segunda-feira, 14 de abril de 2008

Nilto Maciel (Panorama do Conto Cearense – Parte I)

1 – INTRODUÇÃO

É do conhecimento de estudiosos de Literatura, escritores, professores, estudantes, e quem quer que se interesse por livros, a existência de uma quantidade razoável de obras para pesquisa relativas à Literatura Cearense, de historiadores e críticos, como as de Araripe Júnior, Dolor Barreira, Mário Linhares, Abelardo Montenegro, Antônio Sales, Guilherme Studart, Otacílio Colares, Raimundo Girão, Braga Montenegro, Sânzio de Azevedo. Muitas delas escritas na primeira metade do século XX e nenhuma voltada exclusivamente para o conto. Já em 1947, na “Explicação Necessária” da História da Literatura Cearense, Dolor Barreira constatava que “os materiais para uma história das letras do Ceará foram sempre e continuam a ser lastimavelmente exíguos. Não só exíguos, mas – o que é pior – esparsos e desconjuntos, disseminados que estão, irregularmente, por folhetos, almanaques, revistas e jornais”.

Outros, como F. S. Nascimento, Francisco Carvalho, José Alcides Pinto, Dias da Silva, José Lemos Monteiro, Paulo de Tarso Pardal, Dimas Macedo, Batista de Lima, para citar uns poucos, têm divulgado livros de história e crítica literária da maior importância, porém voltados para a Literatura em geral. Nada específico sobre o conto, embora dediquem partes de seus livros a este gênero ou aos seus cultores. Sendo assim, nada mais necessário do que uma História do Conto Cearense, mesmo breve, ou, se não for História propriamente dita, um catálogo, um panorama.

Objetiva-se, pois, neste ensaio reunir o maior número possível de informações relativas aos contistas cearenses, partindo-se das primeiras publicações de narrativa curta, de autor do Ceará, até hoje. No entanto, como há inúmeros compêndios de História, dicionários e enciclopédias, onde se encontram biografias de escritores, as informações biográficas aqui dadas serão sucintas, dando-se ênfase, neste caso, aos anos de nascimento e morte, à naturalidade (como quase todos nasceram no Ceará, serão anotados somente os nomes das cidades ou dos municípios) e aos títulos dos livros de contos publicados e o ano da primeira edição de cada um. O mais importante, porém, será situar cada contista na época em que escreveu, dando-lhe relevância ou não, dependendo do grau de sua importância enquanto vivo e após a morte. Essa relevância será objetivada na apreciação crítica de suas obras e na transcrição de trechos de artigos e ensaios críticos de alguns estudiosos ou simples articulistas. No entanto, como os contistas do século 19 e começos do XX já constam de todas as obras de História e Crítica, até mesmo de abrangência nacional, dar-se-á mais atenção aos principais contistas surgidos com o Grupo Clã, os que surgiram logo depois, especialmente quando da criação da revista O Saco e do Grupo Siriará, e aqueles que despontaram no final do século XX. Considera-se aqui “contista cearense” o natural do Ceará ou aquele que, mesmo tendo nascido em outro Estado ou País, tenha vivido e escrito conto no Ceará e cujas narrativas apresentem como cenário a paisagem cearense. Da mesma forma, aquele que cedo se mudou do Estado e escreveu e publicou história curta onde fixou residência.

Para facilitar a leitura do estudo, as obras de referência mais citadas terão seus títulos abreviados (primeiras letras), no decorrer das páginas. Assim, Apologia de Augusto dos Anjos e Outros Estudos, de F.S. Nascimento, a partir da segunda citação aparecerá apenas como (AAA), seguido dos números das páginas onde se acha o ensaio específico. E assim por diante. E também quanto a jornais, como Diário do Nordeste, que terá apenas as inicias DN. Nomes de concursos literários serão abreviados, como Festival Universitário de Cultura, reduzido para FUC. Nas referências à classificação de peças ficcionais breves em concursos (1º lugar, 2º lugar, etc), especialmente no capítulo dedicado aos novos contistas, constará apenas o número ordinal, para se evitar a repetição do vocábulo “lugar”.

2 – RETROSPECTO CONCISO

Um dos mais completos e, ao mesmo tempo, sintéticos estudos da narrativa breve no Ceará intitula-se “Evolução e natureza do conto cearense”, de Braga Montenegro, incluído na revista Clã n.º 12, de 1952, e reeditado como apresentação de Uma Antologia do Conto Cearense, em 1965. O ensaio contém 35 páginas e é composto de oito partes. Inicia-se assim: “A evolução do conto cearense, durante a fase romântica e naturalista, se processou com bastante lentidão. Poder-se-ia mesmo afirmar que nada realizamos, no curso desse longo período, relativamente à arte de contar, não fosse uma que outra manifestação de talento logo sepultada na poeira do tempo”.

Outro estudo valioso se intitula “O Conto Cearense, de Galeno ao Grupo Clã”, de Sânzio de Azevedo, do livro Dez Ensaios de Literatura Cearense, de 1985. Contido em 31 páginas, este ensaio se originou de uma aula proferida em 3 de junho de 1983, na Universidade de Fortaleza, no curso de análise literária “Panorama do Conto Brasileiro”.

O ensaio de Braga e o de Sânzio servirão de roteiro ou guia para a elaboração deste estudo histórico-crítico do conto cearense, especialmente até o período do Grupo Clã.

Os escritores cearenses se iniciaram na prática da história curta e da literatura em geral muito tardiamente, em relação aos escritores dos centros culturais mais importantes. Antônio Sales escreveu uma sintética “História da Literatura Cearense” (divulgada nas edições de 1939, 1945 e 1966 de O Ceará, de Raimundo Girão e Martins Filho, e depois no Dicionário da Literatura Cearense, de Raimundo Girão e Maria da Conceição Sousa), subdivida em cinco partes: 1 – De 1824 a 1869; 2 – De 1870 a 1896; 3 – De 1897 a 1920; 4 – Mulheres Escritoras; 5 – Poesia. Segundo o romancista de Aves de Arribação, o primeiro jornalista cearense teria sido o padre Mororó ou Gonçalo Inácio de Loiola de Albuquerque Melo, também “poeta, pregador, latinista, jurisconsulto, botânico e estilista brilhante”, fuzilado em 1825. Seguiram-se outros periódicos. No entanto, o primeiro estabelecimento de instrução secundária, o Liceu Cearense, somente se instalou em 1845. “Todos os estudos de humanidades se faziam antes disto nas capitais onde havia faculdades, e bem se pode avaliar que poucos pais de família podiam com tais dispêndios”, observa Antônio Sales. Como se vê, apenas a elite da elite conseguia alcançar o ensino superior. Ora, muito antes daqueles anos, na Bahia despontara Gregório de Matos, no Rio de Janeiro surgira Antônio José da Silva, em Minas Gerais a Escola Mineira (Cláudio Manuel da Costa, Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga) e muitos outros poetas em diversos Estados da Federação. Como anotou Antônio Sales, naquela época “a vida literária propriamente dita continuava, porém, em estado de nebulosa no espírito cearense”. Dolor Barreira acrescenta: “Cruz Filho é mais rigoroso quando afirma que só em 1872 é que se iniciou na Província a vida propriamente literária”.

Provavelmente muitos e muitos contos foram escritos e publicados em jornais durante o século 19 no Ceará. Como não se deve escrever História a partir de suposições, pode-se afirmar que o primeiro contista cearense é Juvenal Galeno.

Poeta antes de tudo, especialmente com Lendas e Canções Populares, Juvenal Galeno (Fortaleza, 1836-1931), com suas Cenas Populares, de 1871, é um dos primeiros cultores da narrativa curta no Ceará. Este livro deve figurar, segundo Sânzio, “como precursor, ou mesmo como iniciador do conto em nossa terra”. Mais adiante é categórico: “Com suas qualidades e defeitos, são as Cenas Populares o marco inicial do conto cearense, em pleno Romantismo”. E assinala, no ensaio mencionado linhas atrás: “Composto de oito narrativas, todas focalizando o povo simples das praias ou dos sertões, esse livro vem confirmar uma impressão que sentimos ao ler os poemas do autor: a presença de um escritor inegavelmente romântico, com fortes notas de sentimentalismo, usando o vocabulário típico da corrente, mas ao mesmo tempo um agudo observador da realidade circundante, a ponto de seus contos, como alguns poemas de seu livro máximo, poderem servir de segura fonte para o estudo dos costumes do povo ali retratado”.

Braga Montenegro acrescenta: “a despeito de sua profunda identificação com os mitos da terra, simplesmente concluiria uma obra subordinada às particularidades e assuntos do regionalismo anedótico”.

O segundo nome da história curta cearense, na ordem cronológica, é o de Araripe Júnior. Nascido em Fortaleza, em 1848, faleceu no Rio de Janeiro, em 1911. Sânzio assinala: “escreveu obras de ficção romântica, como os romances O Ninho do Beija-Flor (1874), Jacina, a Marabá (1875), Luizinha (1878)”. No entanto, sua vocação era a crítica literária. Teve editado Contos Brasileiros, em 1868. Sânzio acha “pouco provável que o indianismo desses textos tenha como cenário a paisagem cearense” e, assim, o exclui do rol dos primeiros contistas do Ceará.

Braga Montenegro dá a José de Alencar (1829-1877) o título de primeiro contista cearense: “O ponto inicial da evolução do conto cearense retrai a meados do século 19, se incluirmos os Cinco Minutos e A Viuvinha, reunidos num só volume em 1860 (o primeiro em plaqueta, fora do mercado, em 1856), a despeito da intenção do autor que os denomina romances, na categoria de contos; verdadeiros contos ou novelas que são pelo conteúdo estético, pela duração, pelo grau de poesia e símbolo que encerram”. Sânzio ensina: As duas narrativas de Alencar “nada têm a ver com as letras cearenses”, eis que o cenário de ambas é a então Capital do Império.

Montenegro considera como sendo o segundo contista cearense, na ordem cronológica, Franklin Távora (Baturité, 1842-1888). Autor de alguns romances, em 1861 deu a lume o livro Trindade Maldita, subintitulado “Contos no Botequim”. Sânzio não o considera escritor cearense, mas “nacional ou, quando muito, pernambucano”.

Já no final da penúltima década do século 19 surgem os verdadeiros primeiros cultores da história breve no Ceará, ligados ao Clube Literário (1887-1888): Oliveira Paiva, Francisca Clotilde, José Carlos Júnior e Rodolfo Teófilo. Divulgaram suas peças ficcionais no jornal A Quinzena, daquela agremiação.
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Oliveira Paiva (Manuel de) nasceu em Fortaleza, em 12 de julho de 1861, e faleceu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1892. Filho de João Francisco de Oliveira e Maria Isabel de Paiva, cursou o seminário e viajou em seguida para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Militar e ali esteve até que a tuberculose pulmonar o obrigou a abandonar os estudos. De volta ao Ceará, se envolveu nas lutas abolicionistas. Foi um dos fundadores do Clube Literário, em 1884. Na revista A Quinzena, órgão do grupo, colaborou assiduamente. Nela estão as ficções que em 1976 resultaram no livro Contos, por iniciativa da Academia Cearense de Letras, com prefácio de Sânzio de Azevedo, que, com Braga Montenegro, os tinha copiado. Na época do Clube escreveu o famoso romance Dona Guidinha do Poço e morreu sem conseguir publicá-lo. Em 1899 José Veríssimo iniciou a publicação, em capítulos, desse romance na Revista Brasileira. Mais tarde, Lúcia Miguel Pereira encontrou o manuscrito sob a guarda do poeta Américo Facó e promoveu a sua publicação pela Edição Saraiva, de São Paulo, em 1952. Era o início da reabilitação pública de Oliveira Paiva. Pouco antes de falecer, em 1889, o escritor publicou em folhetins do jornal Libertador o romance A Afilhada, editada em forma de livro em 1961. Oliveira Paiva escreveu ainda o drama Tal Filha, Tal Esposa, algumas crônicas e poemas.

Um dos mais argutos estudos dos contos de Oliveira Paiva é, sem dúvida, o livro de F. S. Nascimento Três Momentos da Ficção Menor, no qual analisa histórias de Paiva, Herman Lima e Eduardo Campos. A composição do autor de Dona Guidinha do Poço intitula-se “A Melhor Cartada”, impresso pela primeira vez em 1887, no jornal A Quinzena.

Reunidas no livro Contos, em 1976, edição patrocinada pela Academia Cearense de Letras, organizada por Braga Montenegro e com introdução de Sânzio de Azevedo, finalmente as narrativas curtas de Oliveira Paiva deixaram as folhas envelhecidas do jornal A Quinzena e, assim, se salvaram do olvido. As 12 peças coligidas são: “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave Maria”, “O Velho Vovô”, “A Melhor Cartada”, “Pobre Moisés que não o Foste!”, “O Ódio”, “A Barata e a Vela (Fábula)”, “Variação Sobre um Tema de Buffon”, “Ao Cair da Tarde”, “De Preto e de Vermelho”, “De Pena Atrás da Orelha” e “A Paixão”. Publicados em 1887 e 1888, podem ser considerados como exercícios para a elaboração dos romances A Afilhada e Dona Guidinha do Poço. Sânzio de Azevedo ensina: “Todos são unânimes em admitir que o escritor ainda não estava em pleno domínio de suas potencialidades criadoras ao compor os contos estampados n’A Quinzena”.

Muitos historiadores desconheciam essas obras de Oliveira Paiva, certamente porque não buscaram as fontes, isto é, não pesquisaram jornais e revistas, onde se iniciavam e se iniciam a maioria dos escritores. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, por exemplo, não se refere ao contista Oliveira Paiva, embora o considere “prosador terso, que sabia descrever e narrar com mão certeira e intervir no momento azado com talhos irônicos de inteligência fina e crítica”.

Sânzio de Azevedo, no estudo “Contos de Oliveira Paiva”, editado como apresentação do livro Contos e no livro Aspectos da Literatura Cearense, analisa um a um as 12 histórias do criador de A Afilhada e conclui: “Quer-nos parecer que “Corda Sensível”, “O Ar do Vento, Ave-Maria”, “A Melhor Cartada” e “O Ódio” são os melhores contos de quantos escreveu Oliveira Paiva, podendo mesmo redimir o autor de quaisquer falhas porventura encontradas nos demais”. Prossegue: “É interessante observar que nenhum de seus contos se ressente daquela linguagem cientificista que prejudica muita página de nosso Realismo-naturalismo. Seria o caso de se dizer que Oliveira Paiva fugia a esses tiques, tanto assim que tal característica não empana a grandeza de Dona Guidinha do Poço, seu derradeiro trabalho de ficção”.

Oliveira Paiva se vale de variadas técnicas na composição das obras, a partir do prisma dramático, como na montagem das três cenas da primeira história, no mesmo palco, como se fosse um drama teatral. Na primeira, uma sala e nela um fardão “enfiado sobre o espaldar de uma cadeira de balanço”. Ao fundo, a janela e parte da rua. Como personagens, a menina Maria (protagonista) e a “filha do cabo de ordens”. Na segunda cena, mais curta, no dia seguinte, a mesma sala, o mesmo fardão, e não mais as meninas, mas a criada, que se espanta diante do estrago feito pelos ratos na roupa do coronel. A última cena, a maior, dias depois, se dá em algum cômodo da casa, e nela as personagens das primeiras cenas aparecem de novo e, ao lado delas, outras, sobretudo os ratos, antes somente mencionados. Não se trata, porém, de conto composto de três células dramáticas. Talvez de drama em três atos.

Esta técnica, a de cenas estanques, separadas pelo tempo e pela substituição e apresentação de personagens, aparece em outras peças.

Nem sempre o espaço da ação em Oliveira Paiva se resume a uma sala, como no primeiro conto. No segundo, esse espaço se abre, se amplifica: um cabeço, a mata cavernosa, além do horizonte, o céu, a lua. Em outro, o mar, as embarcações, em perfeita descrição topográfica.

Uma das ferramentas de linguagem mais freqüentes nas composições de Oliveira Paiva é a descrição de ambientes, pessoas e coisas. Não a descrição enfadonha, desnecessária, detalhista, mas aquela capaz de dar ao leitor perfeita visão do objeto descrito. Veja-se a descrição do fardão do coronel, em “Corda Sensível”. Ora, a indumentária descrita será como que o objeto principal da composição, o alvo dos olhares, dos cuidados de todos, eis que os ratos – personagens fundamentais na história – dele se servirão como objeto de sua sanha.

Um dos pontos culminantes deste livro está em “O Ódio”, onde narração e descrição se mesclam harmoniosamente: a amurada do navio, a gaiola de paus, onde se mantinha aprisionado um tigre, a fera “movendo-se com pés de seda e garbo de mulher”, os marinheiros, o mar – tudo descrito com cores de tempestade, a prenunciar o desfecho trágico – e os homens em movimento, a fera a se debater na gaiola, e, súbito, o entrechoque de embarcações, o tumulto, os olhos do tigre a “bruxulear” nas ondas, a luta do homem com a fera, o fim.

Utiliza Oliveira Paiva, em algumas ocasiões, a narração simultânea de duas ações, como em “A Melhor Cartada”, onde narra uma procissão do Senhor Morto e, ao mesmo tempo, porque se dá no mesmo tempo, a movimentação de uns jogadores de baralho. O sacro e o profano em paralelas, como também em “A Paixão”, onde a cerimônia religiosa é narrada enquanto o narrador, apaixonado, se dilacera – drama psicológico – remoendo o seu amor profano.

O mesmo processo de elaboração narrativa se vê em “Variações sobre um Tema de Buffon”. E também alguns momentos de narração em estado de quase perfeição, como neste trecho, em que um capão sai em defesa de uns patinhos pela primeira vez em banho num açude: “Girava, acima e abaixo, já aflito, a percorrer a trincheira que isolava o abismo líquido. Agachava-se para entrar, recuando hidrófobo; olhava por baixo como galo a brigar; açoutava-se com as moles asas; eriçava a penaria do pescoço, ciscava nervosamente e penicava no chão, a chamar aqueles traquinas, cacarejando, gorgolejando, com a sua tocante responsabilidade de educador e aio”.

Talvez por se tratar de fábula, como a chamou o autor, em “A Barata e a Vela” a narração pura e simples ocorre durante toda a narrativa, não fosse o breve diálogo do narrador com a traça. Esta maneira de escrever não está presente nas demais ficções.

Paiva utiliza ora o ponto de vista da terceira pessoa, ora o da primeira. Às vezes esta aparece no plural. Em outras ocasiões a primeira pessoa se oculta na narração, e o leitor tem a impressão de estar lendo sob o foco onisciente. Veja-se “A Paixão”, onde durante quase toda a história a narração parece estar sendo conduzida por narrador onisciente: Uma moça numa varanda a assistir às cerimônias da Paixão de Cristo, a descrição do templo, do ambiente, a multidão de fiéis, as irmãs de caridade, os padres, suas indumentárias, as velas, o tapete, o incenso no ar, o cantochão etc. Durante toda esta narração-descrição não mais aparece a moça, apenas chamada de “ela”, e muito menos o narrador, embora sejam os dois os protagonistas. Somente no final o personagem-narrador ou narrador-testemunha, sem nome também, se apresenta: “Eu ajoelhava prostrado ante a divina figura do Mestre e o meu olhar trespassava-lhe também o coração fonte do amor”. A jovem reaparece furtivamente na narração: “E as duas almas, feitas uma para a outra...” E mais adiante: “E do sudário desaparecera o Jesus sanguinolento, para pintar-se ela com o seu vestidinho preto e as suas pulseiras de ouro, a olhar-me para meu coração soluçante”.

A utilização do ponto de vista em primeira pessoa, seja ela protagonista ou narrador-testemunha, faz de Oliveira Paiva um dos bons elaboradores de dramas psicológicos do seu tempo. Leia-se “Ao Cair da Tarde”: personagens sem nome (um cocheiro, um velho e um moço), uma carruagem a conduzi-los a um cemitério, a descrição minuciosa da estrada, breves diálogos, nada de tragédias, nada de mortes, apesar da visita ao campo santo. Na mesma linha está “De Preto e de Vermelho”, outro drama psicológico. Novamente a descrição se funde à narração, em exemplos de pura arte: “Um sapato pisava na mesa, revirado, entre os livros e os frascos”. O verbo (narração) na mesma frase dos substantivos (descrição). Um personagem sem nome descreve e narra, como se fosse apenas um observador. Ou, então, o narrador é onisciente, sendo o escritor: “Ele (o personagem) sentia atroar pelos salões a pancadaria da quadrilha pavorosa e danada e louca, vermelha como o sangue vivo, e negra como uns olhos que conheço”. Em “De Pena Atrás da Orelha”, que Sânzio de Azevedo analisa como sendo “a continuação do precedente”, também quase não se vislumbra um enredo, uma trama, e onde se percebem até pedaços de frases constantes do outro conto, como “uma capa de rei”, sem contar o tema: Numa quarta-feira de cinzas, um rapaz, entre dormido e acordado, rememora cenas do carnaval. Sem querer desmerecer esta composição, há um quê de crônica nela, mormente a partir do parágrafo assim iniciado: “Um belo dia que se alevantava na rua!”, até “... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota...”

Braga Montenegro vê nessas obras de Oliveira Paiva “originalidade sem alarde, a força sugestiva dos símbolos, o inesperado da expressão valorizando os temas, estes muitas vezes perigosos pelo abuso do cotidiano”.

A manipulação da linguagem nas histórias de Oliveira Paiva é admirável, mesmo não tendo alcançado ainda, naquele tempo, a maturidade de narrador que culminaria em Dona Guidinha do Poço. Observador atento, impassível, paciente e imparcial, feito a coruja que pousa no mais alto e firme galho da mais alta e robusta árvore, vê, capta as imagens, os movimentos, as falas, os gestos das personagens, a arquitetura do espaço e dos objetos e, sem olhos de julgador – o Bem o Mal à sua frente –, descreve e narra como artista.

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Continua...

Fonte:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=986

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