sexta-feira, 18 de abril de 2008

Artur de Carvalho (Uma Gata)

Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando, continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando de CD. A música sertaneja invadiu as FMs. Ele era do tempo em que as FMs só tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se lembrar. E agora... só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar. Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas. Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV Eles nem sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas na sua barriga. Ela não agüentava cócegas na barriga. Se davam bem.

Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha umas bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas de maizena.

É o que há.

Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como quem a pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores.

Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite. Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia. Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava, acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios, garotas loiras de biquíni. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia o filme, depois nem isso. Dormiu.

Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado. Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu.

Ela sempre voltava.
14 de julho de 1998
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Sobre o autor:

O cartunista e escritor Custódio fala sobre o autor:
"Artur de Carvalho poderia ser muita coisa na vida. Poderia ser arquiteto ou junkie, dono de padaria ou desenhista, pai careta ou um bicho grilo amalucado. Poderia ainda ser galã easygoing ou um marido correto, profissional talentoso e sujeito de bom caráter. Mas isso seria pouco. Artur resolveu ser então...
Tudo isso. TUDO.

Na luta para incorporar todos esses personagens em sua Távola Redonda, Artur, rei de múltiplas faces, acabou adquirindo bronquite crônica, cirrose crônica, e uma crônica humanidade que lhe dá uma força tão grande quanto desapercebida. Claro, Artur virou cronista. Da felicidade dele em descobrir sua verdadeira vocação, vem a nossa, de descobrir seus textos leves, suas observações reluzentes, seu humor doído de tão humano.

E assim, sem podermos ter as múltiplas faces que o autor colecionou pela vida, somos brindados pela doce viagem de sermos sócios delas, e entrarmos em sua casa, sua família, sua Votuporanga, que poderia ser Porto Alegre, São Paulo ou Nova Iorque. O Incrível Homem de Quatro Olhos é um livro arrebatador. Não arrebatador como aqueles torpedos certeiros que partem de uma esquadra bem armada. Mas sim arrebatador como uma brisa suave* que venha carregada de lembranças felizes.

*Brisa Suave, em tupi, é Votuporanga".
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Artur de Carvalho colabora com o "Diário de Votuporanga", interior de São Paulo, desde 1997. É autor dos livros "O Incrível Homem de Quatro Olhos", edição do autor — Votuporanga, 2000, e "Pah!", Vialettera Editora, 2003, que acaba de chegar às livrarias.
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Fonte:
http://www.releituras.com/

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