sexta-feira, 16 de maio de 2008

Ryunosuke Akutagawa (O Nariz)

Na cidade de Ike-no-O não há quem não conheça o nariz de Naigu Zenti. É realmente um respeitável nariz com uns quinze centímetros de comprimento, e que se esparrama pelo lábio superior até alcançar o queixo. É um formato único, grosso, desde a raiz até a extremidade final; uma espécie de salsicha incrustada bem no meio do rosto.

Naigu é hoje um homem com mais de cinqüenta anos, e ocupa um dos mais elevados postos dentro da igreja budista. Porém, desde o tempo de noviço, a sua maior preocupação sempre foi o tamanho do nariz. É evidente que Naigu tentava aparentar a maior das indiferenças pelo assunto. Aliás, preocupações nesta natureza eram incompatíveis com o espírito de um sacerdote que aspira ao nirvana; seria muito desagradável se os outros reparassem que seus pensamentos mais íntimos eram monopolizados pela enormidade do seu nariz. O grande terror de Naigu consistia, portanto, no acidental surgimento da palavra nariz durante os bate-papos cotidianos.

E, convenhamos, havia realmente motivos para Naigu ficar atrapalhado com seu nariz. Era um apêndice demasiadamente comprido e, por isso mesmo, muito incômodo. Principalmente na hora das refeições. Quando abria a boca para engolir alguns grãos de arroz, a inconveniente ponta do nariz ficava, lá embaixo, fossando o fundo da tigela. Naigu via-se, assim, coagido a pedir a um dos seus discípulos que se sentasse no outro lado da bandeja para, com uma tábua de três centímetros de largura e setenta de comprimento, lhe suspender o nariz. Porém, comer dessa maneira era uma situação tão difícil para Naigu, quanto para o discípulo que cansava o braço para manter o celebrado nariz esplendidamente arrebitado. Contava-se mesmo em Kioto que um dia, um noviço ao substituir o já bem treinado discípulo, dera um espirro, tremera a mão, deixando dessa forma cair quinze cm de nariz dentro da sopa.

Mas, se exteriormente Naigu apenas se aborrecia com os contratempos provocados pelo gigantesco apêndice, no íntimo sofria a sua vaidade ferida.

Os habitantes de Ike-no-O comentavam que era uma felicidade para Naigu não ser homem profano. Porque – pensavam todos – mulher alguma estaria disposta a ser sua esposa. Existia, porém, toda uma fauna de maliciosos que argumentava ser precisamente o nariz de Naigu a causa do sucesso de sua carreira sacerdotal. Contudo, a verdade era outra. Apesar de bonzo, Naigu nunca deixara de preocupar-se com o nariz. Tinha uma sensibilidade tão a flor da pele, que o amargurava atrozmente saber que, caso lho permitissem as leis sacerdotais, mulher alguma seria, voluntariamente, sua esposa.

Naigu tentou, então, por todos os meios, disfarçar a presença inevitável do seu nariz. A primeira tentativa consistiu em encurtar, por um doloroso esforço de imaginação, a desastrosa lingüiça nasal. Depois de verificar a ausência de qualquer curioso, sentava-se diante do espelho e contemplava-se segundo os mais diversos ângulos e posições. Colocava o rosto entre as mãos; encostava o dedo no queixo. Mas, apesar de todo esse ritual em honra da vaidade ofendida, jamais conseguiu ver diminuir o tamanho do nariz. Por vezes, tinha mesmo a impressão que, quanto mais se esforçava, mais comprido ficava. Então, Naigu suspirava, desanimado, guardava o espelho no estojo e, mais amargurado do que nunca, voltava à escrivaninha para prosseguir a leitura do Livro de Kwannon.

E já que “nariz” era a sua preocupação máxima, Naigu preocupava-se também com o nariz dos outros. O templo era um importante centro religioso, onde se realizavam freqüentes reuniões da Ordem. No templo, havia inúmeras celas para bonzos. No banheiro, um sacerdote vigiava para que houvesse sempre água quente. Eram muitos e variados os bonzos e profanos que visitavam o templo. Ansiosamente, Naigu contemplava o rosto de todos eles. Não reparava nos quimonos azuis, nem nos brancos. As vestes sacerdotais às quais se habituara eram como se não existissem. Podemos dizer que não via caras: via narizes.

Porém, se de vez em quando aparecia um nariz em forma de gancho, jamais apareceu um nariz em forma de salsicha como o seu. Decepção sobre decepção, aumentando o seu íntimo desgosto. Um dia, conversando com um visitante, chegou mesmo a enrubescer como um tomate, ao coçar, num gesto involuntário, a ponta do nariz. E Naigu tinha já nessa altura, os seus cinqüenta anos.

Como última e desesperada tentativa, Naigu dedicou-se a pesquisar entre os clássicos do país e do mundo, algum personagem ilustre que tivesse tido um nariz igual ao seu. Obteria, assim, algum conforto íntimo. Porém, nenhum dos livros da doutrina budista se referia a qualquer monstruosidade nasal de seus homens santos ou altos prelados. Mais tarde, durante uma conversa acerca das coisas da China e da Índia, soube que Ryu Gen Toku , da China, tinha umas orelhas muito compridas. Naigu suspirou, desanimado. Ah! Se fosse o nariz...

Desnecessário dizer que, simultaneamente com estes métodos, algo ideais, de compensação nasal, Naigu experimentava outros, de maior interesse prático, mas nem por isso menos fantásticos. Chegou a tomar infusória de cabeça e a untar o nariz com urina de rato. Todavia, apesar de todos os esforços, o nariz persistia em balançar diante dos seus olhos.

Ora, aconteceu que num outono, um discípulo que fora à capital a serviço de Naigu, trouxe uma sensacional receita para encurtar o nariz, passada por um médico afamado, natural do continente, que no momento trabalhava em Choraku.

Naigu, como habitualmente, manifestou pouco interesse pela receita. Que não o preocupava o tamanho do nariz. Por outro lado, lamentava o trabalho que dava aos discípulos durante a hora das refeições... E, em sobressalto, aguardava que o discípulo o convencesse a submeter-se ao tratamento. Estratagema ingênuo que faria sorrir sarcasticamente o moço, não fosse a compaixão que lhe despertava a sensibilidade em carne viva de Naigu. Tudo se passou como fora previsto pelo bonzo narigudo. O discípulo insistiu, o mestre recusou, voltou a recusar, e acabou por ceder.

A receita era muito simples. Bastava amolecer o nariz em água quente, para depois ser pisado. Água quente era coisa que não faltava no banheiro do templo. Diligente, logo o discípulo foi buscar um jarro com o precioso líquido. Água quente, tão quente, que nem um dedo se podia mergulhar. Seria uma temeridade enfiar diretamente o nariz na bacia, porque o vapor poderia queimar o rosto. Foi então aberto um buraco no centro de uma bandeja laqueada e através deste orifício improvisado, tratou o discípulo de enfiar o magnífico apêndice nasal do mestre. Naigu nem sequer sentiu a temperatura da água. Momento depois, dizia o discípulo:
- Já deve estar cozido...

Naigu sorriu, contrafeito. Cozinhar – pensou – cozinham-se as salsichas. Porém, salsicha ou nariz, o que é certo é que o extraordinário apêndice, cozido em água quente, coçava como se houvesse sido picado pelas pulgas.

Mal o mestre retirou o rosto da bandeja, logo o discípulo começou a pisar, com vontade, o nariz ainda fumegante de vapor. Deitado a todo o comprimento do chão, o nariz acompanhando a linha do corpo, Naigu contemplava, pensativo, as enérgicas subidas e descidas dos pés do discípulo. Este, de vez em quando, olhava para baixo, para a calva lustrosa de Naigu e, penalizado, perguntava:
- Não está doendo? O médico aconselhou a pisar com força. Mas... não dói mesmo?

Naigu tentou abanar a cabeça mas como o nariz estava preso, não pôde mexer o pescoço. Olhou de soslaio para cima, e vendo os pés do discípulo já com rachaduras, gritou sufocado pela raiva:
- Não dói, não dói!

E não mentia. Tratando-se de esborrachar o nariz, sentia com isso mais prazer do que dor.

Mais algumas pisadas e começam a surgir algumas erupções do tamanho de grãos de alpiste. O nariz transformara-se num passaroco depenado e tostado. Reparando nas erupções, o discípulo suspendeu subitamente os saltos, e avisou:
- O médico disse que isso devia ser tirado com uma pinça.

Naigu sujeitou-se à operação, as bochechas infladas de mal contida revolta. Reconhecia a boa vontade do moço, mas aborrecia-o o fato de ele tratar seu nariz como se fosse um objeto estranho, uma espécie de excrescência sem dono. Naigu, tal como um paciente que se submete à intervenção cirúrgica efetuada por um médico de pouca confiança, ficou contemplando, com desprazer, o discípulo que extraía, com um pinça, a gordura que se amontoava nos poros. Uma gordura toda especial, em forma de raiz de pena de ave, com um centímetro e meio de comprimento.

Terminada a operação, diz o discípulo, como que aliviado:
- Agora é cozinhar mais um pouco, e pronto!

Naigu franziu mais uma vez a testa, mas se submeteu.

Retirando finalmente o apêndice que fora ao segundo cozimento, Naigu verificou que o nariz estava realmente curto como nunca dantes estivera. Pouco se diferenciava, agora, dos narizes em forma de gancho que visitavam com certa freqüência, o templo. Naigu, esfregando o encolhido apêndice, mirou-se timidamente ao espelho que lhe apresentou o radiante discípulo. O nariz – aquele nariz que não há muito se projetava até abaixo do queixo – por um golpe de mágica contraíra-se, recolhendo-se, acanhado, a uma modesta posição acima do lábio superior. Apenas algumas manchas vermelhas. Certamente, em resultado das pisadas.

Nariz curto, quem troçará agora de Naigu? Dentro do espelho, o olho de Naigu piscou, satisfeito, para o Naigu de fora do espelho.

Porém, durante todo esse dia, o bonzo ficou apreensivo, receando que o nariz voltasse a crescer de um momento para o outro. Durante os ofícios religiosos, durante as refeições, durante toda e qualquer situação, lá estava o bom Naigu coçando a ponta do nariz. Todavia, o impertinente apêndice conservava-se acima do lábio superior, muito comportadinho, sem mostrar a menor das disposições de voltar a esparramar-se rosto abaixo.

Ao despertar cedo, na manhã seguinte, o primeiro cuidado de Naigu foi ainda o de levar a mão ao nariz. O apêndice continuava curto. Após muitos anos de melancolia, Naigu sentia-se agora de coração leve e despreocupado, numa euforia que tinha apenas paralelo com a que experimentara ao terminar de copiar a sagrada escritura de Hokke.

Porém, passados dois ou três dias, Naigu descobriu um fato insólito. Um samurai, que visitava freqüentemente o templo, fitava-o hoje com uma expressão mais divertida do que nunca. Mas não foi só. Aquele noviço que lhe deixara cair 15 cm de nariz dentro da sopa, ao cruzar com o mestre, perto da sala de ofícios, baixou os olhos, tentando conter uma gargalhada que, irreprimível, foi explodir alguns passos mais à frente. E não foi nem por uma ou duas vezes que os bonzos, no momento de receberem alguma incumbência ou ordem sua, o ouviam de fisionomia séria e compenetrada, para logo sacudirem o edifício da dignidade com umas gargalhadas nervosinhas e abafadas, mal ele voltava as costas.

Naigu concluiu que tais manifestações eram apenas devido à súbita mudança de sua fisionomia. Era, porém, uma interpretação que não o satisfazia inteiramente. Não tinha outra justificativa o riso dos bonzos, argumentava o solitário Naigu. Porém, segredava-lhe uma voz íntima, também a natureza do riso se modificou. Será então que um nariz curto e desconhecido é mais jocoso do que um nariz comprido e familiar? Absurdo.
- Mas antes não riam tão abertamente, murmurava Naigu, durante os ofícios religiosos. E balançava, tristemente, a cabeça calva.

O atormentado Naigu contemplava então a imagem de Samantabhadra, pendurada na parece, e recordava a época que terminara, há quatro ou cinco dias atrás, quando ainda tinha um nariz em forma de salsicha. E a melancolia enchia-lhe os olhos, tal como “homem rico que ficou pobre, ao lembrar-se do passado tempo de fartura e riquezas”.

Lamentavelmente faltava a Naigu a clarividência para solver as contradições que o atormentavam. No coração humano há dois sentimentos que mutuamente se contrapõem. Ninguém duvida que todos sentem compaixão pela desgraça do próximo. Porém, mal esse indivíduo consiga desvencilhar-se da desgraça, surge no coração humano a insatisfação, o desapontamento. Exagerando um pouco poderíamos dizer que surge no coração humano a esperança de que esta mesma pessoa volte a ser atingida pela mesma desgraça. E, pouco a pouco, imperceptivelmente, começamos a hostilizar essa pessoa.

Naigu sentia crescer o mal-estar, sem contudo lhe descobrir a fonte; sentia que ia se avolumando uma atitude de expectativa em todos os bonzos e habitantes de Ike-no-O. Justificava-se o seu mau humor. Ralhava com todos, por tudo e por nada. Chegou a tal extremo que até mesmo o discípulo que lhe pisara o nariz, acabou por segredar aos companheiros que “Naigu está cometendo uma falta grave”. Todavia, o que mais enfureceu Naigu foi descobrir um dia o noviço que lhe largara o nariz dentro da sopa, perseguir pelo jardim um cachorro magro. O cachorro gania, a mão do aprendiz empunhava uma tábua, e gritava:
- Não bato no nariz, não bato no nariz...

Naigu arrancou violentamente a tábua das mãos do mocinho, e aplicou-lhe sonora bofetada. A tábua era precisamente aquela que antigamente servia para lhe suspender o nariz.

E, assim, Naigu foi ficando com remorsos de ter encurtado do nariz.

Mas eis que algo aconteceu certa noite. Começou a ventar, logo após o escurecer. Os bramidos metálicos dos sinos da torre alta perturbavam Naigu. Alem do mais, estava frio, e o bonzo, já no limiar da velhice, não conseguia adormecer. Veio a insônia. Foi então que sentiu uma estranha coceira no nariz. Levou a mão ao apêndice, e notou que estava um pouco intumescido. Parece mesmo que tinha um pouco de febre na ponta.
- Talvez esteja doente, pois foi obrigado a diminuir...

Naigu murmurou algo imperceptível, e sustentou o nariz com a palma da mão, como se tivesse oferecendo uma dádiva a Buda.

Na manhã seguinte, despertou cedo e inquieto. As folhas das árvores tinham caído todas, atapetando com um amarelo incerto, o jardim do Templo. Os telhados, ainda cobertos de geada, brilhavam à fraca luz matinal. Naigu, de pé na varanda, respirou fundo.

Foi neste momento que voltou a experimentar uma leve sensação, da qual já estava perdendo a memória. Levou, precipitadamente, a mão ao nariz. Não existia mais o nariz curto da noite anterior. Pendia, do alto do lábio superior, até abaixo do queixo, um magnífico apêndice nasal. Numa só noite, o nariz tinha voltado à forma primitiva.

Ao mesmo tempo uma estranha e indecifrável sensação de bem-estar, em tudo idêntica àquela que experimentara ao encurtar o nariz, voltava a confortar o coração de Naigu.
- Assim, ninguém voltará a rir, murmurou.

Naigu manteve durante longos momentos, um reconfortante diálogo íntimo. E, ao mesmo tempo, balançava o comprido nariz ao vento matinal de outono.
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Akutagawa, Ryunosuke (1892-1927). Escritor japonês, nascido em Tóquio. Sua principal característica é ter sido autor de contos inspirados na literatura kirishitan (cristã) do século 16, além de lendas populares e grandes obras clássicas (Rashomon, 1915; Figuras infernais, 1920). Nota-se em sua obra a progressão de sua loucura que acabaria por levá-lo ao suicídio.
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Fontes:
Estante Digivirtual - http://victorian.fortunecity.com/postmodern/135/
http://www.ndl.go.jp/ (imagem)

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