quarta-feira, 26 de março de 2008

Yoko Oshima Franco (Crônica da vida)

A vida me é tão óbvia. Cenas de emoções vividas. Dócil, seguia os passos de minha mãe, desviando dos capins mais altos que denunciavam a despedida de uma noite chuvosa, à medida que me esbarrava nas folhas e observava as gotinhas de chuva caírem. O frescor da manhã com sua leve brisa, o sol calmo anunciando um lindo dia e eu ali, simplesmente seguindo minha mãe. Não me importava para onde íamos, o que faríamos, nem por que. Girinos agitados nas poças de água causavam-me maravilha e minha imaginação voava, pois na minha sabedoria já sabia que se tornariam sapos. E da feiúra do sapo também já era conhecedora. Sentia-me completa ali, nada a desejar, simplesmente encantada com a natureza, com tudo o que ela continha, com tudo ao meu redor.

E este mundo foi crescendo, que festa jubilosa quando aprendi a ler e escrever. Como me sentia grandiosa podendo ler o nome das lojas da pequena cidade, quando descobri a aventura que os livros traziam e me permitiam as mais distantes viagens, por mundos e mundos povoados pelos meus sonhos. Sonhos perturbados por uma fase de angústia, de vazio, de perguntas... sem respostas! Ah, aquela amiga que todos têm, que nos ajuda nessa travessia, como se estivéssemos em um barco sem remo, perdidos num mar turbulento. Que presente a vida nos oferece para nos mostrar que não estamos sós.

E que desalento foi descobrir que era preciso algo mais para dar completude à existência. Hoje, sei que tudo o que precisamos está dentro de nós. E rio internamente, pois esta parte é a mais engraçada e, ao mesmo tempo, a mais comovente. Ela move o mundo. Ela inspira os poetas, os dramaturgos, os cineastas, os musicistas... a arte enfim! E quanta arte existe em nossa vida. Outro dia, vendo minha filha caçula sofrer de amor, disse: “veja, agora eu não lhe basto como antigamente”. Ela sorriu com tais palavras. E silêncio se fez e ambas percebemos que o tempo havia passado rápido.

Completude é um sentimento que só a paz oferece. E paz só se alcança se permitirmos a criança renascer em nós. Se isto não fizer sentido, seremos adultos (muitas vezes infelizes) buscando no outro (alguém, emprego, objeto...) a felicidade, talvez pais sofredores quando os filhos se tornarem adolescentes e a troca pelos amigos (ou namorados/esposos e esposas) se tornar insuportável. Podaremos os seus sonhos (em nome de sabermos o que é melhor para eles. Será?) e desejaremos que realizem os nossos (aqueles que não conseguimos realizar). Como se fosse possível delegar a nossa vida a alguém.

Mas a vida é eterna fonte de aprendizagem. E oferece oportunidade para ampla revisão, para quem ainda não tem olhos de ver. O corpo envia mensagens sábias e necessárias. Um exemplo. Foi incrível ouvir o desabafo de um professor: “Já tinham me avisado que ‘chegar aos quarenta’ era difícil, mas nunca me avisaram dos ‘quarenta e cinco!”. Digo incrível, pois a manutenção da aparência tem sido uma milenar preocupação feminina (por inúmeros fatores, a que não cabe aprofundamento no momento). Contrariando a natureza, o envelhecimento é algo inaceitável para a grande maioria (arrisco dizer, sem paz). Renegam sua expressão facial (é preciso extinguir urgente este vinco entre as sobrancelhas, ah e essas bolsas debaixo de meus olhos, o que é isso?), suas manchas nos braços, a perda da elasticidade da pele. Renegam a vida vivida. Pior, esquecem de viver o presente e a beleza de cada fase da existência.

Observando a bisavó, o bisnetinho exclamou, “isto pendurado no seu braço é gordura?” Risada gostosa se seguiu entre os presentes e veio a resposta da bisa “é pelanca mesmo!”. O biso completou “Idade não se esconde mesmo!”. Refleti sobre a questão. Quanta verdade havia na frase. E escondê-la para quê? Esta pergunta não deveria ser calada.

Muito tempo atrás, conversando com meu então vizinho, ele confessou, aos seus 86 anos: “sabe, chega uma hora em que viver torna-se enfastiante”. Não conseguia entender aquela frase. O tempo se passou e pude ver quantos cuidados necessitava a vózinha, ‘bisa’. O que vem depois de bisa? (Sim, pois era o caso) Entendi o seu João (meu vizinho). Aos 105 anos, a vózinha não mais andava, depois de sua última queda que lhe rendeu cirurgia no fêmur; suas mãos ágeis que foram – habilidosas no crochê, não mais se abriam; não havia mais lente de óculos possível para trazer-lhe novamente a visão, cujas cirurgias de cataratas tinham sido realizadas no passado; era preciso gritar para que ela ouvisse alguma coisa; o lado esquerdo era mais sensível, era preciso tocá-la com cuidado, pois qualquer pressão na sua pele provocava hematomas (parecia papel que se rasgava); necessitava de todos os cuidados imagináveis que iam da higiene à alimentação. A vózinha não tinha doença, seus exames de sangue sempre normais, sua mente saudável, lembrava-se mais de coisas do passado que recentes. A vózinha tinha apenas velhice. E um sorriso sempre estampado no rosto. A vózinha voltou a ser criança, conduzida apenas. Saberia para onde iria, o que faria, por quê? Tornou-se apenas uma espectadora da vida.

E, num determinado dia, partiu. Integrou-se à natureza. As lágrimas de despedida foram de paz. Viveu (o suficiente?) para dissipar rancores e angariar perdões. Hoje a palavra paz é uma das que me trazem maior significado. Tão curta e tão intensa. O amor? Por que não digo que é o amor? Ah, ainda não temos maturidade espiritual para entendermos o amor (em nome do amor se mata e muitas vezes ele é carregado de sofrimento). O amor é sentimento de liberdade e não de posse (para exemplificar, as pessoas diriam “eu amo você, mas respeito o fato de não ser correspondida, logo, como meu amor por você não tem limites e quero unicamente a sua felicidade, você é livre para seguir o seu caminho”!). Quanto à paz... ah este sentimento sublime! A paz é aceitação da vida (com todas as surpresas que ela encerra, boas e más). É integração com a natureza. É bem-estar. É tranqüilidade nas decisões. É desapego (amar as coisas sem possuí-las).

Quantas vezes olhamos as crianças e perguntamos “o que será que elas estão pensando, o que desejam, o que esperam da vida etc?”. Desafio alguém que ainda não tenha pensado nisso. Só se nunca observou uma criança. Elas têm paz. Por isso vejo a vida tão óbvia. Buscar a paz é sabedoria, não importa em qual fase de vida estamos. Bem, mas se ainda assim nada do dito aqui fizer sentido, vamos apenas viver. Um dia de cada vez, saboreando cada momento. O tempo revela o necessário, aos poucos e generosamente...

Fonte:
http://sorocult.com/el/colunas.htm

Nenhum comentário: