domingo, 28 de setembro de 2008

Nilto Maciel (Paisagem Celeste)

Pé ante pé, mão a roçar a parede, Luís deixou o quarto, passou pelo corredor e alcançou a ante-sala. Em cada mão um sapato. Parou, conteve a respiração, desceu o primeiro degrau e o segundo. Olhou para trás. Tudo calmo. Levou a mão à porta. Nada de barulho ao retirar a trave. Se Maria ou os filhos acordassem, inventaria alguma desculpa: esquecera de trancar a porta. E voltaria à rede. Sondou de novo a retaguarda: a parca luz da lamparina se infiltrava pela brecha da porta e alumiava uma nesga de chão do corredor. Ninguém tossia nem roncava. Dormiam sonos profundos, talvez. Retirou, com cautela, a trave e a pôs no chão, em posição vertical. Se tombasse, todos acordariam. Deu uma volta à chave, mais uma, retirou-a da fechadura e a colocou num bolso. Abaixou-se para levantar o ferrolho, voltou à posição normal, puxou com leveza a tábua da porta, olhou para os dois lados da rua, fez o movimento contrário na madeira e desceu o degrau para a calçada. Meteu no bolso a mão, à cata de cigarros. Não, a fumaça inundaria a casa, pelas brechas da porta. Caminhou a passos largos no rumo da igreja matriz.

Necessitava caminhar muito, cansar, sentir vontade de dormir. Não suportava mais tantas noites sem sono, a se revirar na rede. Quando a claridade da aurora se anunciava no telhado, mal agüentava espiar os punhos da rede, a cabeça a lhe doer, o corpo quente, febril. Embora assim, carecia se banhar, tomar café, caminhar até a mercearia e passar mais um dia sem ânimo, nem para as conversas sem fim com os amigos de sempre. Ao chegar à pracinha, sentou-se num banco. As luzes dos postes lhe faziam mal. Tossiram numa das casas. Tratou de deixar o banco e se pôs a caminhar entre as árvores, pelas calçadas internas do logradouro. Viu-se diante do coreto. Há quanto tempo não o via! Talvez nunca tivesse passado ao seu interior. Um cachorro dormia debaixo de um banco e se assustou ao ver aquele guarda-noturno estranho. Fez menção de se erguer e correr. Luís o tranqüilizou. Ficasse ali mesmo, não lhe ia fazer mal. O cão mirou os olhos do homem, que deu meia-volta e se retirou. Nada de confusões, fosse com bichos, fosse com gente. Precisava de solidão, paz e silêncio. Para onde iria? Talvez para a mercearia. Não, aquilo não. Os vizinhos acordariam e suspeitariam de arrombamento. Além do mais, já passava os dias enfurnado entre sacos de arroz e fardos de algodão. Tomou o rumo da rua paralela àquela pela qual ia e vinha duas vezes por dia. Na calçada outro cachorro deitado junto à parede. Passou para o meio da rua. Avistou, ao longe, as torres da matriz. O relógio indicava 12 horas e 45 minutos. Se encontrasse a porta entreaberta, ajoelharia diante do altar e rezaria. Talvez não. Há anos não assistia à missa. Até já o chamavam de ateu. E por que não subir a serra? Apressou o passo. Sim, rumar pela estradinha escura e depois se meter no mato, procurar algum riacho, alguma cachoeira. A Lua apareceu atrás do Pico Alto. Pôde ver com clareza o chão coberto de folhas secas e gravetos. Ia necessitar de muito fôlego para subir a ladeira. Daquele jeito, fumando muito, bebendo genebra todo dia, não chegaria longe. Mas precisava daquilo, os negócios iam mal, os filhos mais velhos só lhe davam desgostos, Maria não lhe apetecia mais. Há quanto tempo não se encostavam um no outro? Ela num quarto, ele noutro. Conversavam apenas o necessário, quando muito. Discutiam por qualquer ninharia. Não se miravam nunca. Dormir como qualquer outro – impossível. Estacou diante de uma vereda. Examinou a ribanceira. Chiado de água a escorrer. Apalpou o chão com os pés e se pôs a descer. Rastejariam serpentes por ali? Armou-se de um pedaço de pau. Serviria de cajado. Maria teria despertado? E os filhos pequenos? Quando acordassem e o não vissem... Não, nunca o viam ao amanhecer. Ainda dormiam quando saía para trabalhar. Mesmo assim, prometia voltar antes de o sol raiar.

Sentou-se ao pé de uma rocha. Açoitou o chão com o galho seco. Nada de bichos por perto. Olhou para o alto. A Lua vagava entre nuvens. Acendeu um cigarro. Bater de asas ao seu derredor. Pios de protesto. Jogou fora a ponta acesa e a esmagou com o pé. Deitou-se e se pôs a admirar a Lua, como há muito não fazia. São Jorge num cavalo enfrentava um dragão. Nuvem enorme encobriu soldado e animais. Luís fechou os olhos. Aquela peleja não acabava nunca. Ou não passava de pintura, paisagem celeste? Rodavam no espaço desde o início. E rodariam até o fim.Quando abriu os olhos, uma nesga de sol se filtrava entre as telhas do quarto. Estremeceu na rede e viu Maria a fugir feito fantasma, de volta ao outro quarto. Já voltei da serra?
(Agosto/ 2003)

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre, RS: Ed. Bestiário, 2006.

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