a Rolleiflex alemã de estimação, Aristides se modernizou, economizou mais de um ano de aposentadoria para comprar o último modelo de uma Canon digital. Não porque fosse tecnicamente melhor, apenas para mostrar as imagens em alta resolução aos familiares quase no mesmo instante em que as batesse, antes de copiá-las em papel fotográfico.

- Ainda continuo bonita, hein Tides? – brincou Nazaré, ao ver as imagens no visor da nova máquina.

- Formosa e gostosa, Naná – cochichou Aristides no ouvido da cunhada, mulher do Olavo.

- Me respeita, Aristides!

- Você que insinuou.

Em mais de quatro décadas de registros fotográficos, Aristides gastou quase cinco mil chapas e tem em casa pelo menos trinta álbuns com fotos de velórios da família. Talvez pudesse até entrar para o Guinness Book, idéia sugerida pelo amigo Zacarias. Porém, tio Aristides nunca quis saber de recordes e sim de recordações. Era curioso como ele se afeiçoava mais aos parentes mortos que vivos. “Parentes que convivem muito tempo tornam-se assassinos da relação. Toda relação é uma relação de poder e o poder corrompe completamente, prefiro sentir saudade por quem partiu a me ver invadido pela apatia da onipresença”, explicava com aparente frieza aos curiosos de plantão.

Último filho a nascer em um lar de oito crianças, Aristides foi criado pelos irmãos, em especial o Olavo, oito anos mais velho e que costumava inventar histórias de fantasmas antes de dormir. Ao invés de assustado, Aristides ficava fascinado com as narrativas, tecia aventuras no além-mundo com os fios da imaginação. Olavo dormia e ele ficava ainda um bom tempo acordado tentando ver alma penada para ter o que contar ao irmão no dia seguinte. Sentia enorme prazer nessas brincadeiras, talvez para compensar a realidade de uma educação rígida e repressora, numa família em que o pai era ausente de afeto, um comerciante beberrão que, sóbrio, tentava impor aos filhos severa disciplina. A mãe não podia trabalhar, não só porque o marido a proibia, mas por causa do excesso de atividades em casa.

- Ontem eu vi uma alma penada na sua cama, Olavo.

- Que bobagem, Tides. Fantasma gosta de atazanar os adultos.

- Você que pensa. Ele até roncou no seu ouvido.

- Aristides, se você continuar inventando essas coisas vou parar de contar história de noite.

- Se você não quer acreditar tudo bem, só que ele tá dormindo no seu armário.

- Que idéia besta é essa agora?

- Eu vi. Alma penada adora lugar escuro e meia de criança porque o chulé não sai de jeito nenhum. Lembra daquela meia furada na semana passada? O fantasma que comeu.

Afoito, Olavo correu até o armário. Sabia que o irmão tinha aprontado mais uma travessura. Constatou o estrago em mais um par de meias da escola. Para se vingar de Aristides, fez greve de silêncio o dia inteiro e preparou o contra-ataque. Nada de brincadeiras e histórias de fantasmas naquela noite. Foi se deitar. Assim que Aristides dormiu, levantou-se da cama e iniciou a ofensiva. Acendeu uma vela e a colocou no chão, ao lado da cama de Aristides, que se encontrava de bruços, com o rosto voltado para a parede. Olavo subiu numa cadeira, colocada no meio do quarto e cobriu-se com um lençol branco, deixando apenas uma das mãos livres. Com ela, arremessou um travesseiro na direção da cabeça de Aristides, que acordou atordoado ao ouvir, em seguida, o grito do irmão.

Aristides e Olavo conviveram com histórias e brincadeiras desse tipo durante quase toda a infância, até o dia em que Aristides cortou uma das meias prediletas do pai, colocadas, por engano, no armário de Olavo.

- Foi o fantasma que comeu, papai.

- Que estupidez é essa moleque?

Aristides recebeu varadas de bambu e ficou de castigo uma semana. Nada de bola ou brincadeira na rua. Só voltou a pensar no mundo dos mortos lá pelos dezessete anos, quando tio Higino lhe deu de presente a Rolleiflex. Desde criança, Aristides fantasiava invenções engenhosas; certa vez sonhou criar uma máquina para fotografar fantasmas. Agora, com a câmera na mão, voltou a pensar no assunto. Não tinha convicção se existia vida após a morte, mas gastou mais de um ano em visitas freqüentes a cemitérios - de dia e de noite - na tentativa de flagrar algum fantasma errante. Depois do resultado previsível, Aristides encontrou o que buscava nos velórios da família.

Desabafo .

Introspectivo, tio Aristides, solteirão não tão convicto, mas sozinho por força das circunstâncias – tentou duas vezes, no entanto não conseguiu compartilhar o mesmo teto com outra pessoa -, convivia pouco com os familiares. Consumia o tempo entre o serviço público e a fotografia. Aposentado, passou a se dedicar mais a este ofício e aos poucos, porém fiéis amigos, com quem dividia as angústias numa cantina italiana perto de casa.

Nos últimos anos, Aristides passava algumas horas diárias em conversas existenciais com o Roberto, amigo trinta anos mais novo, conhecido, curiosamente, num cemitério. Enquanto fotografava mais um velório da família, Roberto acompanhava, a meia distância, os movimentos de Aristides, até resolver se aproximar.

- O senhor trabalha em algum jornal?

- Não. Por quê?

- Fotógrafo só aparece em cemitério quando é enterro de gente importante... pra sair no jornal.

- Os enterros na minha família são sempre importantes.

- Desculpa. Não foi isso que quis dizer... Meu nome é Roberto, sou jornalista.

Roberto ficou fascinado com a história de Aristides e, aos poucos, ganhou a confiança do amigo. Assim que deixava a redação do jornal no início da noite, passava na casa de Aristides, no bairro Floresta. Quando conheceu, pela primeira vez, o acervo de fotos, ficou impressionado com a diversidade de imagens. Roberto passou a admirar Aristides e a maneira inusitada de o amigo estar próximo dos parentes. Certa ocasião, Roberto quis saber quem era a moça bonita de cabelos pretos, olhos escuros e calça boca de sino.

- É minha irmã Teresa – disse Aristides, que selecionou outras vinte e cinco fotos que batera dela no correr dos anos.

Instigado pelos inúmeros retratos de Teresa, Roberto colocou as imagens lado a lado e constatou como o tempo escapou das garras daquela mulher, hoje de cabelos grisalhos, pés de galinha, rugas e óculos, porém com o mesmo sorriso cativante. As roupas denunciavam, ao mesmo tempo, uma moda fugaz e cíclica. O jornalista percebeu que o amigo era fonte de boas histórias, no entanto Aristides era avesso à notoriedade. “Depois que eu morrer você conta o que quiser”. Os encontros cada vez mais freqüentes terminavam na mesa da cantina, onde, naquela noite, foi comemorado o aniversário de setenta anos de Aristides entre meia dúzia de amigos.

Roberto reparou que Aristides bebia mais que o normal. Sabia que aquela cerveja era para aliviar um outro tipo de sede, uma singular aventura para tentar congelar o tempo e dispersar o futuro, carregado de esperança quando distante, porém retraído, indiferente e desiludido ao se aproximar do presente. Depois do quinto copo, uma câmara escura dentro de Aristides parecia ampliar um difuso estado de felicidade, revelado em sinceros sorrisos compartilhados com os amigos.

Do outro lado da mesa, o jornalista focava uma íntima preocupação. No dia anterior àquela comemoração, Roberto percebera, ao visitar Aristides, o cenho pesado e o abatimento do amigo, mais introspectivo que o habitual. Aristides acabara de remexer papéis e fotos. Os retratos dos parentes mortos preenchiam quase a metade do acervo. “O tempo passa, a fila diminui e a nossa vez vai chegando”. Pela primeira vez se deu conta de que o fantasma, em pouco tempo, seria ele mesmo. O desabafo de Aristides deixou Roberto pensativo.

- Quem vai continuar a fotografar depois que eu morrer?

Na manhã seguinte ao aniversário, Aristides foi encontrado estirado na porta de casa, distante deste mundo. Os amigos se sentiram culpados, acharam que a morte fora provocada pela bebida. Aristides morreu mesmo foi do coração, um ataque fulminante, disse o médico da família. Para homenagear o amigo, Roberto publicou, um dia depois, uma reportagem especial sobre Aristides. Jornalistas de outros veículos, estudiosos e colecionadores se interessaram não só pela história de Aristides como pelo destino das fotografias.

O jornalista, porém, respeitou a última vontade do amigo, já que nenhum familiar se habilitou a perpetuar o ofício. “Todo velório exige um enterro”, dizia Aristides. As fotos dos parentes mortos, já velados e enterrados, foram entregues aos familiares. O restante cumpriu o destino desejado por Aristides. “Não quero velas nem flores no meu enterro, cubra o meu corpo somente com os retratos de quem estiver vivo para eu me lembrar dos que ficaram”.

Fonte:
http://triplov.com/contos/adriano_macedo/

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