sexta-feira, 25 de abril de 2008

Maria Lindgren (Se eu fosse um livro...)

“Los libros son como las dentaduras postizas: se guardan en un bolsillo hasta que sea el momento de masticar”.

Escarafunchei a cabeça o mais que pude, para ver se me saía um livro antigo ou novo, que eu pudesse chamar de meu predileto, aquele com o qual ficaria preenchida. E por que isto assim, de repente? Por duas razões interligadas: é tema de concurso do site espanhol Escuela de Escritores, que um dia pretendo enfrentar em concursos, e a curiosidade que o próprio tema me despertou.

Se me pedissem para escolher uma flor, certamente seria rápido: uma rosa bem vermelha, uma vez que as arianas, dizem, gostam de fogo: se fosse uma planta, uma árvore secular imorredoura e altiva; uma música, Cry me a River, com Julie London ou As Quatro Estações, de Vivaldi; se uma comida, meu bacalhau de Natal; uma sobremesa, uma daquelas japonesas com sorvete e banana caramelada... Enfim, para quase tudo, a resposta não daria tempo de piscar, mas um livro...

Nos bons tempos de avidez de leitura de livros de papel, não apenas eu, mas todos os que compartilhavam minha juventude bem intelectualizada saberiam dizer sem titubear o nome do último livro que havíam saboreado que, apesar disso, não sei se seria o predileto.

Certamente, o romance estaria entre os russos ou os latino-americanos, estes últimos, muito em voga; um ou outro brasileiro bem sofisticado; um ou dois ingleses ...). O livro de poesia, para ser curtida em silêncio ou a plena voz, oscilaria entre os luso-brasileiros, sem dúvida, os ingleses, sobretudo Shakespeare” life is a tale, told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing”( a vida é um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, sem nenhum significado ) que, recitado em momento de baixa na vida, quase me custou um dedo numa janela de guilhotina velha.

Os amigos mais avançados ou snobs acabavam de descobrir o norte-americano J. A. Salinger (O apanhador no campo de centeio), mencionavam Clarice Lispector, ainda receosos, preferiam Rimbaud, entre os franceses, e falavam de Rilke, para embasbacar a platéia.

Se perguntasse à minha prima, naquela época, qual poesia mais lhe falava à alma, ela diria o Eu, de Augusto de Campos, encetando uma declamação direto: “...apedreja esta mão vil que te afaga e escarra nesta boca que te beija.

Enfim, a lista de literatura era longa e resultava sempre em discussão acalorada, com aquiescências e repulsas definitivas. Ninguém ousaria dizer não li nada esta semana. Cruz, credo! Só maluco passaria uma semana inteira sem ler um livro. Não seria fácil para ninguém dizer o título de seu livro predileto, tal a vertigem pelos livros.

Ler era compulsão aceita pelos melhores psis da época. Só fazia bem. Não se ficava em casa sem o lazer da leitura, não se saía à rua, sem um livro debaixo do baixo, nem que fosse para ir ao cinema, à praia ou em visita de muito bate-papo. O livro era mais importante na indumentária do que o resto da roupa. Usava-se até a expressão cultura axilar, em menosprezo aos que só o carregavam. Não tinha substituto no velho rádio e na TV insipiente, nem no computador inexistente quase.

Com a frase se eu fosse um livro na cabeça, abro o jornal El País e procuro a seção de Cultura. Fala-se de livros, porque dia 23/04 é Dia do Livro. Ressalta-se Barcelona, Festa de Sant Jordi, de confraternização de escritores e leitores, em meio a rosas vermelhas e livros, tudo em abundância. Percorro as fotos com inveja, confesso. Que vontade de correr para lá e partilhar da paella, em almoço feito para esse público tão especial.

Penso no contraste enorme com minha cidade no Dia do Livro, quase vazia de todo, por causa de feriadão, as livrarias fechadas ou abertas para ninguém, a não ser para um cafezinho.

Passeio pelo meu escritório de casa com bateladas de livros que ainda não li. Como nos diz Juan Cruz, no mesmo El País, no artigo El libro y la dentadura postiza, que recomendo: “Los libros son como las dentaduras postizas: se guardan en un bolsillo hasta que sea el momento de masticar”. Pior que hoje em dia, quase não há dentadura solta.

Fico mais triste ainda. Que idéia descobrir jeito para escrever logo em tempos de anorexia de livro! Olho para o computador, lembro-me dos escritores que publicam sem parar na Internet, sento na cadeira que gira e me mói, e renasço: ainda há esperança.

PS. Se eu fosse um livro, seria uma antologia poética internacional escolhida a dedo ou bolada por mim. Com certeza.

Fonte:
http://www.vaniadiniz.pro.br/maria_lindgren/cronica_se_eu_fosse_um_livro.htm
Colaboração de Douglas Lara in http://www.sorocaba.com.br/acontece

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