sábado, 19 de julho de 2008

Hélio Polvora (O Busto do Fantasma)

O fantasma que apareceu lá em casa, ao contrário ao fantasma de James Thurber, não cometeu estrepolias nem teve caráter transitório. Instalou-se para ficar e desde o primeiro dia manifestou, pela impassibilidade do rosto, que estava ali cumprindo penitência ou em busca de algo Difícil desalojá-lo. Realmente, muitas tentativas se fizeram, experimentaram-se todos os recursos; imaginação não nos faltava, inveterados leitores de romances em fascículos que um vendedor ambulante fornecia quinzenalmente. Mas o fantasma resistiu a tudo e a todos. De nada adiantou, por exemplo, substituir uma telha de vidro na cumeeira, por onde, segundo asseverava minha mãe, ele entrava à meia-noite; e as rezas de Nunila, minha tia, tão eficazes para sarar mordeduras de cobra e espantar mau-olhado, provaram sua absoluta e total ineficácia. O fantasma zombou, no seu modo sério, do mastruço, alecrim e outras ervas recolhidas no campo, ao entardecer, quando a campanha movida contra ele pela família inteira atingira o ponto culminante, o ponto do desespero.

Houve quem recuasse no tempo e pressentisse no pio estrídulo de uma ave agourenta — que não chegou a ser vista, sequer identificada — o anúncio da visita próxima e duradoura do fantasma. O que não é para admirar: naquela altura, com ele dentro de casa, invisível durante o dia, bustificado depois das doze badaladas, as explicações choviam, tentava-se tudo, numa escala que partia do lógico e enveredava pelo absurdo. Como o pio da ave agoureira precede sempre acontecimentos tristes, acabamos todos por admitir o mau presságio. No seu vôo súbito sobre a casa, norte para sul, aquela ave deixara sinal de desgraça.

A ave foi ouvida numa tarde em que meu pai e seu ex-tutor Chico de Luanda cochilavam no alpendre, abordando temas vagos e aparentemente desconexos, que, aliás, não tinham pressa de concluir. Já então os olhos dos morcegos, sensíveis ao desfalecimento da claridade, estremeciam, e dentro em pouco eles estariam chiando na copa do jenipapeiro, nos frutos maduros que tombariam ao alvorecer. A conversa entre os dois, meu pai e o visitante, pendia num silêncio prolongado de propósito para acentuar o peso da última observação proferida não se sabe por quem, e os ruídos da casa se haviam aquietado, num repentino poço de silêncio, quando alguma coisa penugenta cruzou o ar, sobre o alpendre, por cima da cumeeira — e soltou um pio medonho que por muito tempo fendeu a tarde, como uma quilha que deixa sulco.

"Ai", gemeu Chico de Luanda.

“Ai” , gemeu meu pai.

Chico de Luanda, que era supersticioso, levantou-se e não conseguiu encontrar as pernas. Suas articulações pareciam de geléia. Meu pai deixou-se ficar na espreguiçadeira, estatelado, de boca aberta.

"Você ouviu?", perguntou Chico de Luanda.

Uma pergunta inútil, mas inteiramente desculpável, porque o espírito dos dois não estava bem equilibrado.

“Ouvi, sim. Foi um pio infernal"

"Talvez um pombo do inferno", sugeriu Chico de Luanda. "Não conheço ave nenhuma que pie desse modo, assim tão alto e fino."

"Nem eu", confessou meu pai, que era caçador nas horas vagas, um caçador que tinha pena de caça e pretendia, no fundo, era matar o tempo, mas se gabava de conhecer aves, pássaros, galinholas e passarinhos, perdizes e arapongas, anuns e xexéus. A conversa ficou nisso - ou quase nisso. Interrogados discretamente a princípio, para não se espalharem temores vãos, os outros habitantes da casa confirmaram o pio, a que não deram importância maior. Naturalmente dentro de casa o pio lhes chegara amortecido. Lá fora, no alpendre que divisava o descampado, fora terrível, "um guincho de endoidecer", conforme dissera Chico de Luanda.

Se o objetivo do pio da ave agoureira era transmitir um alerta, falhou. Passado o primeiro estremecimento, meu pai voltou às suas ocupações rotineiras, e Chico de Luanda, apenas uma visita rápida, também se esqueceu do episódio, que de qualquer forma não lhe dizia respeito. Os dias correram, a vida prosseguiu no mesmo ritmo, marcada pelo relógio grande, de badalo, da sala de visitas. Quando algum de nós se esquecia de dar-lhe corda, o que era freqüente, podia-se acertá-lo mais ou menos certo pela passagem das marnetes. A vida era mansa, quase boa, na casa velha que tinha uma capoeira atrás e um pasto na frente, em declive.

A casa era grande; vista de longe, do fundo do pasto, embaixo, para quem chegava parecia quadrada, não fosse a despensa que avançava em forma de telheiro, numa aparência, ela só, de caixão de defunto. Subia-se ao alpendre por uma escada lateral, de poucos degraus de tábuas carunchosas que no verão estalavam e no inverno arrancavam sons ocos. O primeiro degrau era um enorme cepo de vinhático. Depois do alpendre, com duas janelas e uma porta, vinha a sala de visitas, vasta, de teto alto, adornada com uma escrivaninha de jacarandá que tinha tampos e fechos de prata, e ao lado o relógio de pêndulo que malhava, assustador, o silêncio das tardes e noites modorrentas. Uma porta abria-se à esquerda para um quarto onde eu dormia numa cama de couro de zebu e cuja janela dava para o já mencionado jenipapeiro. A janela era alta, porque a frente do casarão se apoiava em firmes e grossos esteios que iam diminuindo à medida que subia o declive, de forma que na frente da casa havia um porão ótimo para galinhas chocarem, pôr ovos e se revolverem na poeira. Guardavam-se ali velhas tábuas, ferramentas decrépitas, as vespas faziam casas e voejavam endoidecidas nos dias de verão intenso. A direita da sala começava um corredor não muito longo, mas escuro, e bem no meio dele desembocava um quarto comprido e úmido, que ia dar a uma janela minha vizinha e menos alta. Era o quarto do fantasma. O corredor findava numa ampla e já térrea sala de jantar, com outro quarto de dormir ao lado do quarto do fantasma, como ficou chamado. Comíamos numa mesa nua, orlada por dois bancos compridos, de madeira. Num dos cantos, junto à parede da cozinha, uma talha. A cozinha, à esquerda, possuía um fogão alto, sobre estacas; defronte, um pilão onde a negra Ana moía café torrado numa folha-de-flandres, de beiradas. A cozinha dava para a despensa, com armários, e abria para o terreiro. Uma pedra roliça servia de batente. Além do terreiro, um descampado que descia até o brejo. As árvores rareavam até se transformar em liquens, trepadeiras, samambaias ou o que quer que fosse, que eu nunca fui bom em botânica.

A casa do finado José, agora a casa do meu pai. Mas nela o que interessa mesmo é o quarto úmido c::de o fantasma boiava. O quarto começava por uma arca de cedro, pesadíssima, a um canto da parede, onde meu pai guardava instrumentos de carpintaria: serrote, serrotão, pua, trado, enxó, nível, escala, machada, fio de prumo, facões e coisas de vária serventia. Perto da janela ficava a cama, uma dessas camas antigas, de cabeceira alta. Em baixo da cama, o urinol. Em cima, uma telha de vidro por onde se divisava a madrugada, e que coava o sol quando o dia esquentava. Eu quase ia esquecendo, logo à entrada, um crucifixo de madeira, mostrando um Jesus agoniado, de rosto contraído pela dor, o Crucificado mais sombrio que já vi. Parecia real, o sangue quase escorria das feridas abertas nas mãos e nos joelhos pelos cravos. E a coroa de espinhos era metálica, penetrava fundo no couro cabeludo.

Meu pai, asmático, acordava muitas vezes durante a noite, sobretudo no inverno, para fumar cigarros de folhas de estramônio. Chiava, ofegante, recostado em travesseiros, enquanto minha mãe, já habituada, ferrava no sono, ao seu lado, ou, se desperta ante uma tosse mais renitente, murmurava queixas indistintas. Uns dez dias depois do prenúncio da ave agoureira meu pai acordou numa de suas crises, respirando como um fole; tateou a mesinha ao lado, à procura da caixa de fósforos, riscou um palito e acendeu a lamparina de querosene. À fraca luz da chama, depois de tirar a primeira baforada do estramônio e acomodar melhor as camadas dentro do peito, divisou então um vulto.

Não era bem um vulto — disse ele, no dia seguinte, calmo. Era um busto, apenas um busto a sobrenadar a escuridão do quarto. Sobrenadar, não. O busto pairava, entre o chão e o teto, como se fora uma neblina suspensa na manhã que mal se inicia. A metade de um homem, do tórax para cima. Claro que meu pai só chegou a formar imagem completa nos dias subseqüentes, porque naquela noite, percebida a névoa de contorno humano, apagou logo a lamparina, achegou-se à minha mãe e se esqueceu até de tossir. Dormiu mal, acordou de olhos remelentos e lacrimejantes, olhos encovados em bolsas flácidas.

A novidade não custou a se espalhar, primeiro entre os de casa. Iniciaram-se especulações de toda sorte, palpites partiam de um e de outro, todos intrigados, é claro.

"Será o finado José ainda penando no lugar em que morreu?"

Digo logo que esse finado José, meu avô, morrera não exatamente ali, mas a uns quinhentos metros, atrás da cancela. Voltava da feira, montado em cavalo esquipador, com uma barrica de aguardente no arção da sela, quando caiu do animal, que era árdego e lhe desferiu uma série de coices na cabeça, tronco e membros. Mas, de qualquer forma, que são quinhentos metros, meio quilômetro apenas, para uma alma que se pode deslocar sem o menor esforço, que entra e sai através de portas e janelas fechadas, que ultrapassa paredes? Esse o argumento de minha tia Nunila — e não foi contestado.

"Só pode ser o finado José."

"Talvez não seja. Justo é muito impressionado, pensou que viu alguma coisa", aparteou minha mãe, pessoa prática e teimosa para quem as coisas deste mundo já constituíam tormentos mais do que suficientes.

A dúvida permaneceu, só veio a ser desfeita quando meu pai, vencidos os temores iniciais, aventurou olhadelas para a coisa enevoada, primeiro furtivas, suspendendo rápido a ponta do cobertor, depois mais ousadas, e, por fim, cara a cara. O retrato do fantasma foi composto, ou recomposto, aos pedaços. O problema da barba, por exemplo: comprovou-se que ela era cerrada, mas não alta; uma barba que tomava ou fechava quase o rosto todo, confundindo-se com as costeletas, estas mais bastas e branqueadas; uma excelente e austera barba à antiga, dessas que impunham respeito, rendiam consideração, valiam mais que assinatura em letra promissória. A testa era estreita, o cabelo crescia logo em longos fios luxuriantes. Provavelmente o defunto era avesso ao barbeiro, só aparava as madeixas em última instância — e morrera bem necessitado de tesoura. Se era um fantasma vingativo, esta dúvida não tardou a ser aplacada. Porque o vulto, ou o busto, não se movia, não avançava pelo quarto, não franzia o sobrolho, não vincava a testa, não enrugava o canto da boca, não piscava os olhos, não fazia trejeitos zombeteiros. O rosto do fantasma não demonstrava amuo, queixa, recriminação, nem tentava qualquer aviso, qualquer comunicação com os terrenos que ali ressonavam na paz do quarto comprido e escuro como breu. Limitava-se a ficar suspenso, olhando. Meu pai logo• reconheceu o seu pai. Era, com efeito, o finado José. Por que voltara? Que desejava transmitir-lhe? Estaria pagando penitência? Nas madrugadas de crise asmática, fumando os cigarros de estramônio com filtro de algodão, meu pai vasculhava a memória, em busca de faltas. Nada encontrava digno de punição extraterrena. Ficara com a fazenda, é verdade, mas comprando a parte dos irmãos Romão Baptista e Justino. Não lhe arquejara o defunto, em vida, pouco antes de morrer, que confiava nele?
Travavam, o busto no meio do quarto e o busto na cama, um monólogo pouco esclarecedor. Nas noites em que minha mãe estava ausente, em visita a parentes ou amigos na cidade, meu pai achava até reconfortante a presença do vulto na casa enorme e vazia. O fantasma inspirava-lhe coragem contra possíveis assaltantes. Adquiriu até o hábito de, nos seus monólogos, dirigir-lhe a palavra, pedir conselhos, como fazia em vida ao finado José.

“Faço bem, meu pai?”

E tinha até a impressão de que o busto curvava de leve a cabeça, em vago aceno afirmativo.

Esse fantasma nem sombrio nem alegre, nem pacífico nem perseguidor, acabou sendo o pretexto há longo tempo buscado por minha mãe para mudar de vida, instalar-se na cidade, "viver como gente", como ela dizia em momentos de rabugice maior. Uma noite, meu pai dialogava com o vulto e, como se habituara a pensar em voz alta, despertou-a.

"Estou pensando em mandar João Gonçalves fazer nova estufa ...”

...
"O senhor acha que a safra deste ano vai ser boa?

"É isso mesmo, o cacau temporão promete. E o :.c-:=.po está propício, parece que teremos chuvas fra-
...,

"Se os birros vingarem todos, ou quase todos, vou colher aí umas duas mil arrobas. E precisarei de estufa.”

Minha mãe apurou os ouvidos, soergueu-se na cama e perguntou, zombeteira:

"Deu pra falar sozinho, homem? Já é caduquice?”

"Não", respondeu meu pai, distraído. "Estava conversando com o finado José."

“Com o finado ... o quê?”

Meu pai calou-se, tentou soprar a lamparina, mas antes disso os olhos de minha mãe deram com o quê não deviam dar: com o busto suspenso na escuridão esgarçada. O berro varou a noite, como um punhal de lâmina aguçada, e ela se meteu embaixo do cobertor, convulsa e conturbada. A casa acordou toda, batidas à porta não tardaram, ninguém dormiu mais. No dia seguinte começou de verdade a luta contra o fantasma. As primeiras providências couberam, como eu já disse no início, à minha tia Nunila, mas infeliz ou felizmente ela só sabia cuidar de seres deste mundo, que benzia com raminhos de alecrim e nos quais aplicava mastruço.

Os ramos de alecrim colocados no assoalho de tábuas de putumuju, no lugar do busto, murcharam com os dias — e o busto continuou a aparecer depois da meia-noite, com a mesma expressão severa mas resignada. Nunila tentou então as rezas. A mais forte, ensinada por uma curandeira que ela conhecera em Sergipe antes de emigrar para o sul, perguntava num dos seus mais expressivos quartetos:

Espírito das trevas
o que buscas?
Acaso pescas
em águas turvas?

O fantasma não deu resposta, nem em prosa nem em verso. Continuou a se mostrar todas as noites, teimoso, no mesmo lugar, com o mesmo olhar, a mesma barba, os mesmos olhos fixos como verrumas, mas que não doíam, não trespassavam ninguém. Exceto, é claro, minha mãe, que, depois da aventura daquela noite, se transferiu para o quarto ao lado, onde sepultava os terrores num sono de chumbo, ajudada por magnífico jantar. Claro que esta situação, camas separadas, quartos separados, não podia durar muito. "Não sou inglês", berrou meu pai, uma noite, sem mais preâmbulos, perdida a compostura. Queria dizer “não sou americano", mas detestava os ingleses, por que não sei. Minha mãe se recusou terminantemente a voltar à alcova, e ele, para não dar demonstração de fraqueza perante a família, também não quis renunciar à cama de dossel. Passaram dias emburrados, usando filhos e parentes como tabela para se dizerem apenas o essencial. Esses diálogos indiretos podiam ser assim resumidos:

"Pensando bem, é apenas um busto."

“Mas é um busto de pessoa morta."

"Tudo na vida depende do modo de ver", filosofou meu pai. "Por que não imagina que embaixo do busto há um pedestal?”

"Isso é faz-de-conta, é carochinha."

,”'Aliás, o quarto é grande e nu, um busto ali no meio até que enfeita ... "

As soluções começaram a germinar na cabeça de meu pai. Pensou, a princípio, em colocar um espelho em frente do busto; o finado José poderia espantar-se e desaparecer para sempre. Provavelmente os cabelos teriam crescido depois da morte. Não dizem os entendidos que, parado o coração, as unhas continuam a crescer no lodo da terra? Pensou em substituir a telha de vidro por uma telha comum, de barro. Pensou em ficar de atalaia, uma noite, no telhado, no sítio por onde se supunha que o fantasma entrasse — mas temia os resfriados, abominava correntes de ar.

Afinal, numa de suas viagens semanais à cidade, voltou com um busto de gesso, algo parecido com o do fantasma — e colocou-o no mesmo lugar onde o outro boiava.

"Pronto", anunciou ele à minha mãe. "Agora você pode dormir tranqüila.”

Minha mãe, desejosa de demonstrar boa-vontade, retornou à alcova, à cama de dossel. Inutilmente, porque não pregou olho. Era um remexer-se incessante, um coçar-se, um inquietar-se, um cuidado excessivo para que os pés não sobrassem do cobertor, ficassem expostos a puxões.

"Não posso", dizia ela, pedindo-lhe para acender a lamparina. "Sei que por cima do busto que você comprou está o outro. "

O busto era de gesso; objeto inútil, acabou dentro da arca de cedro. E minha mãe, cada vez mais assombrada, lançou o ultimato: a casa ou ela, o fantasma ou ela. Arrumou a mala e partiu, disposta a uma longa temporada na cidade. Meu pai coçou a cabeça, fingiu alheamento, mas, à noite, puxando fumaça do seu estramônio, estirou o beiço para o busto, como a perguntar:
“E agora?”

A idéia mais razoável para resolver a situação incômoda partiu de Joãozinho Feitosa, que só vestia terno preto, tinha fala macia e andava descalço. Calça e paletó pretos, sempre, e um chapéu de feltro de tira preta, que ele quebrava na frente; adquiria com isso um ar gaiato, de bravata e de audácia, que em absoluto se coadunava à sua pessoa triste. Vendo-o passar nas estradas e tirar o chapéu para o cumprimento, eu pensava: "Vai a algum velório." Esse Joãozinho Feitosa, dizia-se que um primo distanciado de minha mãe, servia de mote a brincadeiras de meu pai. Nos momentos em que Justo estava de bom humor, o que lhe acontecia raro, porque os negócios nem sempre corriam bem, ou a sua sovinice nunca se dava por satisfeita, parodiava a letra de Scrivimi:

Tu me deste uma rosa,
ó Joãozinho Feitosa ...

Minha mãe respondia às risadas com muxoxos vexados que, às vezes, de tão soturnos, estancavam o riso, detinham a relembrança do seu namoro antigo com o primo macambúzio. Se é que houvera mesmo namoro. Nas visitas do primo pobre tratava-o com cerimônia, punha-o a distância. Joãozinho aparecia sempre bem barbeado, com a pele azulada no queixo e até o meio das bochechas, mas entre os dedos dos pés percebia-se a lama seca dos caminhos.

Pois foi esse Joãozinho Feitosa quem sugeriu afinal a idéia que, se não solucionou o problema do fantasma, deu pelo menos um rumo mais decente à nossa vida, de acordo com o figurino da civilização defendido por minha mãe em momentos de zanga, angústia e desespero: a mudança para a cidade. Com os olhos compridos pousados no dedão do pé direito, que ele mexiam como a traçar sinais misteriosos nas tábuas do alpendre, Joãozinho avançou em voz tímida:

"Conheço um rezador de primeira ordem."

“'Quem, Joãozinho?”

“Tomé de Arapiraca.”

Não era bem um rezador; era, segundo eu já ouvira falar, um pai-de-santo que recebia o espírito de um caboclo adivinhador e versejador. Meu pai, que só acreditava na natureza como princípio e fim de todas as filosofias e crenças ("deixe que a natureza resolve" era sua frase favorita), enfraqueceu o entusiasmo recém-desperto, mas como perdera dois sacos de cacau seco tirados noite velha por baixo do zinco da barcaça, sem que o cachorro latisse contra o ladrão sutil, viu aí a esperança de reaver o que era seu, quem sabe? Quanto ao fantasma, ele pouco estava ligando, habituara-se ao busto enevoado — mas se o exorcismo de Tomé de Arapiraca o devolvesse às profundas do céu ou do purgatório, devolvendo a ele, Justo, a mulher e a :;paz,, tanto melhor.

"Quanto o homem cobra, Joãozinho?"

"Nada, não aceita um dez réis. Você tem de levar apenas uma garrafa de aguardente, que é o que ele sempre pede. E, às vezes, charutos ordinários, grossos, do tipo escora-carroça.”

Meu pai resolveu ir, por desfastio. Não tinha o que fazer, estava-se no paradeiro — tempo terrível, de verão,, entre a última safra e a vindoura, quando o dinheiro ea curto e as cismas mais longas. Joãozinho nos conduziu, certa manhã, ao terreiro. Filho mais velho, admitiram-me na comitiva, a princípio com relutância, depois com leve condescendência — a mesma relutância e a mesma condescendência com que às vezes falavam de mulheres, longe dos ouvidos de minha mãe e a distância razoável dos meus. E assim, eles na frente, eu um pouco atrás, a distância respeitosa, desembocamos no terreiro de Tomé de Arapiraca, que estava varrido e seco, e onde algumas pessoas fumavam, caídas de cócoras, numa posição que durou muito e me provocou angústia. Até que o rezador apareceu, de olhar estremunhado. Ou estivera dormindo ou em transe.

Não vou descrever tudo o que Tomé de Arapiraca fez e falou; a parte importante é a dos versos. Digo, porém, que invocado o espírito adivinhador e formado o círculo de assistentes, o homem entrou em convulsões, e nestas, braços, pernas e ventre tiveram muito trabalho. Temi que ele fosse se desconjuntar; sem dúvida aquilo exigia muito preparo físico, que eu jamais poderia associar à carne seca com farinha e rapadura, prato único no cardápio dos pobres. Recebido o espírito, que se ajustou no seu corpo com uns espasmos derradeiros e umas torções de quem tenta encaixar a carne em roupa apertada, Tomé de Arapiraca, sujeito ainda moço, denunciou quem desencaminhara certa moça ultimamente muito falada na Baixa Grande. E antes de responder à primeira consulta transmitida em voz baixa por Joãozinho Feitosa (o furto do cacau tinha prioridade), deu três voltas completas pelo círculo de assistentes, com a garrafa de aguardente destampada sobre a cabeça e a dançar. Não caiu uma só gota.

Depois que o sol se deita
o mal caminha do Leste.
A morte a mão lhe enfeita.
com o que tira, se veste.

"Um ladrão profissional, sem dúvida", cochichou meu pai no ouvido de Joãozinho Feitosa. "Com o que tira, se veste.”

“E mora onde nasce o sol", lembrou Joãozinho.” 'Isto mesmo, no Leste. “

Conclusões fáceis para quem, como meu pai, matava charadas novíssimas com o auxílio do dicionário pratico e ilustrado de Jayme de Séguier, distração predileta nos domingos, quando não havia visitas. Charadas bem mais difíceis do que os versos do caboclo adivinhador ele já matara, como, por exemplo uma que lhe fora proposta em mesa do bar de Carneiro, na cidade, enquanto disputavam pôquer de dados atirados chocalhados num copo de couro, para ver quem pagaria a rodada de cerveja. No meio da sociedade a honra cambaleia. Uma e duas. Ébrio. E aquela outra, um primor de composição: Rente ao túmulo de Jesus, chorava Madalena sem coragem e com temor. Uma e duas. Respeito. Chegara 2.té a matar, depois de semanas de duro labor, uma péssima charada que haviam dedicado a um sujeito chamado Edgar, vendeiro que usava um toco de lápis grosso atrás da orelha cabeluda e passara tardes debruçado no balcão, sobre folhas de papel almaço, tentando em vão decifrá-la. O homem tem garbo de ser homem. Uma e uma. Edgar. Ed, afinal de contas, não é nome de ninguém, e o recurso de tirar gar de garbo era burrice de charadista inepto.

Mas o Leste era vasto e razoavelmente habitado: coronéis e suas famílias, administradores, agregados, lobisomens. Quem seria o ladrão? Ladrão, ladravaz. O cérebro de meu pai trabalhava. Caminha, portanto não tem cavalo. Caminha do Leste. Gente pobre ou remediada. Furta para se vestir, está claro. Se tem terra, ela não dá colheita. Estéril. Sáfara. Árida. Ou talvez não desse colheita porque o homem não plantava. O homem seria um preguiçoso de nascença, conhecia muitos assim. Habituara-se sem dúvida a furtar e a roubar, as coisas lhe chegavam fáceis, o de-comer não faltava, então por que se esfalfar? A morte a mão lhe enfeita.

Verso obscuro. A morte enfeitando uma mão?

Só se fosse vela, a vela que enfiam na mão do defunto. Mas não, o homem estava bem vivo, furtara-lhe o cacau com arte, nem sequer despertara o cão. É bem verdade que Vesúvio estava velho, de ouvidos moucos. Eu tive um cão, chamava-se Veludo ... Lá estava meu pai outra vez a divagar. Gozado como uma palavra puxa outra; os pensamentos surgem atrelados, a reboque. A morte a mão ...

"Matei.”

Naquele justo instante Tomé de Arapiraca soltava um dos seus maiores pinotes, sempre com a garrafa de aguardente equilibrada no alto da cabeça, como se ali pregada com visgo de jaca. Joãozinho Feitosa, que tinha os olhos ferrados em Tomé, nas cabriolas de Tomé, estremeceu:

"O quê?"

"Matei, Joãozinho, matei. Quem é que mora no Leste, não trabalha, tem uma filharada para sustentar e vive por aí, caminhando ao léu, com uma espingarda na mão?”

'Petronílio.”

"Exato, Petronílio”

"Pois se foi ele, homem, e tudo indica que foi, perca a esperança. Ninguém nunca descobriu. Se desconfia, ele dá mesmo o que falar, mas provar é o diabo. Acabou-se”.

Tomé de Arapiraca deu outra volta no terreiro, a garrafa presa no cocuruto, sem derramar uma única gota: Os olhos rolaram, brancos, na direção de meu pai. Pareciam vidros foscos, ou contas espetadas em bruxas de pano pra acalentar meninas pobres.

“Agora", anunciou Tomé, "vou responder à sua segunda pergunta.”

Os lábios grossos abriram-se como feridas vermelhas e inchadas em volta do charuto grosso. Tomé de Arapiraca se concentrou, levantou os braços, invocou o espírito das musas caboclas.

No livro está a resposta
à penitência do vulto.
Ninguém volta porque gosta,
mas para achar o oculto.

Era o problema do fantasma. Ainda ébrio pela descoberta do ladrão — descoberta inútil, mas que intelectualmente daria os seus dividendos na família e na roda de amigos — meu pai teve o cuidado de anotar o enigma numa caderneta que sempre trazia no bolso traseiro da calça, para quando lhe tomavam dinheiro emprestado fora de casa, ou um trabalhador pedia um adiantamento no meio da semana, longe do livro-caixa que ele herdara do finado José. No caminho de volta, releu os versos, as mãos tremeram, os olhos cresceram.

"Isto está me cheirando a botijão de ouro, Joãozinho.”

Joãozinho Feitosa concordou: onde havia fantasma, havia botija de moedas antigas, enterradas bem fundo. Ou ocultas de outra forma, talvez em paredes, entre caibros e vigas, debaixo do assoalho. Não tocara nisso antes para não provocar inquietação e mal-estar na família. O finado José fora um sovina de marca maior; ao sentir as primeiras pontadas da velhice, talvez uma voz interior lhe houvesse soprado: "Esconde o que é teu para não teres de repartir com os filhos. Precisarás do que amealhaste quando perderes as forças. Sabes como são os filhos: crescem, se desapegam, o pai se transforma num estranho para eles. Tu mesmo conheces casos de pais corridos porta a fora ...”

Nesse ponto tive de correr atrás deles, porque meu pai, se não corria propriamente, trotava, e Joãozinho Feitosa teve de fechar o paletó negro de abas desfraldadas ao vento. Paramos apenas no alpendre o tempo necessário para recobrar o fôlego. Na respiração ofegante de meu pai não ouvi o chiado característico do asmático. As camadas estavam perfeitamente superpostas dentro do seu peito.

No livro está a resposta ...

E meu pai atirou-se à estante, que era modesta, como convém a um homem trabalhador; quem pega no pesado não tem tempo para esses luxos. Romance é coisa pra moças, mesmo assim as que se comprazem no ócio, indiferentes às rendas e bordados, honestas prendas que rareiam hoje em dia. Mas uma leiturazinha pra encher um domingo, um bom enredo à maneira de Pérez Escrich não fazem mal a ninguém. Atiçam a imaginação, um homem também precisa de uma pitada de sonho pra temperar esta vida.

Meu pai começou a busca por um livro que passara de mão em mão na família e todos acharam genial, mas muito triste, muito pesaroso: A Toutinegra do Moinho. Sacudiu-o, folheou-o e nada encontrou. Releu o título. Depois foi a vez de Eugêne Sue e Victor Hugo. O Diamante Maldito, enredo policial muito do seu agrado, nada lhe revelou também. Por fim, numa brochura já sem capa, intitulada Olhos Fascinadores, seu coração quase parou. Lá estava um pedaço de papel. Meu pai desdobrou-o com lentidão. O sangue lhe subira ao rosto. Lembrava-se de uma estória que lhe tinham contado, de um sujeito que sofria do coração e acertara na sorte grande. A família, para não matá-lo com o choque, começou com rodeios: "Imagine se você um dia comprasse um bilhete de loteria ..." E foi assim., num crescendo, até soltar a revelação final e o desgraçado soltar o último alento.

Mas o papel continha apenas um soneto parnasiano, da lavra de meu pai, pecado cometido na juventude, quando ele namorava uma moça gorda que veio a casar deois com um comerciante. Orgulhoso e para que não irassem dúvidas quanto à autoria, meu pai escrevera antes de sua assinatura, embaixo: "Do próprio punho. E datara. O soneto cantava os tormentos marítimos de Ulisses:

Da vasta noite a estrela peregrina
banha a galera de níveos lavores;
dos golpes de remo os leves rumores
ferem o silêncio ermo da piscina.

(Piscina era o Mediterrâneo: licença poética e necessidade de rima.)

Eis que, rompendo a paz d'hora divina
suavíssimo e doce canto se alteia.
Das glaucas ondas ergue-se u' a sereia
esplendorosa, nua, serpentina.
Treme Ulisses sentindo-se arrastado;
a tentadora, mui perto, ao costado,
quer atraí-lo c'o encanto e sedução.
Resiste o herói grego; e em grave apelo
convence a marinhagem a prendê-lo
ao pé do mastro, fugindo à tentação.

Não era hora de sonetos, mas meu pai, apesar de homem prático também um esteta, releu-o, empostando a voz, para deleite meu e de Joãozinho Feitosa. Que rimas, hem? Ricas, sonoras. E pode contar as sílabas nos dedos, tudo certinho, medido. Aqui não tem pé quebrado.

"Tem idéia, tem vigor. Até parece que estou vendo a cena", concordou Joãozinho Feitosa, com um princípio de baba num dos cantos da boca.

Passada a euforia dos dois quartetos e dois tercetos sem fecho de ouro, mas de lavor clássico, meu pai voltou à caça ao tesouro. Não havia criptograma a decifrar, como no caso dos dançarinos de Conan Doyle, nem fio a ser esticado por entre a órbita de uma caveira, como no escaravelho de Poe. Havia apenas um livro a procurar. E ele virou e mexeu, sacudiu e folheou fascículos, brochuras, almanaques, uma coleção inteira de Chácaras e Quintaes, sob o olhar expectante de Joãozinho Feitosa, que não perdia um movimento seu. Esgotada a biblioteca familiar, caiu em desânimo, procurou uma cadeira.

“Acho que Tomé de Arapiraca se enganou desta vez."

“Procurou bem?”

“Já olhei tudo."

Os olhos de meu pai erraram, pesarosos, pela sala, fixaram-se na pêndula que ia e vinha, deram com pitangas maduras além da janela aberta, retrocederam e pousaram com desgosto na escrivaninha de tampos e fechos de prata, bem precisada de uma limpeza. O pó se acumulava nas beiras, a negra Ana ia levar um carão. Se por fora era o que se via, imagine-se por dentro ... Provavelmente as traças se banqueteavam, comiam algarismos, contas amareleciam sob uma camada de bolor e poeira. O livro-caixa ...

“O livro-caixa," berrou, pondo-se de pé num salto de menino novo.

"Eu não dizia?" animou-se Joãozinho Feitosa.

Examinado às pressas, o livro-caixa revelou numa de suas mais antigas anotações, antes do meu pai começar a escriturá-lo, uma entrada de cinco contos de réis, na coluna do haver, mas que não fora registrada; a partir daí, não aparecia mais em nenhum balanço. Os cincos contos, fruto talvez de alguma venda, de uma herança ou de um jogo feliz, haviam desaparecido. Ora, moedas de ouro não se dissolvem no ar, o defunto era muito cuidadoso nas suas anotações.

"Escondeu", disse Joãozinho Feitosa, na sua fala mansa e irretorquível. "Pensava viver muito tempo ainda, mas quem esconde com fome o rato vem e come."

Na sua alegria doida meu pai deixou passar em branco a alusão, que, aliás, não fora proferida de propósito, para ferir. Interessava-lhe apenas a conclusão, clara, meridiana, ardente como a luz do sol: havia dinheiro naquela casa, um monte de moedas que valiam hoje uma fortuna. O ouro explicava a presença do busto fantasmal na escuridão do quarto. O danado do meu avô era mesmo apegado ao dinheiro, sim senhor. Mas onde? Descontados os objetos novos, os trastes introduzidos por meu pai depois do casamento, após a morte do finado José, restava a casa inteira, um casarão. Onde?

Essa pergunta ele ainda fazia depois de várias noites de sono difícil e de consultas inúteis ao fantasma. Pensou em sessão espírita, mas isso demandaria tempo e dinheiro, e depois o finado talvez não quisesse entrar em pormenores. Pensou em arrancar do quarto as tábuas de putumuju, derrubar as paredes — mas a casa era muito velha, podia vir abaixo. Minha mãe é que tinha razão: Virgílio cantara os prazeres do campo, a satisfação das lavouras, mas naquele tempo o mundo era outro. Meu pai procurou as palavras exatas. Bucólico. Contemplativo. Jograis e menestréis percorriam os caminhos, carruagens rolavam, espadachins disputavam o amor fervoroso de castas donzelas.

Não, isso foi depois. O meio sorriso de Mona Lisa podia ser enigmático, mas para ele era demonstração de safadeza da mulher. E a Maja Desnuda, que inocência em todo o corpo exposto... Lá estava ele outra vez a divagar. E deitado sobre ou sob um monte de ouro, fumando o seu estramônio. A valorização do ouro... Sol lucet omnibus, ensinava o dicionário de Jayme de Séguier, na parte das citações latinas. Amor omnia vincit. Quem veio em seu auxílio, afinal, foi o mano Justino, através de uma frase de sentido obscuro, quando recolhera numa festa, com as mãos, um frango que resvalara da travessa: "Levou-os que trouxe! "

"Danou-se, danado está", soprou-lhe o seu outro irmão, Romão Baptista, que sempre tivera queda para o• maldito. Meu. pai examinaria caibros, vigas, cumeeiras, esteios, adobes, o diabo. Os meninos precisavam de escola decente na cidade, aquilo não era vida. Chico de Luanda, seu antigo tutor, aprovaria a resolução: "Isto mesmo, homem, sua família merece o melhor. Acima de tudo, a família."

A casa era grande, desceu aos poucos à superficie da terra. João Gonçalves, o mesmo que a levantara, veio derrubá-la e começou pelos fundos, a parte mais baixa, onde seria possível pular-se do telhado sobre um barranco. As telhas, outrora gosmentas e cor de barro novo, estavam agora encardidas; empilhadas, arrimadas umas às outras, cobriram vasta extensão do terreno que descia suavemente para o brejo; os caibros e vigas, ainda rijos foram amontoados numa clareira do bosque, depois que meu pai os examinou de ponta a. ponta e neles bateu com um martelo em busca de sons ocos; as paredes desceram a golpes de marreta, os adobes sanearam uma parte do brejo, esfarinhados; as tábuas do assoalho, de um putumuju precioso, ainda amarelado apesar do tempo, ele guardou num galpão construído especialmente para esse fim; chegou, por fim, a vez dos esteios — e os de baixo, que sustentavam o alpendre, a sala de visitas, o quarto de cama de couro de zebu e o quarto do fantasma, revelaram, ao serem balançados e arrastados à força de cordas e de braços, apenas buracos. No lugar da casa restou um terreno seco, batido e quase branco, onde a chuva só entrava de enxurrada; visto de baixo, para quem chegava, parecia campo de pouso. A madeira que lá ficou deve estar hoje apodrecida, de mistura com a terra, as ervas daninhas que não tardaram a crescer e muitas chuvas.

Perdemos o tesouro, que esse não foi mesmo encontrado, mas em compensação mudamos para a cidade, adquirimos hábitos compatíveis com o grau de civilização a que aludia minha mãe; por muito tempo ela deixou de soltar muxoxos rezingueiros, mesmo quando falavam, de brincadeira, em Joãozinho Feitosa — mas os muxoxos voltariam, anos depois, quando se enamorou de uma casa na beira da praia. Meu pai tornou-se muito hábil no pôquer e se esqueceu das charadas. E eu entrei no tiro-de-guerra, bem defronte à casa de umas primas que me admiravam o buço nascente. E o fantasma? Mudou-se também. Ainda pairou enevoado, alguns dias, no mesmo lugar, mas depois se desapegou das suas moedas de ouro, ou então foi por elas atraído até a casa de um vizinho, o Petronílio. Não falta quem veja na sua prosperidade súbita e suspeita, traduzida num grande armazém de secos e molhados na cidade, :.a bosque, depois que meu pai os examinou de ponta :. ponta e neles bateu com um martelo em busca de Süns ocos; as paredes desceram a golpes de marreta, os a.::S.obes sanearam uma parte do brejo, esfarinhados; as "i2.buas do assoalho, de um putumuju precioso, ainda ~arelado apesar do tempo, ele guardou num galpão eonstruído especialmente para esse fim; chegou, por '<;m, a vez dos esteios - e os de baixo, que sustenta.am o alpendre, a sala de visitas, o quarto de cama de couro de zebu e o quarto do fantasma, revelaram, ao serem balançados e arrastados à força de cordas e de braços, apenas buracos. No lugar da casa restou um terreno seco, batido e quase branco, onde a chuva só entrava de enxurrada; visto de baixo, para quem chegava, parecia campo de pouso. A madeira que lá ficou deve estar hoje apodrecida, de mistura com a terra, as ervas daninhas que não tardaram a crescer e muitas chuvas. Perdemos o tesouro, que esse não foi mesmo encontrado, mas em compensação mudamos para a cidade, adquirimos hábitos compatíveis com o grau de civilização a que aludia minha mãe; por muito tempo ela deixou de soltar muxoxos rezingueiros, mesmo quando falavam brincando em Joãozinho Feitosa — mas os muxoxos voltariam, anos depois, quando se enamorou de uma casa na beira da praia. Meu pai tornou-se muito hábil no pôquer e se esqueceu das charadas. E eu entrei no tiro-de-guerra, bem defronte à casa de umas primas que me admiravam o buço nascente. E o fantasma? Mudou-se também. Ainda pairou enevoado, alguns dias, no mesmo lugar, mas depois se desapegou das suas moedas de ouro, ou então foi por elas atraído até a casa de um vizinho, o Petronílio. Não falta quem veja na sua prosperidade súbita e suspeita, traduzida num grande armazém de secos e molhados na cidade, e casa própria numa rua das melhores, a descoberta do botijão. Preocupado com paredes, caibros e assoalhos, meu pai esqueceu-se de escavar o porão. Quando um de nós o recrimina, fingindo seriedade, ele levanta os ombros até o queixo magro, como a dizer: "Danou-se, danado está" — filosofia que, com o peso da velhice, vai substituindo aquela outra, aquela que manda deixar porque a natureza é que resolve.
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Fonte: PÓLVORA, Hélio. Noites Vivas.

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