sexta-feira, 26 de setembro de 2008

História do Soneto

Sonetos no mundo

Ao que tudo indica, o soneto - do italiano sonetto, pequena canção ou, literalmente, pequeno som - foi criado no começo do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte de Frederico II da mesma forma que as tradicionais baladas provençais. Alguns atribuem a Jacopo (Giacomo) Notaro, um poeta siciliano e imperial de Frederico, a invenção do soneto, que surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música, possuindo uma oitava e dois tercetos, com melodias diferentes.

O número de linhas e a disposição das rimas permaneceu variável até que um poeta de Santa Firmina, Guittone D'Arezzo, tornou-se o primeiro a adotar e aderir definitivamente àquilo que seria reconhecido como a melhor forma de expressão de uma emoção isolada, pensamento ou idéia: o soneto. Durante o século XIII, Fra Guittone, como era conhecido, criou o soneto guitoniano, padronizado, cujo estilo foi empregado por Petrarca e Dante Aligheri, com pequenas variações. Tais sonetos são obras marcantes, se considerarmos as circunstâncias em que eles surgiram.

O nome mais associado aos primeiros desenvolvimentos da forma do soneto na Itália, é claro, é Francesco Petrarca (1304-1374). Em 1326, após a morte de se pai, ele se mudou de Arezzo na Toscana para Avignon. Ali começou o seu singelo amor por uma mulher conhecida como Laura, a quem ele endereçou seus poemas. Ele é lembrado como o fundador do movimento humanista, acreditando na continuidade entre a cultura clássica e a mensagem de Cristo. Em 1337 ele deixou Avignon por Vaucluse, um lugar de retiro, onde ele produziu muito de seus maiores trabalhos. Em setembro de 1340 ele recebeu convites tanto de Paris quanto de Roma para ser coroado como poeta; ele escolheu Roma. (...) A ele é creditada a primeira forma conhecida do soneto: As catorze linhas divididas em duas estrofes, uma oitava com o posicionamento das rimas abbaabba e um sexteto com o posicionamento variável – cdecde, ou cdcdcd, ou cdcdce, ou qualquer outro arranjo, que nunca termina num par de versos. A oitava apresenta o tema ou problema do poema e o sexteto apresenta uma mudança no pensamento ou a resolução do problema. Seu Canzoniere contém 317 sonetos, coletânea de poesia que exerceu inflência sobre toda a literatura ocidental. As melhores poesias desse livro são dedicadas a Laura de Novaes, por quem possuía um amor platônico. Destacam-se os recursos metafóricos e o lirismo erótico dos sonetos.

Quando estes sonetos foram trazidos para a Inglaterra, junto a outras formas italianas de versos, por Sir Thomas Wyatt (1503-1542) e Henry Howard, conde de Surrey (1517-1547) no século XVI, eles foram modificados para o que hoje é conhecido como a forma Shakesperiana: esta possui três quartetos, cada um com um posicionamento de rimas independente, e termina com um par de versos rimado (abab;cdcd;efef;gg). Mais uma vez, os sonetos geralmente formavam uma uma seqüência de conjuntos independentes mas relacionados de poemas de amor. Um antigo exemplo é a obra Astrophel e Stella (1591) de Sir Philip Sidney. Os próprios 154 sonetos de Shakespeare foram publicados em 1609, embora suas datas de composição sejam desconhecidas.

A outra forma inglesa do soneto é chamada a forma Spenseriana, por causa de Edmund Spenser (1552-1599). Sua obra de mestre foi The Faire Queen, cuja primeira edição foi publicada em 1609. Ele publicou versões inglesas de poemas do poeta francês do século XVI Joachim du Bellay, e de uma versão francesa de um poema de Petrarca em 1569, quando ele entrou no Pembroke Hall da Universidade de Cambridge. (...) Em 1595 ele publicou Amoretti, uma seqüência de sonetos. A forma Spenseriana tem três quartetos e um par rimado ao final, mas o posicionamento das rimas é intercalado: abab;bcbc;cdcd;ee.

A forma Petrarquiana do soneto continuou a ser usada por poetas ingleses; ela também foi revivida em meados do século XIX, por exemplo por Elizabeth Barrett Browning em Sonnets from the Portuguese (1850) (Isto não significa que os 44 poemas são traduções dos originais em português – "The Portuguese" foi o apelido que Robert Browning deu a ela!). William Wordsworth também empregou esta forma, por exemplo em The World is Too Much with Us, como fez John Keats. (...) John Berryman achou esta uma forma tentadora para escrever os seus 115 sonetos eróticos.

A forma do soneto também penetrou em outros idiomas – francês, onde o verso decassílabo foi substituído por uma linha dodecassílaba, porque ela se encaixava melhor com a linguagem; alemão, polonês e outros idiomas eslavos.

Uma das mais modernas seqüências de sonetos é Die Sonnette an Orpheus (Sonetos a Orfeu) escrita por Rainer Maria Rilke (1875-1926). Este ciclo de 55 poemas foi publicado em 1923. A forma que ele usa é de certa forma diferente. As linhas são decassílabas, mas os poemas consistem de quatro estrofes: dois quartetos e dois tercetos, e o posicionamento das rimas varia: abab;cdcd;eff;gge, ou abba;cddc;efg;gfe, ou abba;cddc;efe;gfg, ou abab;cdcd;eef;ggf. Existem outras variações, porém isto depende do tipo de licença poética que o poeta se permite, sem perder a estrutura disciplinada da forma.

Dante Alighieri, o autor da consagrada "A Divina Comédia", e também um seguidor de Guittone, em sua infância já compunha sonetos amorosos. Seu amor impossível por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari) foi imortalizado em vários sonetos em "Vita Nuova", seu primeiro trabalho literário de grande importância.

Anos se passaram até que dois ícones da literatura mundial, um inglês e um português, deram ao soneto, cada um ao seu modo, o toque de mestre: William Shakespeare e Luis de Camões.

Camões freqüentou a nobreza em Portugal, mas foi exilado por suas posições políticas. Passou alguns anos na prisão, de onde saiu com "Os Lusíadas", uma obra que o colocou entre os maiores poetas de todos os tempos. Apesar disso, morreu pobre. Escreveu diversos sonetos, tendo o amor como tema principal.

Luis de Camões

Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Shakespeare, além de teatrólogo, desenvolveu uma habilidade única na poesia. O seu soneto, o soneto inglês, é composto por três quartetos e um dístico, diferente da composição original de Petrarca. O mais célebre dos escritores ingleses escreveu diversos poemas, alguns deles recheados de metáforas. Curiosamente, sua obra Romeu e Julieta destaca um soneto, bem no início do diálogo entre os seus protagonistas...

William Shakespeare

NUM SALÃO DA CASA DOS CAPULETOS

ROMEU (a Julieta)
Se minha mão profana o relicário
em remissão aceito a penitência:
meu lábio, peregrino solitário,
demonstrará, com sobra, reverência.

JULIETA
Ofendeis vossa mão, bom peregrino,
que se mostrou devota e reverente.
Nas mãos dos santos pega o paladino.
Esse é o beijo mais santo e conveniente.

ROMEU
Os santos e os devotos não têm boca?

JULIETA
Sim, peregrino, só para orações.

ROMEU
Deixai, então, ó santa! que esta boca
mostre o caminho certo aos corações.

JULIETA
Sem se mexer, o santo exalta o voto.

ROMEU
Então fica quietinha: eis o devoto.

Desde então, o soneto adquiriu importância ao redor do mundo, tornando-se a melhor representação da poesia lírica. Alguns casos são notáveis: o poeta russo Aleksandr Pushkin compôs Eugene Onegin, um poema repleto de sonetos adotado por Tchaikovsky para compor uma de suas óperas; o francês Charles Baudelaire ajudou a divulgar os versos alexandrinos em Les Fleurs du Mal. Até Vivaldi usou-se de sonetos.

Charles Baudelaire

Teu olhar me diz, claro como cristal:
“Bizarro amante, o que há em mim que mais te excita?”
- Sê bela e cala! O meu coração, que se irrita,
Por tudo, exceto a antiga candura animal,
.
Não te quer revelar seu segredo infernal,
Embalo cuja mão a um longo sono incita,
Nem a sua negra lenda a ferro e fogo escrita.
Abomino a paixão e a alma me faz mal!
.
Amemo-nos em paz. Amor, numa guarida,
Tenebroso, emboscado, entesa o arco fatal.
Conheço-lhe os engenhos do velho arsenal:
.
Crime, horror e loucura! - Ó branca margarida!
Não serás tu, como eu, triste sol outonal,
Ó minha branca, ó minha branca Margarida?

E por falar em versos alexandrinos, utilizados por muitos sonetistas, eles remontam - segundo alguns dicionários da língua portuguesa - a uma obra francesa do século XII chamada Le Roman d'Alexandre, e significam versos de doze sílabas poéticas. Porém, os dicionários da língua espanhola - apesar de apontarem para a mesma origem - insistem em afirmar que os versos alexandrinos são aqueles que contêm catorze sílabas gramaticais.

Finalmente, após aderir ao humanismo e ao estilo barroco, o poema dos catorze versos acabou sendo desprezado pelos iluministas. No século XIX, ele voltou a ser cultivado, com mais fervor, por românticos, parnasianos e simbolistas, sobrevivendo ao verso livre do modernismo - que viria em seguida - até os dias atuais.

Sonetos no Brasil

Gregório de Mattos foi um dos primeiros sonetistas em terras brasileiras. Nascido na Bahia, revoltou-se contra o governo e a Igreja e passou a escrever obras satíricas, algumas de caráter pornográfico. Era conhecido como "Boca do Inferno" por seus versos e chegou a ser denunciado à Inquisição. Sua obra "Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado" é uma das que mais aparecem nas provas de vestibular.

A uma dama dormindo junto a uma fonte

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.


Quando o arcadismo apareceu no Brasil, quase ao mesmo tempo que em Portugal, um de seus representantes foi o mineiro Cláudio Manuel da Costa, que em Vila Rica (Ouro Preto) juntou-se a Tomás Antônio Gonzaga. Gonzaga foi outro sonetista de grande importância e autor da obra que o tornou o mais famoso dos árcades brasileiros: "Marília de Dirceu". Ambos foram presos acusados de terem participado da Conjuração Mineira.

Cláudio Manuel da Costa

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.


Tomaz Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu
Soneto 5

Ao templo do Destino fui levado:
Sobre o altar num cofre se firmava,
Em cujo seio cada qual buscava,
Tremendo, anúncio do futuro estado.

Tiro um papel e lio - céu sagrado,
Com quanta causa o coração pulsava!
Este duro decreto escrito estava
Com negra tinta pela mão do fado:

"Adore Polidoro a bela Ormia,
sem dela conseguir a recompensa,
nem quebrar-lhe os grilhões a tirania."

Dar mãos Amor mo arranca, e sem detença,
Três vezes o levando à boca impia,
Jurou cumprir à risca a tal sentença.

O romantismo em seguida viria a conhecer diversos imortais da poesia. Compuseram sonetos Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Augusto dos Anjos, Castro Alves entre outros. Suas obras ilustram as três fases da era romântica, período cuja importância literária promoveu uma verdadeira revolução na cultura brasileira.

Gonçalves Dias

Pensas tu, bela Anarda, que os poetas
Vivem d'ar, de perfumes, d'ambrosia?
Que vagando por mares d'harmonia
São melhores que as próprias borboletas?

Não creias que eles sejam tão patetas.
Isso é bom, muito bom mas em poesia,
São contos com que a velha o sono cria
No menino que engorda a comer petas!

Talvez mesmo que algum desses brejeiros
Te diga que assim é, que os dessa gente
Não são lá dos heróis mais verdadeiros.

Eu que sou pecador, - que indiferente
Não me julgo ao que toca aos meus parceiros,
Julgo um beijo sem fim cousa excelente.

Álvares de Azevedo

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!

Fagundes Varela

Desponta a estrela d'alva, a noite morre.
Pulam no mato alígeros cantores,
E doce a brisa no arraial das flores
Lânguidas queixas murmurando corre.

Volúvel tribo a solidão percorre
Das borboletas de brilhantes cores;
Soluça o arroio; diz a rola amores
Nas verdes balsas donde o orvalho escorre.

Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
Às carícias da aurora, ao céu risonho,
Ao flóreo bafo que o sertão perfuma!

Porém minh'alma triste e sem um sonho
Repete olhando o prado, o rio, a espuma:
- Oh! mundo encantador, tu és medonho!

Augusto dos Anjos

A Árvore da Serra

- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

Castro Alves
.
Aqui, onde o talento verdadeiro
Não nega o povo o merecido preito;
Aqui onde no público respeito
Se conquista o brasão mais lisonjeiro.

Aqui onde o gênio sobranceiro
E, de torpes calúnias, ao efeito,
Jesuína, dos zoilos a despeito,
És tu que ocupas o lugar primeiro!

Repara como o povo te festeja...
Vê como em teu favor se manifesta,
Mau grado a mão, que, oculta, te apedreja!

Fazes bem desprezar quem te molesta;
Ser indif'rente ao regougar da inveja,
"Das almas grandes a nobreza é esta."

Olavo Bilac introduziu o parnasianismo em seus sonetos grandiosos pela devoção ao culto da palavra e ao estudo da língua portuguesa. É o autor do "Hino à Bandeira". Juntos a ele escreveram sonetos Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraes, esse último representante do simbolismo e um dos autores que apresentaram maior misticismo em nossa literatura.

Olavo Bilac

I
Talvez sonhasse, quando a vi. Mas via
Que, aos raios do luar iluminada
Entre as estrelas trêmulas subia
Uma infinita e cintilante escada.

E eu olhava-a de baixo, olhava-a... Em cada
Degrau, que o ouro mais límpido vestia,
Mudo e sereno, um anjo a harpa doirada,
Ressoante de súplicas, feria...

Tu, mãe sagrada! vós também, formosas
Ilusões! sonhos meus! íeis por ela
Como um bando de sombras vaporosas.

E, ó meu amor! eu te buscava, quando
Vi que no alto surgias, calma e bela,
O olhar celeste para o meu baixando...

Cruz e Souza

Sonho Branco

De linho e rosas brancas vais vestido,
Sonho virgem que cantas no meu peito!...
És do Luar o claro deus eleito,
Das estrelas puríssimas nascido.

Por caminho aromal, enflorescido,
Alvo, sereno, límpido, direito,
Segues radiante, no esplendor perfeito,
No perfeito esplendor indefinido...

As aves sonorizam-te o caminho...
E as vestes frescas, do mais puro linho
E as rosas brancas dão-te um ar nevado...

No entanto, Ó Sonho branco de quermesse!
Nessa alegria em que tu vais, parece
Que vais infantilmente amortalhado!

Alphonsus de Guimaraes

II
Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.

Do pré-modernismo e do modernismo, estilo que perdura até hoje, surgiram escritores célebres. Alguns exemplos de sonetistas são Machado de Assis (com sua maravilhosa obra "A Carolina"):

Machado de Assis

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Fernando Pessoa

Há um poeta em mim que Deus me disse...

Há um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efêmera e espectral ledice...

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir do dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e vôo...

Carlos Drummond de Andrade

Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

Manuel Bandeira

Sonho Branco

Não pairas mais aqui. Sei que distante
Estás de mim, no grêmio de Maria
Desfrutando a inefável alegria
Da alta contemplação edificante.

Mas foi aqui que ao sol do eterno dia
Tua alma, entre assustada e confiante,
Viu descender à paz purificante
Teu corpo, ainda cansado da agonia.

Senti-te as asas de anjo em mesto arranco
Voejar aqui, retidas pelo aceno
Do irmão, saudoso de teu riso franco.

Quarenta anos lá vão. De teu moreno
Encanto hoje resta? O eco pequeno,
Pequeno de teu sonho - um sonho branco!

Vinícius de Moraes

Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Os sonetos atravessaram a história, vencendo prisões e guerras, cantando o amor e a arte. Tornaram-se o vício de uma geração. Rimando ou não, tocaram (e tocam) corações por todas as culturas e países, principalmente o Brasil. Ao mesmo tempo curtos e elaborados, eles são sem dúvida a expressão maior da dedicação de escrever versos. Tal dedicação cantou Olavo Bilac em sua obra "Profissão de fé":

"Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que êle, em ouro, o alto-relêvo
Faz de uma flor..."


Fontes:
Bernardo Trancoso. In http://www.sonetos.com.br/
http://www.colegiosaofrancisco.com.br/
Desenho http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Nenhum comentário: