quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Enéas Athanázio (Meu Compadre)

(id: MCCXVII)

Encontrei um dia destes o meu afilhado. Magrinho e moreno, é o retrato do pai naquela idade. Conversamos um pouco e ele me disse que tinha achado nos papéis do pai falecido uma carta minha, de mais de vinte anos, onde eu pedia emprestados alguns livros para pesquisa e que só ele possuía por ali. Assustei-me com o tempo passado. Para mim aquilo era coisa de ontem!

– Nas suas mãos – foi dizendo o afilhado – esses livros serão mais úteis que nas minhas. Vou lhe oferecer a coleção como lembrança do papai. Tenho certeza de que ele vai gostar.

No outro dia os volumes chegaram à minha casa e agora estão diante de mim com suas encadernações luxuosas e antigas. Fiquei comovido ao folhear aquele autor que o meu compadre tanto admirava e conhecia. Comecei a lembrar, sem qualquer ordem, momentos que vivemos juntos e como essas lembranças ameaçassem entristecer-me, lutei para conservar a alegria, não apenas porque o bom humor era um dos seus traços permanentes, mesmo nas piores ocasiões, como porque aprendi com um amigo muito vivido que as pessoas queridas devem ser lembradas pelo prazer de tê-las conhecido e com elas convivido.

Meu compadre! Quantas vezes recordo seus gestos largos, sua gargalhada franca, seu vozeirão animado e cheio de convicção. Em nossos encontros ríamos à toa, como dois bobos alegres, e atropelávamos conversas sobre tudo. Era um desabafo para ambos. Por azar da sorte moramos quase sempre em cidades diferentes.

Esses encontros começaram muito cedo, creio que andávamos pelos 16 ou 17. Eu tinha que ir com freqüência à cidade onde ele morava. A viagem era feita de trem – o misto – e durava umas duas horas. Nem bem eu desembarcava e já corria para a sua casa, numa rua próxima, de onde saíamos para a cidade, envergando os chapéus e casacões exigidos pelo frio constante. Não me lembro de quando eu cuidava dos negócios da família, coisas de bancos, repartições e documentos. Mas não esqueço que palmilhávamos as ruas, íamos ao cinema, e o dia terminava, até a hora do trem de volta, num boteco onde se jogava bilhar e bebia alguma coisa – que não fosse alcoólica. A conversa mesmo era sobre livros e autores – já naquele tempo! Lembro muito bem que o dinheiro era curto, como sempre, ou quase. Ele me levava à estação e comigo ficava até a partida do misto. Sempre atrasado, ou quase. Eu o vejo em pé, na plataforma da gare, abanando num gesto de despedida. Magrinho, alto e moreno, usava um bigodinho fino, conforme a moda da época. O chapéu e o casacão cinzentos lhe davam o ar de detetive de cinema.

Passam-se os anos, rápidos, implacáveis.

Depois... bem, depois veio o período da boêmia. Mais maduros, ainda solteiros, nosso enlevo eram a boate e o cabaré, especialmente o cabaré, com as mesinhas de toalhas vermelhas e o conjunto musical instalado no canto do salão. A luz baça, as músicas descornadas, a cerveja cara e quente. Ali ele parecia em casa, num à-vontade de causar inveja. Conhecia donas e gerentes, “bailarinas”, maestros, músicos e freqüentadores. Também estava informado sobre o forte do repertório e tinha admirável olho para um novo “avião” que chegasse. Em troca era alvo das atenções: o Turco pra cá, o Turco pra lá, tapinha nas costas, abraços, cumprimentos, segredinhos de pé de ouvido.

Mas, apesar da familiaridade, fugia aos enrabichamentos, não queria compromisso. Queria mesmo a liberdade para perambular pela noite, de cabaré em cabaré, de boteco em boteco, conversando, discutindo, declamando, dançando.

Tinha paixão pelo tango e muito me fez andar para conhecer castelhanos que tocassem bandonéon ou milongas numa cordeona. Mesmo que fossem músicos medíocres ou decadentes, emigrados para nosso interior em busca da sobrevivência. Também Noel Rosa o apaixonava. Sabia tudo sobre ele e a qualquer pretexto se punha a fazer comícios sobre o “Poeta da Vila”. Entre meus guardados tenho a raridade que me ofertou: o disco em que Noel canta suas próprias músicas.

Ainda que contido pelas circunstâncias, meu compadre foi boêmio até o fim. Era um boêmio bissexto, como tantos poetas, mas quando tirava para a farra não conhecia hora ou limite. A boêmia enchia-lhe a vida, dava o toque de aventura e liberdade que equilibrava a rotina do funcionário exemplar. Para isso contou com a compreensão e a tolerância da mulher, com quem casou jovem e que faleceu cedo, deixando os filhos pequenos – inclusive o afilhado.

Foi um homem alegre e apesar dos tropeços da vida difícil nunca o vi taciturno. Não perdia ocasião para a piada ou o trocadilho, tinha uma presença de espírito admirável.

Numa das muitas visitas, foi levar-me à estação. Enquanto o trem não saía, um rádio encheu os ares com uma rancheira de limpar banco.

– Então vai mesmo, compadre velho – como me tratava –, vai embora mesmo?

– Claro, claro! Não vê que o trem já vai sair?

– Ora, ora, compadre velho! – disse ele. – Vamos dançar mais esta...

A caboclada caiu na gargalhada.

E o Aberlado, nosso companheiro de andanças, que desapareceu no mundo e declamava páginas do Buriti Perdido de fôlego, queixava-se duma mulher. Ela era bonita, um “avião”, mas não se acertava com ela.

– Pois é – comentou o compadre muito sério, balançando a cabeça com jeito de muita pena – pra mau comedor até os colhões atrapalham !

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/

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