quarta-feira, 14 de maio de 2008

Alfredo Ciuffi Neto (Conto da Meia Noite)

A casa estava afastada do centro da cidade apenas dez minutos para quem vai de carro. Na frente, enormes portões de ferro forjado todo trabalhado se encarregavam de limitar a entrada e saída das pessoas que por ali passavam. Nas laterais, um gradio igualmente de ferro fundido delimitava toda a extensão do terreno, cuja área era imensa.

Um jardim composto de inúmeras variedades de plantas, na sua maioria exóticas, compunha um
cenário um pouco estranho e estarrecedor para quem do lado de fora observava. As plantas mal podadas se entrelaçavam umas com as outras, formando um emaranhado quase que indissolúvel. Folhas secas caídas pelo chão se misturavam com a grama alta e não cuidada, demonstrando o estado de desleixo de seus proprietários com o aspecto daquela velha mansão.

Havia uma ruela que saía logo após o portão de entrada e ia até à frente do velho prédio, que se achava em lenta desintegração através dos anos. Enormes janelas, cujas venezianas pareciam que iriam se desprender da parede de uma hora para outra com o balançar dos ventos fortes, nas noites de longas e tenebrosas tempestades.

O interior do “castelo”, como era conhecido por todos na cidade, durante a noite toda só era iluminado por grandes castiçais de porcelanas, cujas velas forneciam uma parca claridade aos seus aposentos. Sombras se avultavam pelas paredes longevas e úmidas projetadas pelas antigas peças do mobiliário, provocadas pela pouca luz que resplandecia no ambiente. Nas paredes velhos quadros retratavam seus moradores em poses sofisticadas e impeticadas, como só os bem antigos gostavam de posar com os seus familiares.

O casarão guardava todas as tradições de seus antepassados num empoeirado sótão, que abrigava no seu âmago os mais ínfimos segredos daquela família. E não eram poucos, conforme os ditos que corriam de boca em boca das pessoas da cidade. Hoje, não havia um só vivente que não tivesse medo até de passar na sua frente, dado às histórias que dele falavam.

Naquela noite de inverno de 1.830, estavam reunidos na sala, como sempre faziam após o jantar,
em volta da lareira que queimava em brasa troncos de árvores, gerando calor para aquecer o ambiente, seus primeiros proprietários, detentores de títulos de nobreza, como Condes, Viscondes, entre tantos outros. Ali eles estavam bebericando um delicioso licor importado da França, a “família dos Carpelos”.

Magnatas, donos de muitas propriedades na localidade, possuíam negócios de produtos extrativos, como canela, cravo entre tantos outros, distribuindo-os pela Europa toda, era uma família próspera, porém, guardavam a sete chaves um segredo.

Enquanto as labaredas do fogo aceso na lareira tremelicavam naquela noite, ouviu-se repentinamente um clamor aterrorizante de mulher que se misturava ao badalar da meia noite do antigo carrilhão. Aquele grito vinha de algum lugar daquela enorme mansão. Todos ficaram arrepiados e extasiados por alguns instantes, quando começou um corre-corre desvairado por entre os aposentos procurando identificar de quem era aquele berro horripilante e de onde ele vinha.

Não tardou, e por entre as frestas do assoalho de tábua, gotejava um sangue vermelho e semicoagulado vindo do sótão. Pingava intermitente, gota-à-gota sobre um tapete igualmente vermelho que se achava estendido no piso da sala. Todos correram para lá atônitos e desesperados. Arrombaram a porta e se depararam com o corpo ainda pulsante que se contorcia ao jorrar abundante do sangue pela garganta cortada. Era a filha mais velha do Sr. Carpelo. Ninguém, até hoje, sabe contar ao certo a causa de tanto desatino. Muitas histórias foram inventadas através dos anos. A que mais se aproximava da provável causa, dizia que a moça era debilóide e por esta razão vivia confinada naquele sótão sombrio, isolada de todos pelos seus pais, por vergonha de expor o nome da família tradicional à tão bisonha doença. Isso era muito comum naquela época onde os recursos da medicina ainda precários não possibilitavam nenhuma espécie de cura para estes tipos de casos.

Muitas gerações da família passaram pela velha mansão, que aos poucos foi se decompondo até o estado de abandono que se achava. Daí, que as lendas e os mistérios se proliferavam em torno do velho prédio, um pouco pelo seu aspecto descuidado, mas em grande parte gerava medo pela morte cruel que teve a filha do Sr. Carpelo, degolada a meia noite. Não se sabe se foi suicídio ou assassinato. A dúvida ainda permanece.

Ainda hoje lá está morando um casal de velhinhos, última geração da família, que contam com voz tremulante sobre o caso que indignou muita gente na época. Dizem eles que o sótão nunca mais foi visitado por ninguém. Nunca alguém ousou por os pés lá, mas que Ana Carpelo ainda perambula por entre as velharias guardadas e empoeiradas como se estivesse viva. Vez por outra arrasta seus móveis e cujo barulho se faz ouvir ecoando por todo o casarão, e que exatamente a meia noite do dia do aniversário de sua morte, o seu sangue goteja por entre as frestas das tábuas de madeira como que avisando a todos de sua eterna existência. O gotejar da vida se confunde com a morte, se mistura com o badalar do relógio e com o passar do tempo que insiste em não parar.

Fonte:
CIUFFI NETO, Alfredo. Contando contos. http://tutomania.com.br/file.php?cod=8165

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