quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Nilto Maciel (Literatura Fantástica no Brasil - parte I)

(id: MCCXIV)

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Para Tzvetan Todorov, "a expressão ‘literatura fantástica’ refere-se a uma variedade da literatura ou, como se diz comumente, a um gênero literário”.

Segundo ele, “o fantástico teve (grifo nosso) uma vida relativamente breve. Ele apareceu de uma maneira sistemática por volta do fim do século XVIII, com Cazotte; um século mais tarde, encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero.” E pergunta: “...por que a literatura fantástica não existe mais?”

Todorov estudou, basicamente, a literatura européia, com ênfase na francesa. Poe apenas estaria “muito próximo dos autores do fantástico”. Suas novelas se prenderiam quase todas ao estranho (sobrenatural explicado) e algumas, ao maravilhoso (sobrenatural aceito). As Mil e uma Noites se situariam numa das sub-divisões do maravilhoso – o hiperbólico. Bierce e Carr são pouco citados.

Teríamos, então, o gênero fantástico e alguns sub-gêneros dele: o fantástico-estranho, o fantástico-maravilhoso, o estranho puro e o maravilhoso puro. Todorov não os denomina sub-gêneros, embora afirme: “O estranho não é um gênero bem delimitado, ao contrário do fantástico.” E dá como exemplos dele os romances de Dostoievski. O maravilhoso seria, ainda, subdividido em hiperbólico, exótico, instrumental e científico (a science fiction).

Além disso, o fantástico teria dois importantes gêneros vizinhos: a poesia e a alegoria.

Os autores estudados por Todorov são “criativos”, para usarmos uma expressão de Freud. Ou escritores singulares. Não se enquadravam nos limites do Romantismo nem do Realismo, salvo uns poucos: Balzac, Mérimée, Hugo, Flaubert e Maupassant. Há, ainda, aqueles que os manuais de literatura incluem quase que arbitrariamente nesta ou naquela escola. Gautier é tido como romântico e parnasiano. No entanto, foi um rebelde, ao lançar o movimento estético da “arte pela arte”. Mérimée é tido como simplesmente realista. Nerval é posto ao lado dos grandes românticos, embora tenha sido um precursor do simbolismo e do surrealismo. Nodier, também chamado de romântico, é precursor do próprio Nerval e do surrealismo.

Alguns nem sequer são lembrados, como Jacques Cazotte, o autor de Le Diable Amoureux. E veja-se que ele é muito anterior a Balzac. Quando morreu (1792), o fundador do Realismo nem havia nascido.

De análise em análise, Todorov chegou a outra conclusão: a de que a literatura fantástica nada mais é do que a má consciência do século XIX positivista. E como interpretar ou explicar Kafka? Assim: “as narrativas de Kafka dependem ao mesmo tempo do maravilhoso e do estranho, são a coincidência de dois gêneros aparentemente incompatíveis.”

Com o aparecimento de Tirano Banderas, de Valle-Inclan, seguindo-se O Senhor Presidente, de Astúrias, e depois as obras de García Márquez, Juan Rulfo, Scorza, Cortázar, Fuentes e outros, os críticos necessitavam cunhar essa nova tendência da literatura. Para uns o nome deveria ser “realismo fantástico”; para outros, “realismo mágico”.

E no Brasil?

Durante o século XIX poucos foram os escritores brasileiros que enveredaram pelo fantástico. Álvares de Azevedo, em Noite na Taverna, e Machado de Assis, em alguns contos, são os mais conhecidos. Apesar disso, historiadores como Sílvio Romero e José Veríssimo não se detiveram na análise dessas páginas enquanto literatura fantástica. O primeiro, na monumental História da Literatura Brasileira, embora se refira, aqui e ali, a Poe, Gautier, Perrault e outros cultores do gênero, mesmo nesses momentos fala apenas de “imaginação ardente” e “fantasia”. Edgar Allan Poe é um “desequilibrado”.

Como ainda hoje em muitos estudiosos da Literatura, o vocábulo “fantástico” não passa de derivado ou sinônimo de “fantasia” e “imaginação”, que, por sua vez, estão associados aos adjetivos “misterioso”, “sobrenatural” e “grotesco”.

Massaud Moisés se detém neste último vocábulo: “Confundido não raro com o fantástico, o burlesco, o gótico, o cômico de baixa extração, o grotesco ergue-se, no entanto, como categoria estética autônoma...” E relaciona o grotesco aos autores românticos, citando Schlegel, Hoffmann, J.Paul, Poe, Cousin e Victor Hugo.

Em Conto Brasileiro Contemporâneo, Antonio Hohlfeldt dedica um capítulo ao que chama de “conto alegórico”, cujos principais expoentes no Brasil seriam Murilo Rubião, Péricles Prade, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice. E fundamenta por que prefere o termo “alegórico” ao “fantástico”. E assim inicia o capítulo: “A incidência de uma literatura não racionalista, não realista, ao menos em suas aparências, que vem ocorrendo no Ocidente contemporâneo com maior ênfase a partir de Franz Kafka, e no Brasil tem como referencial imediato a publicação de O Ex-Mágico, de Murilo Rubião (1947), tem permitido uma série de polêmicas e contradições sobre as designações a lhe dar. Literatura do absurdo, como se pretendia em referência ao escritor de O Castelo, literatura fantástica, como a chamou Louis Vax, suas possíveis analogias com mitologias primitivas, especialmente após o chamado boom da literatura hispano-americana dos anos 1960 ampliaram os estudos pioneiros de um Propp e outros formalistas russos e todos os que seguiram em suas águas, até a cunhagem do termo composto de “realismo-mágico”, que acabou ganhando status entre a crítica literária. No Brasil, um dos que mais entendeu o assunto certamente terá sido o crítico José Hildebrando Dacanal. No entanto qualquer que seja o posicionamento que se venha a adotar, jamais se alcança esclarecer a gama de variações que tais textos apresentam e, pelo contrário, termina-se por perder aquele momento que os unificaria.”

E prossegue: “Há uma diferença básica a opor-se entre aquela literatura européia praticada em torno do elemento fantástico e a que hoje em dia se realiza entre nós: enquanto naquela o elemento irreal ou não-real apenas serve como ratificação do real como único dado existente, na literatura latino-americana, aí incluída a brasileira, a oposição fica totalmente afastada, de tal sorte que ambos os elementos convivem sem maiores problemas.”

Em outro estudo do conto brasileiro atual, Temístocles Linhares reconhece serem poucos os cultores do conto fantástico no Brasil. E se detém na análise da distinção “que existe entre o ‘fantástico’ no conto e o conto propriamente ‘fantástico’”.Tal distinção se observa também na novela e no romance, isto é, na literatura fantástica como gênero. E há, ainda, que se distinguir os que se dedicaram ou se dedicam a este gênero, como Murilo Rubião, daqueles que apenas vez por outra escreveram ou escrevem contos ou novelas fantásticas.


PRIMÓRDIOS

O primeiro momento notável da literatura fantástica no Brasil se deu em 1855, com a publicação de Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo.

Dividido em sete capítulos, o livro bem poderia ser um romance. E então já teríamos em Álvares de Azevedo um precursor das inovações na questão do ponto-de-vista. No entanto, a obra é tida como um conjunto de contos. Mas não importa aqui discutir isso. Carlos Alberto Iannone afirma: “O livro é constituído por uma série de histórias fantásticas e trágicas, impregnadas de vícios e crimes.”

Talvez o melhor adjetivo para as histórias do grande poeta romântico seja “trágicas”. Ora, uma história não é fantástica apenas por não ser reprodução fiel da realidade. Como ensina Todorov, “não é possível definir o fantástico como oposto à. reprodução fiel da realidade, ao naturalismo.”

À época de Sílvio Romero não se falava em literatura fantástica. Pelo menos no Brasil. Álvares de Azevedo “foi um melancólico, um imaginoso, um lírico, que enfraqueceu as energias da vontade e os impulsos fortes da vida no estudo, e enfermou o espírito com a leitura desordenada dos românticos à Heine, Byron, Shelley, Sand e Musset”, segundo aquele historiador. “Um talento lírico”, enfatizou. E concluiu: em Noite na Taverna “há algumas belezas entre muitas extravagâncias e afetações.”

José Veríssimo também dedica apenas duas ou três linhas à prosa de ficção de Álvares de Azevedo. E quase repete as palavras de Sílvio Romero, não tivesse preferido um adjetivo a um substantivo: “Daquele seu teor de vida romântica, a expressão literária é a Noite na Taverna, composição singular, extravagante (grifo nosso), mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo.”

Desde 1862 vinha Machado de Assis publicando contos em jornais e revistas. No entanto, Contos Fluminenses, seu primeiro livro no gênero, só sairia em 1870.

Como já dissemos, os primeiros historiadores e estudiosos da Literatura Brasileira não mencionaram a expressão “literatura fantástica”, embora na Europa já se publicassem contos e novelas fantásticas, até mesmo sob títulos que traziam o vocábulo “fantástico”.

José Veríssimo, que estudou nossa literatura exatamente até Machado, andou perto de descobrir o fantástico. Senão vejamos este trecho de sua História: “Ainda em algum tipo, episódio, ou cena de pura fantasia, nunca a ficção de Machado de Assis afronta o nosso senso da íntima realidade. Assim, por exemplo, nesse conto magnífico O alienista ou nessoutra jóia Conto alexandrino, como na admirável invenção de Braz Cubas, e todas as vezes que a sua rica imaginação se deu largas para fora da realidade vulgar, sob os artifícios e os mesmos desmandos da fantasia, sentimos a verdade essencial e profunda das coisas, poderíamos chamar-lhe um realista superior, se em literatura o realismo não tivesse sentido definido.

Sílvio Romero, que é anterior a Veríssimo, também não lograra ver com nitidez o fantástico na obra machadiana. Copiemos um trecho de sua análise: “Há uma nota nas Memórias de Braz Cubas e noutros dos mais recentes livros de Machado de Assis, que deve ser assinalada para completa apreciação de sua personalidade: a coloração de horrível que imprime em alguns de seus quadros.” E prossegue: “Falta neste ponto a Machado um não sabemos quê que é uma espécie de impavidez na loucura, qualidade possuída pelo grande Ed. Poe e de que é um medonho exemplo o seu Gato Preto, ou um certo tomo grandioso e épico que estruge nalgumas páginas da Casa dos Mortos de Dostoievski, capazes de emparelhar com algumas cenas de Dante.”

Mais para cá, entretanto, os críticos têm sido mais argutos no observar o fantástico entre nós. Temístocles Linhares, por exemplo: “Lembro-me do nosso Machado de Assis, que tantas vezes fez uso da temática do maravilhoso, ou seja, da imortalidade, da eternidade, da “segunda vida”, por meio de incursões milagrosas, de personagens ressuscitadas, de diálogos entre Deus a o Diabo, de Santos que descem do altar e vêm conversar entre si...”

Em obra mais próxima de hoje – Enciclopédia de Literatura Brasileira, dirigida por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa –, o verbete "conto" traz o seguinte: “A referência aos dois mestres do conto fantástico (Machado cita Mérimée e Poe na abertura de Várias Histórias) não é casual, fortuita reminiscência de leitura, mas revela, antes, uma evidente preferência por essa espécie de literatura, como é fácil verificar-se pela repetição de páginas como “A igreja do diabo”, “Entre santos”, “A chinela turca” e, acima de tudo, por ser uma verdadeira obra-prima, a admirável narrativa que e “Sem olhos”. Mais ilustrativo ainda é o fato de uma de suas mais antigas produções, ainda hesitante e sem maiores méritos literários, “O país das quimeras”, aparecido no Futuro, em 1862, trazer mesmo o subtítulo de conto fantástico.”

Oliveira Paiva não teve livro publicado em vida. Dona Guidinha do Poço veio a lume 60 anos depois de sua morte. A Afilhada saiu em folhetins e os contos também estamparam-se em jornais quase todos em 1887, reunindo-se em livro somente em 1976. Um delas – O Ar do Vento, Ave-Maria! – “é uma narrativa fantástica, ao mesmo tempo regionalista e folclórica, em que figura uma burra sem cabeça, ou burra de padre”, esclarece Sânzio de Azevedo na apresentação do livro.

F.S. Nascimento, em Três Momentos da Ficção Menor, dedica algumas páginas a Oliveira Paiva, esclarecendo que o conto já referido foi “contemplado com substancioso estudo de Rolando Morel Pinto, filiando-o ao conceito de realismo fantástico e detendo-se nos requintes formais utilizados para estabelecer a atmosfera de apreensão e pavor, que efetivamente se plenifica.”

Ainda no século XIX vamos encontrar outros cultores do fantástico. Pelo menos três deles devem ser aqui mencionados: Inglês de Sousa, Maurício Graco Cardoso e Emília Freitas.

O romancista Inglês de Sousa deixou também um volume de histórias curtas, que intitulou Contos Amazônicos (1893). Um desses contos foi republicado em 1970, na Antologia de Contos Brasileiros de Bichos. Trata-se de “O gado do Valha-me-Deus”. A ele se refere Temístocles Linhares, assim: “Aquele gado procurado interminavelmente e do qual só se percebia o rasto, a sua imensa batida, com as pegadas no chão e que assume proporções fantásticas junto à Serra do Valha-me-Deus, que ninguém tinha subido e impossibilitava qualquer procura, apesar de todo o rebanho ter deixado ali as suas pegadas num caminho estreito que volteava na montanha e parecia sem fim.

Maurício Graco Cardoso é menos conhecido e citado nos compêndios da história da Literatura Brasileira. Nascido em 1874, publicou o livro Contos Fantásticos em 1891.

Entre 1855 e 1908 viveu Emília Freitas, autora do primeiro romance fantástico da Literatura Brasileira. Publicado em 1899, A Rainha do Ignoto só foi redescoberto recentemente, pelo pesquisador e crítico Otacílio Colares, que escreveu o prefácio da 2ª edição, datada de 1980.

Emília nasceu em Aracati, Ceará. Adolescente, mudou-se para Fortaleza, onde estudou francês, inglês e geografia. Anos depois foi morar em Manaus, onda exerceu a profissão de professora. Antes de publicar seus livros – dois romances e um volume de poesias –, colaborou em jornais.

Na opinião de Otacílio Colares, A Rainha do Ignoto apresenta-se “com os apelos ao imponderável, por facilidade de alguns acoimado de espírita, quando mais não foi, nas intenções de sua autora, que uma fuga propositada ao passado, ao que se convencionou denominar – romance gótico, embora partindo do regional mais autêntico.”

Otacílio Colares escreveu também o ensaio “A Rainha do Ignoto, romance cearense, pioneiro do fantástico no Brasil”, onde demonstra que o livro de Emília Freitas deve ser classificado como de legítima literatura fantástica e ainda que se trata do primeiro romance, no Brasil, programado “para entrar no campo da inverossimilhança, pois com igual característica, antes dele e na sua contemporaneidade, outro não houvera.”

No entanto, o nome de Emília Freitas não aparece em Sílvio Romero nem em José Veríssimo. Talvez não tenham ouvido falarem dela, embora ambos se refiram a livros editados já no século XX.

Com toda a certeza, Emília Freitas não deixou discípulos. Primeiro porque seu romance foi publicado no Ceará, não encontrou receptividade na crítica, mesmo local, e, assim, permaneceu no semi-ineditismo. Depois, vivia-se no final do século a febre do naturalismo.

Antes de encerrarmos este capítulo é necessário falarmos duas palavras dos simbolistas, embora atentos ao que nos lembra Alfredo Bosi: "Pela origem e natureza da sua estética, o Simbolismo tendia a expressar-se melhor na poesia do que nos gêneros em prosa, em geral mais analíticos e mais presos aos padrões do verossímil e do coerente.”

O mesmo Bosi nos traz quatro simbolistas, cujas obras em prosa poética apresentam alguns traços do fantástico: Nestor Vítor, Lima Campos, Gonzaga Duque e Rocha Pombo.

Do primeiro assim nos fala: “Signos (1897), de Nestor Vítor, em que o atilado crítico do movimento trabalha uma linguagem expressionista avant la lettre, cujo exemplo mais sério é a novela “Sapo”, história de um rapaz que se alheia radicalmente da sociedade até ver-se um dia transformado em um animal repelente “de malhas amarelas e verde-escuras a cobrirem-lhe o corpo”. Quem não lembrará, ao menos pela alegoria final, a Metamorfose, que Kafka escreveria vinte anos depois?”

Do segundo lembra Confessor Supremo, de 1904, que define como “contos fantásticos ou oníricos”.

De Gonzaga Duque cita Horto de Mágoas, de 1914 – “livro de contos nefelibatas”.

Rocha Pombo é lembrado pelo romance No Hospício, de 1906. E diz: “Os críticos que lhe têm dedicado mais atenção falam de Poe e de Hoffmann como influências prováveis no espírito e na fatura da obra. É observação que se deve tomar cum grano salis, pois desses românticos intensamente criadores o nosso Rocha Pombo herdou apenas o gosto do quadro narrativo excepcional (um hospício onde um jovem sensível foi criminosamente internado pelo pai), mas não foi capaz de imitar-lhes a arte de sugerir atmosferas pesadelares, pois carecia de recursos formais pana tanto.”

continua...

Fonte:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/

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