sábado, 12 de abril de 2008

Rinaldo de Fernandes (Chico Buarque: 60 anos)

Chico Buarque de Hollanda, que em 19 de junho último completou 60 anos, é um artista ímpar, o mais importante da cultura brasileira na contemporaneidade. E não só isso: trata-se de um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. É plural – e de uma qualidade extraordinária em tudo o que faz. Como compositor, dramaturgo e, mais recentemente, romancista está entre os grandes artistas, não só do Brasil, mas do Ocidente. Para repetir o que disse o professor Antonio Candido em texto que me enviou para o livro Chico Buarque do Brasil, que organizei, eu diria, para começar, aos homens de bem deste país: “Louvemos Chico Buarque”.

Chico, logo no início de sua carreira, foi tido como a “única unanimidade nacional” (conforme frase famosa de Millôr Fernandes). Neste momento a imagem que fica dele é a do “bom moço”, o menino que toda família queria ter. Mas logo em seguida, já em 1968, essa imagem é rompida ao ser representada a peça Roda viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. Depois, nos anos 70, ele se torna um emblema de resistência à ditadura. E passa a ser o artista mais perseguido pela censura do governo militar. Portanto, duas imagens fortes ficam dele – a do moço (quase) ingênuo, sereno, terno, que agrada sobretudo ao público feminino; e o artista participante, preso até a medula ao seu tempo, que se identifica com as minorias e denuncia a ditadura. Aqui ele agrada sobretudo à esquerda – mas vai muito além dela ao se tornar, por assim dizer, um centro, uma referência ética. Enfim, um artista de duplo engajamento – com a palavra e com a sociedade. A palavra de Chico é muito bem elaborada, como pouquíssimos na MPB e, mesmo, na nossa ficção. E sua visão de sociedade – sempre ao lado dos mais fracos, dos dominados e oprimidos – é profunda, penetrante.

Em 1973, num dos primeiros ensaios significativos sobre a poesia de Chico, intitulado “Chico Buarque: a música contra o silêncio”, Affonso Romano de Sant’Anna mostrava que as composições de Chico podiam, àquela altura, ser divididas em duas fases: “A primeira seria exemplificada por seus três primeiros long playings e a segunda pelo disco [...] Construção. Entre uma fase e outra está a peça Roda viva, encenada em 1968, sinal de ruptura com a imagem de bom moço que o sistema publicitário queria impor ao poeta”. Na primeira fase, o poeta “se encontra em disponibilidade, à toa na vida, fazendo considerações líricas sobre os pequenos incidentes do dia-a-dia”. Na segunda fase, ele “já não se deixaria levar pelos instantes de festa e música da vida, arrebatado pela banda ou pelos cordões carnavalescos”. Aqui se manifesta “o profissional no exercício da construção musical, articulando tijolo com tijolo num desenho lógico”. O “lirismo de ‘A banda’ cede à dramaticidade do ‘Cotidiano’ e à tragédia da ‘Construção’”. Ainda no que se refere à primeira fase: a música é, em várias canções de Chico, uma atividade “destinada a romper o silêncio do cotidiano e a fazer falar as verdades que os homens querem calar”. A música é “possibilidade de comunhão”, “lembrança do paraíso perdido”. Daí aparecerem a banda, o carnaval (ou “um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade”) e o samba como metáforas da expansão ou “abertura para a vida”.

Em seguida a esse estudo de Affonso, o professor e ensaísta Anazildo Vasconcelos da Silva, em livro publicado em 1974 (A poética de Chico Buarque), irá caracterizar a poesia de Chico como “universal” e não “circunstancial”. Diz Anazildo: “[...] Enquadrar a poesia de Chico Buarque a uma circunstância, qualquer que seja a natureza desta circunstância, é negar-lhe a validade poética e reduzi-la a coisa nenhuma. Acreditamos [...] que a poesia de Chico Buarque não se prende a um contexto circunstancial, mas a um contexto humano existencial do século XX. Sua poesia, como a poesia de um Fernando Pessoa, de um Carlos Drummond de Andrade ou de um João Cabral de Melo Neto, pretende significar o homem do século XX inserido na trajetória da humanidade”.

No início dos 80, o crítico musical Tárik de Souza, fazendo um balanço da atividade do compositor, chamaria a atenção para a versatilidade de Chico. Tratava-se de um compositor bastante diverso, que, até aquele instante, já teria incursionado por vários ritmos e gêneros: tango, marchinha, samba (de preferência), quadrilha sertaneja, vários tipos de valsa... Por sua vez, a professora Adélia Bezerra de Meneses, no livro Desenho mágico – poesia e política em Chico Buarque (1982), vai dizer que a produção de Chico assumiria “aquelas modalidades que restaram à poesia do nosso tempo”, ou seja, o “lirismo nostálgico” (“A banda”, “Maninha”, “Realejo”), a “variante utópica” (“Bom tempo”, “Primeiro de maio”, “O que será”) e a “vertente crítica” (“Pedro pedreiro”, “Construção”, “Vence na vida quem diz sim”, “Sabiá”, “Bom conselho”). As três modalidades seriam “uma forma de resistência”. No “lirismo nostálgico”, segundo a professora, se manifestaria o “desejo de um retorno, a ânsia dolorida por uma volta a uma situação ou a um espaço que não fazem parte da realidade atual” – e isso, conforme a ensaísta, “é nostalgia (de nostos = volta e algos = dor), no seu sentido primeiro e etimológico: a dor do retorno”. Na “variante utópica”, o elemento principal seria a proposta de um tempo/espaço outro, “em que o homem pode ser livre, e onde não se verifica o reino da alienação e da mercadoria”. Haveria aqui uma crítica “à negatividade da sociedade” feita através da “apresentação de algo que é radicalmente negado por essa sociedade”. Por fim, na “vertente crítica”, se expressaria uma denúncia – “ora configurada através da mera apresentação de uma situação cotidiana dramática ou trágica (como é o caso de ‘Pedro pedreiro’ e ‘Construção’), ora através das ricas modulações de que se reveste [a] ironia (satírica, no falso adesismo de ‘Vence na vida quem diz sim’, paródica tal como em ‘Sabiá’, em ‘Bom conselho’ e na maior parte das canções da Ópera do malandro; alegórica em Fazenda modelo), ora através desse ‘processo de deslocamento’ que consiste no tratamento de temas candentes da temática nacional, projetada num tempo passado da história brasileira, como em Calabar”.

É ainda Adélia Bezerra de Meneses que, discutindo os personagens da canção de Chico, afirma: “Já se tornou um lugar-comum dizer-se que a canção de Chico Buarque privilegia o marginal como protagonista, pondo a nu, assim, a negatividade da sociedade. Desde o primeiro disco, com ‘Pedro pedreiro’, passando por ‘Meu guri’, ‘Pivete’, ‘Iracema’, ‘Levantados do chão’, ‘Assentamento’, os despossuídos têm voz e vez. Malandros, sambistas, pedreiros, pivetes, prostitutas, pequenos funcionários, sem-terra, mulheres abandonadas. Todo um povo que será reunido, por exemplo, num grande ‘Carnaval’, e que engrossará o enorme ‘Cordão’ – daqueles que ‘não têm nada pra perder’. Ele os torna ‘protagonistas da História’, dá voz àqueles que em geral não têm voz. É assim que em ‘O que será’, a grande canção utópica, é com essa gente – os desvalidos e oprimidos – que a grande Utopia acontecerá”. Adélia dirá também que Chico teve de quem herdar a sua “radicalidade”. E explica o sentido de “radical”: “[...] A gente pode dizer que Chico é um ‘radical’, filho de um historiador, Sérgio Buarque de Hollanda, que é um dos mais significativos representantes daquilo que Antonio Candido chama de ‘pensamento radical’, que se caracteriza por uma oposição fundamental ao pensamento conservador. E consiste, fundamentalmente, nesta sociedade de tão fundas sobrevivências oligárquicas, na atitude de tirar o foco das classes dominantes e abordar o ‘dominado’ – mirar antes a senzala do que a Casa Grande”.

Chico é também identificado como o cantor da mulher. As canções de Chico que tematizam a mulher, segundo analisei em 1995 em meu trabalho de mestrado (ainda mantido inédito), podem ser divididas em 3 vertentes temáticas: 1) as conformadas (“Cotidiano” e “Mulheres de Atenas”; 2) as prostitutas (“Mambordel”, “Las muchachas de Copacabana”, em que é enfatizado o aluguel do corpo por questões de sobrevivência; “A mulher de cada porto” e “Tango de Nancy”, em que são tratados os desencontros amorosos, decorrentes, em grande medida, da própria condição e/ou do próprio ofício de prostituta); e 3) as desejosas (“Ela e sua janela”, “Bárbara”, “O que será (Abertura)”, “Mar e lua” e “O meu amor” – canções que dão voz ao desejo sexual feminino, mas é um desejo interditado, que não se realiza com o seu objeto, refletindo uma questão cultural, já que a sociedade tende a identificar a agência sexual ao homem; caso único em Chico em que o desejo feminino se realiza plenamente é o de “O meu amor”). Há ainda uma outra vertente que identifiquei e que chamei de “A saída por cima”, na qual, no desencontro amoroso com o homem, a mulher sai sempre “por cima” (exemplo é “A Rita”).

Por conta da profunda admiração que tenho pelo artista, resolvi organizar um livro sobre sua obra – Chico Buarque do Brasil (Rio de Janeiro: Garamond/Biblioteca Nacional, 2004). A idéia foi fazer um livro que abordasse a obra de Chico na sua diversidade. Ou seja, textos sobre as canções, o teatro e a ficção do autor. O livro é um balanço interpretativo – o primeiro feito no Brasil – da obra desse, repito, artista ímpar. E, como digo no texto de apresentação, muitos dos significados da obra de Chico são revelados no livro. Aspectos muito importantes são abordados, como a leitura que Leonardo Boff faz de “Gente humilde” e de “Deus lhe pague” à luz do humanismo cristão; como a reflexão sobre o ritmo e o tempo empreendida por Adélia Bezerra de Meneses a partir da letra da canção “Tempo e artista”; como a discussão de Anazildo Vasconcelos da Silva sobre o protesto em Chico; como a abordagem que Mário Chamie faz de “Construção” em diálogo com os postulados da Poesia Práxis (mostrando, portanto, as relações do letrista Chico com a vanguarda poética); como a interpretação que Luiz Tatit faz de “Pedaço de mim”; como a avaliação do problema do duplo e/ou do jogo de imagens que José Castello faz tendo como base o, como ele mesmo diz, “estupendo romance” Benjamim; como a análise que Sônia Ramalho faz de Budapeste, etc. Acho que a importância do livro reside no valor dos colaboradores (acadêmicos, artistas, jornalistas e escritores ilustres) e no próprio valor do homenageado.

E foi, para concluir, minha forma de louvar Chico Buarque..

Fonte:
http://www.plataforma.paraapoesia.nom.br/
http://www.midiaindependente.org/ (foto)

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