domingo, 16 de março de 2008

Roberto Protti (O Enterro do Juventino)

O Juventino morreu. Não se perdeu grande coisa. Passou pela vida só arrumando encrenca. Não fez amigos. Inimigos, ganhou diversos. De gênio difícil, não concordava com nada. Mulheres nunca aturou, e por isso era ferrenho celibatário, e sempre morou sozinho. A bebida e outros excessos complicaram o seu gordo corpo, que o levou para outra melhor, nem tão velho nem tão moço.

Agora a providência era depositar sua carcaça na tumba do cemitério.

O enterro não estava fácil, pois ninguém queria gastar na derradeira viajem do rejeitado morto. Mas foi descoberta no seu quarto, bem enfurnada numa gaveta, uma boa importância – resultado da profissão de sapateiro que exercia – e que daria para o enterro. Com alguma sobra, ainda, para a Igreja ajudar a sua alma no outro lado da vida.

Foi arrumado o velório, com caixão de primeira e todos os paramentos. Na sala, os presentes faziam a guarda do corpo e vez por outra se ouvia alguém dizer:

– O Juventino tinha lá os seus defeitos, mas era um bom homem!

– Não há dúvida! – concordava outro.

Em velório, o defunto sempre vira santo.

E lá se iam comentários transformando Juventino em homem de bem. Quanta falsidade! Havia até aqueles que forçavam o choro, inclusive aquele velha, que nunca se deu com o Juventino e agora se debulhava em lágrimas, como uma carpideira. Até o padre, que veio para encomendar a alma do morto, usava palavras com elogios inexistentes, talvez pelo óbolo recebido.

O tempo ia passando e as cenas aconteciam. Uma vela do paramento tombou e a roupa do morto começou a queimar. Houve corre-corre para apagar as chamas, mas o estrago já estava feito.

Alguém segredou:
– Até depois de morto o Juventino apronta!

Em seguida, uma velha deu um grito, pensaram que era piedade do finado. Antes fosse, pisaram seu calo arruinado.

Chegou a hora do enterro, e o carro fúnebre não aparecia. Eram dois quilômetros até o cemitério. Quando já se passavam trinta minutos da hora combinada, com todo mundo impaciente para se livrar da empreitada, eis que chega a notícia de que o carro estava enguiçado. E agora? O enterro tinha de ser feito no muque.

Candidatos para a proeza não apareciam, e o enterro não saía. Depois de marchas e contramarchas, com muita discussão, foi resolvida a questão. O time do carrega-caixão seria substituído a cada quarteirão. E assim seguiu o cortejo, pela Avenida da Saudade, para a última morada de Juventino. O caixão, com o passageiro, estava pesado. Todos que o carregavam, não viam a hora de seu quarteirão terminar. Até que, em dado momento, um mais fracote não agüentou, e largou a alça que empunhava. O caixão se deslocou, os outros não suportaram e a carga caiu no chão. Com o impacto, o fundo se desprendeu e o Juventino sobrou espalhado na rua.

Situação desperadora: com o fundo quebrado, como o defunto seria levado? Achou-se a solução. O caixão foi virado e a tampa passou a ser o fundo. O Juventino foi ajeitado, com o seu travesseiro na tampa e a cara pro outro lado. Como a nova tampa não parava, passaram em volta do caixão vários cintos amarrados dos homens do cortejo, que tiveram de segurar as calças.

Chegando ao cemitério, outra vez confusão. A campa designada estava lotada e os coveiros não estavam de plantam.

Êta Juventino complicado! Arranjando encrenca até depois de morto.

Ninguém mais aguentava estar em companhia do finado. Apareceram, então, pás e enxadas, fizeram um buraco e meteram o caixão. Cobriram rapidamente e mais que depressa foram embora.

Agora o encrenqueiro do Juventino jazia em paz e deixava os outros também.

Fonte:
PROTTI, Roberto. O embrulho inédito. Osasco, SP: Novo Século, 2004. p.106-107.

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