sábado, 9 de agosto de 2008

Luiz Antonio Cardoso (A Sombra das reentrâncias)

Ela caminhava... levava nas mãos um grande galão com algum líquido, ainda indefinido, e pendurados nas costas, dois grandes sacos pretos. E ela caminhava com cautela, até mesmo assustada. Parecia esconder algo ou fugir de alguém. Sua aparência chamava a atenção: era magra, provavelmente cinqüenta anos, e tinha o semblante arredio, assim como arredios eram seus passos... passos que não paravam...

Ela passava pelas ruas fitando com estranheza as calçadas, os muros e portões... o que aquela mulher pretendia? Enquanto as pessoas ansiavam, naquele anoitecer, a hora da ceia de natal, e ocupavam-se dos derradeiros preparativos, a mulher enigmática, parecendo tão sofrida, andava pelas ruas, arcada pelo peso que carregava. Qual seria o fardo daquela mulher? Seria uma andarilha qualquer, procurando restos de comida e objetos ou fugitiva de alguma clínica para doentes mentais?

Os transeuntes não ficavam indiferentes a ela. Todos que cruzavam seu caminho olhavam-na com desconfiança ou medo... outros tinham pena, e alguns riam, dizendo que era o Papai Noel ao contrário: em vez de homem, era mulher. Magricela como só ela, enquanto o Noel era gorducho! Com uns sacos pretos que mais davam medo do que despertavam as esperanças natalinas da criançada, e com aquele jeito arisco de ser, que espantava qualquer adulto... imaginem, então, crianças!

Mas ela demonstrava uma surpreendente indiferença para com o universo humano. Os risos e até algumas provocações que alguns jovens lhe lançavam, pareciam que passavam despercebidos... o que passava pela mente daquela mulher? Quais seriam seus planos, ao observar com tantos detalhes as sarjetas, os caules das árvores e os jardins das praças?

Será que ela não tinha nada mais importante para fazer do que perder tempo daquele jeito? Será que não tinha uma família esperando-a para a noite de natal? Não seria católica? Pois a missa do galo já havia começado e a igreja estava lotada de fiéis...

Mas ela continuava a andar... um policial que passava apressado, fitou-a por alguns segundos e seguiu adiante... será que ele havia percebido, com toda sua experiência, que se tratava de uma mulher inofensiva?!

E ela, após andar por horas, acabou dando uma grande volta ao redor daqueles bairros, indo parar naquelas mesmas ruas! Os grandes ponteiros do relógio da matriz assinalavam meia-noite! Fogos de artifício iluminavam o manto estrelado, anunciando o natal... nos lares: abraços e beijos! Troca de presentes! Comida farta... brindes com champanhes... muitos pernis, lombos... tantos perus, frangos e outros animais haviam sucumbido para saciar o insaciável desejo humano! Muitos vinhos estavam sendo sorvidos.

E a mulher, voltando à mesma rua na qual iniciou sua caminhada, parou pela primeira vez, tirou de um dos sacos pretos, três potes vazios de manteiga. Num deles despejou uma boa quantidade de ração para cães, que tirou do outro saco, e colocou o pote numa reentrância que havia observado na árvore... outro pote encheu de água cristalina, que trazia no galão, e inseriu na segunda reentrância... o terceiro pote serviu para acomodar ração para gatos, que ela pendurou, com muito cuidado, num galho da mesma árvore... e assim seguiu seu trilhar, com bastante rapidez, devido à prática e a observação prévia, construindo um natal mais feliz aos cães e gatos desamparados...

Realmente ela tinha algo de Papai Noel, e se aproveitando do vazio das ruas, devido às ceias e festejos natalinos, ia procurando o melhor lugar para montar a mesa das criaturinhas de Deus... buscava a sombra das reentrâncias, o esconderijo dos galhos, as frestas dos muros, sabendo que ali a inconsciência alheia teria mais dificuldade de avistar e de chutar, com risos galgados ao álcool e merecedores de piedade.

Amanhecia... uma bela manhã de natal começava a despontar na cidade... homens e mulheres dormiam, sendo que muitos acordariam com monumentais ressacas! Muitos gatos e cães, outrora abandonados, dormiam saciados, por que uma boa alma havia passado uma noite de natal a festejar a caridade para com aqueles que a humanidade, há séculos, classificou de úteis e inúteis, de saborosos ou indigestos, de divertidos ou chatos!

E aquela mulher sumiu... ninguém mais a viu! Ninguém sabia seu nome, se era casada, se tinha filhos, se sofria, se amava, se acreditava em Deus... parecia que ela havia se diluído às sombras... ou teria se perdido nas reentrâncias da vida? Ninguém sabia responder... mas onde estivesse, com ela certamente seguia a silenciosa gratidão de dezenas de criaturas... com ela seguia a paz da missão cumprida e a agradabilíssima sensação de harmonia universal para com a natureza... para com o cosmos... para com Deus...
Taubaté-SP, 2007

Fonte:
Diário LAC - Literatura, Artes e Cultura . http://www.diariolac.com.br/

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