sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ademir Braz (1947)



Ademir Braz é de Marabá (Pará). Iniciou-se em Jornalismo na “Província do Pará”, de Belém, em 1972. É advogado desde 2000, formado na primeira turma do campus da UFPA em sua cidade.

Poeta, publicou uma trilogia poética: “Esta terra” (1981, pela Editora Neo-Gráfica, de Belém, edição pessoal rapidamente esgotada); “Antologia Tocantina” (1998), patrocinada pela Fundação Casa da Cultura de Marabá, e produto de pesquisa de 8 anos sobre a poesia produzida em Marabá desde 1917; “Rebanho de pedras” (2003), dentro do Projeto Usimar Cultural. Em 2003, participou da VII Feira Pan-Amazônica do Livro em Belém, como palestrante e expositor, fazendo o lançamento de seu “Rebanho de pedras”.

Suas poesias constam da IX e X Antologias Poéticas Hélio Pinto Ferreira, Concurso Nacional da Fundação Cassiano Ricardo (São José dos Campos, SP, 1995 e 1996) Edição Comemorativa dos 100 anos do Poeta Brasileiro Cassiano Ricardo. Participou, em 1992, do Projeto “O Escritor na Cidade”, com palestras em Belém, Santarém, Bragança, Barcarena e Ananindeua, por iniciativa da Secult-Pará e Instituto Nacional do Livro. Medalha de Ouro no III Concurso Nacional de Poesias, da Editora Brasília (DF). Integra a “I Antologia de Poetas Paraenses”, (Ed. Shogun, Rio de Janeiro).

Tem contos publicados no III e V Concursos de Contos da Região Norte, Novos Contistas da Amazônia, (Editora Universitária UFPA, Belém, 1995 e 1997). Em 1997, classificou-se entre os 20 finalistas do Concurso de Contos Guimarães Rosa, promovido pela Radio France Internationale, do qual participaram 1.584 contos de escritores da França, Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Espanha, São Tomé e Príncipe, Uruguai, Japão, Canadá, Alemanha, USA, Colômbia, Bélgica, Noruega, Bolívia, Panamá, Itália, Equador, Argentina, Suíça e Brasil.

Organizou a Antologia do “II Festival de Poesia, Conto e Fotografia”, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, Desportos e Turismo (Secdetur), lançada em março/2000. Seus versos ilustram o mês de janeiro da agenda “Brasil – Retratos Poéticos 2001”, publicada por Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda., em São Paulo (SP), com circulação nacional e internacional. E estão na antologia “Poesia do Grão-Pará”, seleção e notas de Olga Savary (Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 2001). Recebeu também o “Prêmio Buiúna 1999”, conferido pela Secdetur, Associação dos Artistas Plásticos de Marabá e Secretaria Municipal de Educação, como Destaque da Cultura Marabaense.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

Ezra Pound (1885 – 1972)



Ezra Weston Loomis Pound (Hailey, Idaho, 30 de outubro de 1885 — Veneza, 1 de novembro de 1972) foi um poeta, músico e crítico que, junto com T. S. Eliot, foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia do início do século XX. Ele foi o motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo e do Vorticismo.

Cresceu em Wyncote, perto de Filadélfia e formou-se na universidade da Pennsylvania em 1906. Durante um breve período deu aulas em Crawfordsville, Indiana, e entre 1906-1907 viajou por Espanha, Itália e França. O seu primeiro livro de poemas, A Lume Spento, foi publicado em Veneza em 1908. Nesse ano fixou-se em Londres, onde viveu até 1920 e onde travou conhecimento com alguns dos mais importantes escritores da época: Ford Madox Ford, James Joyce, Wyndham Lewis, W. B. Yeats e T. S. Eliot, entre outros.

Em 1909 publicou Personae e Exultations, a que se seguiu um volume de ensaios críticos intitulado The Spirit of Romance de 1910. Entre 1914-1915 foi co-editor da revista do movimento Vorticista, Blast. Em Londres teve ainda a seu cargo a edição da revista de Chicago Little Review (1917-1919) e a partir de 1920 tornou-se correspondente da publicação The Dial na capital francesa, para onde se mudou em 1921.

Datam de 1920 as publicações de um segundo volume de textos críticos, Instigations, e de Hugh Selwyn Mauberley, uma das suas obras-primas. O poema Homage to Sextus Propertius foi publicado no ano anterior. Conhecedor das literaturas europeia e oriental, Pound associou-se desde muito cedo à escola dos imagistas, que liderou de forma particularmente enérgica. Os adeptos desta corrente poética, fundada em 1912 sob inspiração das ideias de T. E. Hulme, pretendiam explorar de forma disciplinada as potencialidades da imagem e da metáfora, consideradas a essência da poesia. O movimento, que Pound abandonou em 1914, teve a sua expressão na revista inglesa The Egoist (iniciada em 1912) e na revista americana Poetry (a partir de 1914). As raízes do movimento encontravam-se fundamentalmente na poesia chinesa e japonesa, mas os imagistas inspiraram-se também na poesia latina, em poemas da tradição medieval inglesa, nas composições poéticas dos trovadores provençais e em alguns poetas italianos. Nos seus Cantos, publicados numa longa série entre 1917-1949 e inacabados, Pound procurou elaborar uma versão moderna da Divina Comédia.

A fase de maior proximidade do escritor em relação ao movimento imagista é ilustrada pelas obras Ripostes (1912) e Lustra (1916). Em 1924 Pound mudou-se para Itália, onde as teorias económicas que defendeu o associaram ao fascismo, tendo chegado a proferir comunicações anti-democráticas na rádio italiana durante a Segunda Guerra Mundial. Nos seus tratados económicos e históricos, Jefferson and/or Mussolini de 1935 e Guide to Kulchur de 1938, Pound comprometeu-se definitivamente com o fascismo e foi preso em 1945, tendo sido posteriormente repatriado.

Considerado mentalmente incapaz, foi internado durante 13 anos num hospital psiquiátrico em Washington DC. A acusação de traição foi retirada em 1958 e Pound voltou a Itália depois da sua libertação. Trabalhou nos seus Cantos até 1972, ano da sua morte. A obra, carregada de citações e alusões históricas, permanece uma das mais controversas da poesia deste século. A influência de Ezra Pound e do seu projecto de renovação da linguagem poética fez-se sentir em Joyce, Yeats, William Carlos Williams e particularmente em T. S. Eliot, que submeteu o manuscrito da sua obra The Waste Land à apreciação de Pound antes de o publicar em 1922. As correcções feitas por Pound mereceram-lhe a dedicatória de Eliot: "For Ezra Pound, il miglior fabbro" (A Ezra Pound, o melhor artífice).

Síntese biobibliográfica
1885 Nasce em Hailey, Idaho (30 de outubro).
1901/5 Estudos na Universidade de Pennsylvania e no Hamilton College.
1906 Professor de letras românicas na Universidade de Pennsylvania. Viagem à Europa (Bolsa Harrison).
1907 Leciona francês e espanhol no Wabash College, Crawfordsville, Indiana.
1908 Itália. A Lume Spento, Veneza. Vai para Londres, onde reside até 1920.
1909 Personae e Exultations. Primeiro estudo sobre Arnaut Daniel ("II Miglior Fabbró').
1910 Provença. The Spirit of Romance.
1911 Canzoni.
1912 The Sonnets and Ballate of Guido Cavalcanti. Rispostes.
1913 Personae and Exultatíons. Canzoni and Ripostes. Revista Poetry (abril): A Few Don'ts, postulados do Imagismo. Colabora com Walter Morse Rummel na publicação de Neuf Chansons de Troubadours des Xlle et Xllle Siècles. que inclui a transcrição de duas canções de Arnaut Daniel localizadas por EP na Biblioteca Ambrosiana em Milão e por ele referidas no Canto 20.
1914 Casa-se com Dorothy Shakespear. Edita a antologia Des Imagistes.
Publica Vorticism na Fortnight Review. Participa de Blast, de Wyndham Lewis. (1914-15)
1915 Cathay. Edita a Catholic Anthology.
1916 Lustra. Gaudier Brzeska. "Noh" or Accomplishment e Certain Noble Plays of Japan, dos manuscritos de Ernest Fenollosa. Começa a escrever os Cantos.
1917 A primeira versão dos Cantos 1 a 111 é publicada em Nova York.
1918 Pavannes and Divisions.
1919 Quia Pauper Amavi e Homage to Sextus Propertius. Primeira versão do Canto IV. Começa a compor a ópera Le Testament, sobre textos de Villon.
1920 França (Paris), até 1924. Hugh Selwyn Mauberley. Umbra. Instigations, incluindo as traduções de 10 canções de Arnaut Daniel.
1921 Os Cantos V a VII são publicados em Dial.
1922 The Eight Canto (mais tarde, Canto II).
1923 Indiscretions ou Llne Revue des deux mondes. Os Malatesta Cantos (mais tarde, Cantos VIII, IX, X e XI).
1924 Itália. Antheil and the Treatise on Harmony. O canto XIII e o trecho de "Baldy Bacorí' do Canto XII aparecem na Transatlantic Review, de Ford Madox Ford.
1925 Instala-se em Rapallo. A Draft of XVI Cantos of Ezra Pound for the Beginning of a Poem of some Length (Paris).
1926 Personae: The Collected Poems of Ezra Pound. Apresentação,. em Paris, de "Parolles de Villorí', árias e fragmentos da ópera Le Testament.
1928 A Draft of the Cantos 17-27 of Ezra Pound. Selected Poems, com introdução de T.S Eliot.
1930 A Draft of XXX Cantos. Imaginary Letters.
1931 Guidg Cavalcanti: Rime. How to Read.
1932 Profile: An Anthology.
1933 Active Anthology. ABC of Economics.
1934 Eleven New Cantos: XXX XLI. ABC of Reading. Make it New.
1935 Alfred Venison's Poems. Jefferson andlor Mussolini. Social Credit: An Impact.
1936 The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, por Ernest Fenollosa, introdução e notas de E.P. Ta Hio, the Great Learning (tradução).
1937 The Fifth Decade of Cantos. Polite Fssays.
1938 Guide to Kulchur.
1939 Visita aos EE.UU. Doutor honoris causa pelo Hamilton College.
1940 Itália. Cantos LII-LXXI. Começa a fazer transmissões pela Rádio Roma.
1943 O Tribunal do Distrito de Colúmbia formula acusão de traição contra E.P.
1945 Entrega-se em Gênova à tropas norte-americanas (maio). Internação no Campo de Pisa (Disciplinary Training Center). 3 semanas numa gaiola de aço ("gorilla cage"). Após 6 meses de pressão, é transportado de avião aos EE.UU. para ser julgado (novembro). '
1946 Declarado louco e internado no Hospital de Sta. Elisabeth, em Washington, até 1958
1947 The Unwobbling Pivot and the Great Digest of Confucius.
1948 The Cantos of Ezra Pound (incluindo os Pisan Cantos).
1949 O Prêmio Bollingen é outorgado aos Cantos Pisanos.
1950 The Letters of E.P. (1907-1941). Patria Mia. Money Pamphlets.
1953 The Translations of E.P.
1954 Literary Fssays of E.P.
1955 The Classic Anthology defined by Confucius (305 odes).
1956 Section Rock-Drill: 85-95 de los Cantares. Women of Trachis, de Sófocles.
1958 Libertação de Pound. Regresso à Itália.
1959 Thrones: 96-109 de los Cantares.
1960 Impact: Essay on the ignorance and the decline of American Civilization.
1962 A revista The Paris Review publica fragmentos dos Cantos 115 e 116.
1963 Concede entrevista à revista italiana Epoca (24 de março): "Io so di non sapere nulla.".
1965 Assiste aos funerais de Eliot em Londres (4 de fevereiro). Visita Paris, para ser homenageado pelos seus 80 anos com a edição do 1° dos dois grandes volumes consagrados a sua obra pela editora L'Herne e com o lançamento da tradução francesa dos Cantos Pisanos.
1967 Visita o túmulo de Joyce, em Zürich.
1969 Viaja para Nova York, onde lhe exibem o recém-descoberto manuscrito de The Waste Land, corrigido por ele. Late Cantos and Fragments.
1970 Primeira publicação dos Cantos 1 a 117 no volume The Cantos of Ezra Pound (New Directions, Faber & Faber).
1972 Ezra Pound morre em Veneza (1° de novembro). Sepultado no cemitério da ilha de San Michele. Á nova edição de The Cantos (New Directions) inclui um fragmento do Canto 120.

Fonte:
Ezra Pound - Poesia. Editora Universidade de Brasília - 1983.
http://pt.wikipedia.org

Ezra Pound (Poemas Avulsos)

ENVOI (1919)

Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.
(tradução de Augusto de Campos)

E ASSIM EM NÍNIVE

"Sim! Sou um poeta e sobre minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

"Veja! não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou poeta e sobre minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

"Não é, Ruaana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho."

(tradução de Augusto de Campos)

SAUDAÇÃO

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.
(tradução de Mário Faustino)

SAUDAÇÃO SEGUNDA

Fostes louvados, meus livros,
porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
Não renegueis vossa progênie.

Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

"Então é isto", dizem eles, "o contra-senso
que esperamos dos poetas?"
"Onde está o Pitoresco?"
"Onde a vertigem da emoção?"
"Não ! O primeiro livro dele era melhor."
"Pobre Coitado ! perdeu as ilusões."

Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro !
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes !)
Ide e dançai despudoradamente !
Ide com travessuras impertinentes !

Cumprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guisos, vossos confetti.
Ide ! rejuvenescei as coisas !
Rejuvenescei até The Spectator.
Ide com vaias e assobios !

Dançai a dança do phallus
contai anedotas de Cibele !
Falai da conduta indecorosa dos Deuses !

Levantai as saias das pudicas,
falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais
e que viverei eternamente.

(tradução de Mário Faustino)

TENZONE

Será que as aceitarão ?
(i.é., estas canções).
como tímida fêmea perseguida por centauros
(ou por centuriões),
Elas já vão fugindo, urrando de terror.

Ficarão comovidos pelas verossimilitudes ?
Sua estupidez é virgem, é inviolável.
Eu vos imploro, meus críticos amistosos,
Não saiais por aí procurando-me um público.

Deito-me com quem é livre em cima dos penhascos;
os recessos ocultos
Já têm ouvido o eco de meus calcanhares
na frescura da luz
e na escuridão.

(tradução de Mário Faustino)

CINO

Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,
Mas é tudo a mesma coisa;
E cantarei ao sol.

Lábios, palavras, e lhes armamos armadilhas,
Sonhos, palavras, e são como jóias,
Estranhos bruxedos de velha divindade,
Corvos, noites, carícia:
E eis que não o são;
Já se tornaram almas de canção.

Olhos, sonhos, lábios, e a noite vai-se.
Em plena estrada, uma vez mais,
Elas não são.
Esquecidas, em suas torres, de nossa toada,
Uma vez por causa do vento, da revoada
Sonham rumo de nós e
Suspirando dizem, "Ah, se Cino,
Apaixonado Cino, o de olhos enrugados,
Alegre Cino, de riso rápido.
Cino ousado, Cino zombeteiro,
Frágil Cino, o mais forte de seu clã bandoleiro
Que bate as velhas vias sob o sol,
Se Cino do alaúde aqui voltasse!"

Uma vez, duas vezes, um ano -
E vagamente assim se exprimem:
"Cino ?" "Oh, eh, Cino Polnesi
O cantor, não é dele que se trata ?"
"Ah, sim, passou uma vez por aqui,
Sujeito atrevido, mas...
(São todos a mesma coisa, esses vagabundos)
Peste! As canções eram dele ?
Ou cantava as dos outros ?
Mas e o senhor, Meu Senhor, como vai sua cidade ?"

Mas e senhor, "Meu Senhor", bá! por piedade!
E todos os que eu conhecia estavam fora, Meu Senhor, e tu
Eras Cino-Sem-Terra, tal como eu sou,
O Sinistro.

Já celebrei mulheres em três cidades.
Mas é tudo a mesma coisa.
E cantarei do sol.
...eh?... a maioria delas tinha olhos cinzentos,
Mas é tudo a mesma coisa, e cantarei do sol.

"Pollo Phoibeu, panela velha, tu,
Glória da égide do Zeus do dia,
Escudo d'azul aço, o céu lá em cima
Tem por chefe tua rútila alegria!

Pollo Phoibeu, ao longo do caminho,
Faze do teu riso nossa chanson;
Que teu fulgor ofusque nossa dor,
E que o choro da chuva tombe sem som!

Buscando sempre o rastro recente
Rumo aos jardins do sol...
..............................................
Já celebrei mulheres em três cidades
Mas é tudo a mesma coisa.

E cantarei das aves alvas
Nas águas azuis do céu,
As nuvens, o borrifo de seu mar.
(tradução de Mário Faustino)

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/opoema/ezrapound/ezrapound.htm

Ademir Braz (Poesias Avulsas)

Quando saem os tigres

Mal freqüento esta casa
em que os frutos apodrecem sobre a mesa.
No entanto, trouxe flores – duas,
que fizeram bem aos olhos na rua
e deram essa ilusão de ter quem recebê-las.
(Quando puder consumir-me, talvez a casa
não será imensa nem a solitude tanta
nem no espelho brotarão gerúndios).

Trouxe também n’alma a vaga sede
dos pântanos e no coração um sobressalto.

Enquanto ponho n’água as flores soturnas
penso que os astros aconselham um largo
passeio (sozinho) pelos lugares que você
gosta e penso nos lugares que gostaria
e não os acho em meio a esta enorme sedução.
Quem estará hoje nas ruas?
Os loucos e os distraídos... E eu, sairei?

Sim, sairei... Talvez eu siga existindo por uma rua
que me faça lembrar dos acenos
que chamam a aurora sem degredos
a tessitura da pedra sob o orvalho
a enegrecida substância do poema.
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Elegia de verão

Enquanto Pedro agoniza
e sangra a vida nas pedras
do chão estreito da praça
na praça tonta de luz
acácias douram o dia
aves alegres revoam
na praça tonta de luz.

Pedra entre pedras a poça
dos olhos vítreos de Pedro
reflete lotes de nuvens
no latifúndio do céu.

Enquanto Pedro agoniza
e um sol perfeito resseca
o sangue espesso nas pedras
Pedro ignora que a terra
a terra amante e mãe
com leves dedos afaga
o corpo que a desejou.

Inacabado horizonte
exangue pássaro Pedro:
seu corpo é sua sina
de pedra a mão campesina

Seu corpo é sua sina
de pedra a mão campesina.
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Em carne viva

Juntam gravetos e lume,
arde a fogueira na rua.
No sete-estrelo dos céus
Canções de roda e lembranças
Giram os vitrais da infância
na viuvez das estrelas.

Sobe da ilharga do fogo
um alarido tribal.
Ora pro nobis nas velas
Outro obscuro Natal.

Fazíamos assim, no tempo
que esta noite resgata:
Adultos sobre a calçada,
boca-de-forno, crianças,
Voz do Brasil no Transglobe
de válvula e bateria.

Com a seda garça da lua,
e fios de fada e encantos,
à luz de vela tecia
dona Itália o manto
da virgem que desencanta
(fiando fibras de urtiga
na carne viva da mão)
o príncipe que a bruxa má
tornara ave infeliz.

A cada noite a vida
ganhava em luz e magia
quando Itália na porta
cercada pelos meninos
contava histórias perdidas
entre degraus da calçada:
“Era uma vez...”, e girava
a estrela azul entre as algas
e o fogo-fátuo dos astros
nos infinitos luzia.
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Celebração

Abre a geladeira quase com ternura:
entre sua mão
os soníferos
o uísque
as ternas pedras de gelo
há uma espécie de traição.
.
Lá fora o sol corrosivo
entontece as árvores.

Uma mulher sorri.
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Quermesse

Quase contraforte ergue-se o muro.

Luzem nele opalas metálicas
rubis topázios em navalha
metódicas esmeraldas
incrustradas
na gengiva de tijolos nus.

Ruas de luz trafegam sobre o muro.

Detrás do muro:
grades portas janelas (crianças
invisíveis às vezes riem).

Na rua, além do litoral,
sacis e vento inventam cabra-cega
entre saias floridas e quintais.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

Ademir Braz (Vestígios de Duília)

Foi só enquanto saltava amarelinha sobre o calçamento irregular que ia da casa dela até à esquina, sob a rama de oitizeiros, que me apercebi: nunca mais nos veríamos. Recordo que, tonto, sentei-me no meio-fio e permaneci horas olhando a madrugada rabiscar adeuses naquela porta. Eu ainda a vi num sonho: o ônibus alcançava o extremo da rua e a amada, num gesto insano, lançava um beijo por trás dos vidros; então o sol dourava a rua cheia de pó, andava um alarido de carros no ar, sobre a banca de revista flamejava a cidade irreal. Ela foi embora, dei-me conta ao acordar. “Ela foi embora”, eu disse e mãe pôs de lado a cabeça num gesto seu e acenou assim a cabeça me fitando em silêncio, nesse mistério que as palavras não alcançam. Nenhum símbolo tem a exatidão do silêncio, eu sei, e dito assim soa trágico – eu sou trágico mas não quero ser trágico -, embora esta bebida solitária tenha hoje gosto de pólvora e eu sequer consiga passar minha saudade a limpo. Na noite seguinte vesti a roupa mais sóbria, colhi duas pequeninas flores vermelhas, deixei os cabelos por enxugar, pentear – eles que se arrumassem, se quisessem. Aquele ônibus talvez vadeasse ainda o caldo espesso da noite, longe, atônito. Sentia-me frágil, limpo e docemente triste. Levei as flores ao bar na intenção de dá-las. Em casa, quase amanhecia quando consegui colocá-las num copo d’água antes de despencar bêbado entre a cama e a mesinha de leitura.


A carta veio certa manhã pelo amigo comum e dizia dos filhos do casamento em ruínas no planalto distante. Durante dias levei-a no bolso aonde fosse, parava na rua para acariciá-la, atrás de qualquer coisa das mãos de Duília. Também escrevia, sempre, como se atirasse garrafas ao mar, certo que chegariam a lugar nenhum mas certo de livrar-me da alma que aos poucos destruía e deixava destruir. Os escritos nunca enviados guardei-os numa caixa todos esses anos, até incinerá-los ao certificar-me que o tempo me cobrira de escamas enquanto cercava em muralhas um sentimento desde sempre inútil. Acho que a mãe pressentiu quando libertei no quintal meus pássaros de criação, porque eu nada disse antes de desterrar-me.

Minha solidão tornou-se uniforme, indivisível. É certo que andei por aí, mochila às costas, muitas amantes, raros amores, vi o sol ácido do mar entre pescadores de taínha. Mas por que falar nisso, no mistério das pedras ou na semente que a mão gredosa atirou em solo infértil? Debaixo da pele o rosto da esfinge permanecia violáceo, mais seu olhar, sabor, a flor exótica do rosto. Certa feita, quantos anos depois?, entre búfalos e andorinhas sonhei com uma praia. À tona d’água o sol ensandecia, o vento uivava entre mechas de cabelo, e lá estava ela – gaivota breve e tão translúcida no ar que parecia gota de luz no azul sem fim. Diziam, quando nasci, que chorei na barriga da mãe e cresci entre visões dolorosas que as tias exorcizavam com cânticos, rezas, defumações. Pensava haver-me libertado de tudo isso, do lar não construído, da insurreição não feita. Agora, o que eu tinha? Terra sob as unhas, sonhos derruídos, histórias de pesadelos, mares e pescarias, amores contingentes exatos em si mesmos. Pássaro reencarnado, doeu-me até onde sentia, em todas as dobras do meu tempo, na carne, no sonho voando em círculos.

Atrás dos óculos olho a cidadela de cal e sol na cruz dos rios. Para lá da janela do quarto de hotel a luz devora montes de lixo no leito arruinado das ruas. Choveu parte da noite, vai o dia lavado chegando às onze e estou aqui, barbeado, em bermudas, essa bebida intragável nas mãos, um bem-te-vi trinando na mangueira do outro lado da rua. Deve ter sido este, mal desnuda a pele do primata, o sentimento de poderosa gratuidade que teve o homem ao sentir-se imerso nas coisas do mundo. Neste momento não há deuses além do sol. Só uma voz pontiaguda, rara, gimme somebody, entre guitarras plangentes. Tudo e tão perfeito! Mesmo esta secreta decisão de só estar aqui vendo enquanto posso o vento nas folhas da palmeira nos fundos do hotel; a trepadeira agarrou-se na janela e, por trás dela, os cachos de carambolas, entre laivos verdes, têm a síntese da vida. “Não estou pensando em nada/ E essa coisa central, que é coisa nenhuma/ É-me agradável como o ar da noite,/ Fresco em contraste com o Verão quente do dia”.

Enquanto caminho, o cheiro da chuva impregna o ar. Na outra margem da rua uma mulher estende roupas no varal e tudo é espantosamente singelo e real, como a menina que imita agora mesmo o cantar de galos e sua voz sobrepõe-se a um rádio, restos de palavras, o ruído da carroça puxada a burro que sacoleja sobre o chão molhado; ouço pássaros – as cambaxirras de outrora! – cantarem próximo e vejo uma revoada de pardais entre oitizeiros. Um tanto mais distraído, sou hoje contemplativo do mundo e das pessoas, observo enquanto os pés roçam o sagrado das pedras e revejo agastado os lugares lembrados em noites de angústia e perda. Não há mais qualquer vestígio do corpo de Duília, do seu cheiro de pau-dangola. Eu sou o estranho na paisagem, o estrangeiro do ontem. Não fora o que sou, poeta, seria mar: todo cheio de velas e adeuses. O bar antigo não existe mais, soterrado entre prateleiras e pares de sapatos. Sei que a amada está aqui e penso que se pudesse ocultaria a alma em sobressalto exposta às memórias que vêm do pó, enquanto o aço da arma pesa toneladas no cós da calça. Eu não quero pensar, recordar, olhar sobre o ombro para o mar que uniu-se ao precipício e soterrou pássaros e tigres. Sou o estranho na paisagem, o passageiro do ontem refletido nos vidros da sapataria. O que deve ser feito, será feito, para isso eu vim. Antes, quero apenas rever os olhos da esfinge.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

Ademir Braz (Nas cores da vida, com Rajinheeshi)


Esta noite sairei, beberei um vinho tinto, ficarei à margem do rio sob as estrelas. Em junho as noites são frescas e doces, os bares põem cadeiras ao longo do cais e ao embalo das águas passa-se o tempo. Toca às vezes música dos anos sessenta e ouço a brisa em minha pele ressequida por antigos verões. Na outra margem, a praia é um corpo de mulher esparramado ao luar.

A praia!... Do alto da montanha que abriga a igreja de Nossa Senhora da Penha, meu coração incontrolável arremessou-se aos ventos e espatifou-se para sempre nas areias da capixaba Vila Velha. (De Alagoas, não falo. Sob o céu alagoano respira uma pequena sereia de olhos claros e ferro nos dentes que faz programas com marujos e bucaneiros enquanto sonha com um cavaleiro encantado que virá, entre fadas, arrebatá-la num corcel alado).

A luz do verão, para mim, animal notívago, recorda crises de sinusite. Doem-me a fronte e as têmporas, dói o respirar, é difícil conciliar com o sol a ternura da cerveja repousada entre espumas. Um dia, um amigo ensinou-me um remédio caseiro: eu deveria, disse ele, cortar em 4 partes uma buchinha, depois em outras 4 porções e, por fim, colocar uma dessas divisões mínimas de molho durante um dia em 20 mililitros de água destilada. Segui à risca o conselho. Depois bebi, envenenei-me, morri. Não era de beber: era pra botar uma gota duas vezes por dia no nariz.

Todas as praias são bonitas, suponho. Do Nordeste conheço poucas - uma ou duas de Fortaleza, uma de São Luiz - e algumas, no Pará, que sequer constam dos mapas turísticos. Ilha de Romana é uma dessas, até onde sei. Para alcançá-la, tive de adular quase uma semana os pescadores artesanais que partem da corrutela chamada "Abade", entre as espantosas ruínas de Curuçá, e que me largaram em pleno mar, distante da praia, a pretexto de que era raso e não havia porto nem como o barco chegar mais perto da terra firme.

Caminhei mais de um quilômetro no mar, com a água pela cintura, mochila às costas, a companheira travada de pavor. Então o paraíso desabou diante dos meus olhos: uma prancha de areias finas como sal, igualmente brancas, 16 pessoas vivendo entre "currais de peixe", muito sol e uma solidão luminosa sob a qual se passa e repassa o sentido da vida e de repente nada existe além da cumplicidade eleita entre o olhar e a presença áspera do mar.

Recordo que fiquei um mês longe de rádios, tevês, jornais, vendo a luz dar ao mar nuanças do verde-safira ao róseo-açafrão, cores que tive de nomear assim mesmo para melhor retê-las no fundo dos olhos e do coração. Lembro de um único livro que andava comigo, então, entre pães ressequidos, aguardente, charque, açúcar e saquinhos de café: uma coletânea dos ensinos de Rajnheeshi sobre o amor sem fronteiras e sem normas e da necessidade de perceber-se que viver é o ato que se renova permanentemente, a cada instante.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Yasunari Kawabata (1899 - 1972)


Yasunari Kawabata (Osaka, Honshu, 14 de Junho de 1899 – Zuschi, 16 de Abril de 1972), escritor japonês, foi o primeiro japonês a ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1968.

Infância

Enquanto criança, Kawabata desejava tornar-se pintor, mas optou por se tornar escritor após publicar alguns contos durante o tempo em que frequentava o liceu.

Ainda jovem foi marcado por acontecimentos trágicos e pela solidão, ficando órfão com três anos, passando então a ser criado pelos avós, no campo. Perdeu a avó com apenas sete anos, a única irmã com nove anos e o avô com catorze.

Juventude

Estudava Literatura na Universidade Imperial de Tóquio quando formou, juntamente com Yokimitsu Riichi, um jornal de letras – Bungei Jidai – que ajudava a promover um novo movimento literário (Shinkankakuha) que, segundo Kawabata e Yokomitsu, tinha como principais preocupações a apresentação de “novas sensações” na literatura, considerando a arte pura como missão primordial do escritor. Nessa revista publicou, em 1926, "Izu no Odoriko" ("A Dançarina de Izu"), uma história que explorava o erotismo do amor juvenil, com imagens líricas inspiradas em escrituras budistas e poetas medievais japoneses.

Idade adulta

O seu primeiro romance foi Yukiguni (“Terra de Neve” em Portugal e "O país das neves " no Brasil), começado em 1934 e publicado gradualmente de 1935 a 1937. Relata a história de amor entre um homem diletante da cidade de Tóquio e uma gueixa de uma povoação remota onde este encontra um refúgio do stress da sua vida citadina. Este romance colocou Kawabata imediatamente na posição de um dos escritores japoneses mais importantes e promissores, tornando-se o romance num clássico instantâneo que é, hoje, considerado uma das suas mais importantes obras-primas.

Iniciou em 1949 a série "Mil Garças", em que consta o célebre "Nuvens de Pássaros Brancos", e "O Som da Montanha".

Após o final da Segunda Guerra Mundial Kawabata continuou a publicar romances como Senbazuru, Yama no Oto, “A Casa das Belas Adormecidas”, Utsukushisa to Kanashimi to e Koto (“Kyoto” em Portugal). No entanto o romance que Kawabata considerava ser o seu melhor foi Meijin, publicado entre 1951 e 1954.

Kawabata foi ainda membro da Academia Imperial e presidente do Pen Club do Japão, atuando em várias reuniões internacionais de escritores.

Suicidou-se em meio a um surto depressivo, em Zushi, perto de Yokohama.

Estilo

O estilo de escrita de Yasunari Kawabata distingue-se por uma linguagem suave, mais abstracta que descritiva, onde predomina a subjectividade em relação à objectividade, aproximando-se muitas vezes da prosa poética.

Por seu tratamento de atmosferas e cores, ficou conhecido como alguém que "pintava as palavras" de branco irradiante, praticamente sem outras cores, como se vê em "O País das Neves" e em "Nuvens de Pássaros Brancos".

A solidão, a angústia da morte e a atração pela psicologia feminina foram seus temas constantes.

Títulos mais importantes
A Dançarina de Izu (Izu no Odoriko 1926)
Terra de Neve (Yukiguni, 1935-1937, 1947)
The Master of Go (Meijin, 1951-4)
Thousand Cranes ( Senbazuru, 1949-52)
O som da montanha ( Yama no Oto, 1949-54)
O lago (() Mizuumi, 1954)
A Casa das Belas Adormecidas ( Nemureru Bijo, 1961)
Kyoto (Koto, 1962)
Contos da palma da mão (Palm-of-the-Hand Stories)
Beauty and Sadness (Utsukushisa to Kanashimi to, 1964)

Lançamento de Livros no Brasil

Segundo o diretor editorial da Estação Liberdade, Angel Bojadsen, nos títulos Kyoto ou A Velha Capital e Mil Tsurus, o primeiro sobre o processo de ocidentalização do Japão e o último sobre antigas tradições japonesas, entre elas a cerimônia do chá. Kawabata, um conservador, como seu amigo Mishima, era um poço de contradições. Ao receber o Nobel, em 1968, condenou com veemência o suicídio, mas se matou (como Mishima) quatro anos depois, por não suportar a doença que o levou à depressão.

Melancólico, Kawabata identificava-se com Mishima em muitos aspectos. Nenhum dos dois teve uma infância feliz. Enquanto o primeiro, criado pela avó, reprimiu sua homossexualidade e formou um exército particular para defender o imperador e os valores tradicionais do Japão, Kawabata, órfão aos três anos, jamais conseguiu se recuperar do sentimento de perda provocado pelas sucessivas mortes em família. Fatos inspirados em sua vida aparecem camuflados em grande parte de seus livros, a exemplo dos relatos autobiográficos de García Márquez — e Memoria de Mis Putas Tristes não é exatamente uma exceção.

Se Márquez faz do bordel uma confessionário, Kawabata o transforma num templo, como em A Casa das Belas Adormecidas. No prefácio que Mishima escreveu para o livro (não incluído na edição brasileira), o escritor o define como uma perturbadora reflexão sobre "o terror da luxúria no prelúdio da morte". De fato, Kawabata escreve sobre a impossível relação amorosa entre um ancião e as jovens de um estranho bordel. Nele, as garotas não podem ser violadas, apenas contempladas. Dormir ao lado dessas criaturas dopadas (as meninas dormem sob efeito de narcóticos) é a única compensação para a senilidade de Eguchi, em busca do tempo e dos prazeres perdidos da juventude.

O livro começa com a dona da "hospedaria" recomendando a Eguchi que não enfie o dedo na boca da menina adormecida ou faça qualquer outro gesto obsceno. Kawabata constrói uma narrativa circular. Dá voltas e termina na fronteira entre o profundo sono da garota e uma morte. O que era uma possibilidade de amor (a vida, a juventude) se desfaz com a proximidade do fim. Kawabata costumava definir essa identificação entre paixão senil e morte como a tragédia inconsolável de um amnésico tentando conjurar fantasmas do passado.

Um parente literário de Kawabata no Ocidente bem poderia ser o austríaco Arthur Schnitzler, que, em Breve Romance de Sonho contrapõe igualmente o impulso erótico à morte, jogando seu protagonista numa situação limite, como Kawabata no epílogo de A Casa das Belas Adormecidas.

O País da Neves (tradução de Neide Hissae Nagae, 160 págs., R$ 29) acentua ainda mais essa proximidade com Schnitzler. Nele, a relação entre o rico Shimamura, a gueixa Komako e a jovem Yoko é mais lírica, mas não menos trágica. Kawabata começou a escrever o livro em 1937, mas só o concluiu dez anos depois. A fantasmagoria do protagonista do romance de Schnitzler (que deu origem ao filme De Olhos Bem Fechados, o último de Kubrirck) é um tanto semelhante ao delírio do esteta Shimamura de O País da Neves, que vê o objeto de seu desejo como uma projeção, um reflexo no espelho, como a gueixa Yoko. Daí para o cinema foi um pulo. O livro foi filmado por Shiro Toyoda em 1957.

Em Kawabata, os personagens masculinos são quase sempre eclipsados pela presença da mulher. Shimamura, o esteta, é bem menos real aos olhos do leitor que a aprendiz de gueixa, que vê esporadicamente em suas incursões pelo mundo bucólico das montanhas, fugindo de um casamento frustrado e de uma Tóquio já descaracterizada. Shimamura é incapaz de ter uma relação real com as mulheres. Nele, tudo é idealizado (como o protagonista da novela de Schnitzler).

Já as mulheres de Kawabata são tão concretas que até mesmo a gueixa Komako — ele admitia — foi inspirada num modelo real, mas o escritor, como de costume, deixa bastante espaço para a imaginação do leitor. Kawabata, nascido numa família próspera e culta de Osaka, começou a estudar literatura aos 21 anos e publicou sua primeira novela cinco anos depois. Quase sempre tratou da incapacidade do homem de amar, mesmo desejando as mulheres. Paradoxo incontornável.

Fontes:
GONÇALVES FILHO, Antônio. O Estado de São Paulo. 29 de novembro de 2004
http://www.estacaoliberdade.com.br/
http://pt.wikipedia.org/

Livros de Yasunari Kawabata

A DANÇARINA DE IZU

A dançarina de Izu, lançado originalmente em 1926, é uma novela baseada em anotações autobiográficas e tem como temas o amor impossível, a solidão e a sexualidade velada, recorrentes na extensa e brilhante obra de Yasunari Kawabata.

Neste livro, primeira obra de destaque do autor, um jovem de dezenove anos, da elite japonesa, viaja até a península de Izu, região que fica a oeste da capital Tóquio, e lá trava contato com artistas viajantes, com quem faz amizade, e se encanta com uma artista da trupe: a pequena dançarina Kaoru, de treze anos.

A viagem tem início nas termas de Shuzenji, seguindo depois para as de Yugashima. Cruzando as cidades de Oginori e Nashimoto, o estudante chega a uma hospedaria em Yugano. Em companhia dos saltimbancos, na melhor tradição nômade japonesa, segue ao longo do rio Kawazu. Passam a noite na hospedaria Koshuya e finalmente chegam até Shimoda.

Em cada ponto percorrido uma modulação diferente, percepções, por parte do jovem estudante, de coisas que tornam a vida maior e mais intensa. Kawabata queria ser pintor e talvez por isso seus cenários sejam meticulosamente descritos e possuam cores inesquecíveis. Como um pintor, cria o fundo e insere nele os personagens que darão intensidade ao conjunto.

As personagens femininas, sempre melhor compostas que os masculinos, representam papel importante na obra de Kawabata, talvez como antídoto para uma solidão perene que o acompanhou durante toda a vida — o autor teve a trajetória costurada por mortes seguidas e precoces, o que marcou profundamente sua infância. Em A dançarina de Izu a situação não é diferente, pois se trata de um amor platônico, consumado nas profundezas do coração lírico do protagonista.

Nesta novela, a viagem do estudante, a sexualidade guardada e sua solidão são marcas que se sobressaem. A figura do outro (como a do personagem Eikichi, com quem o jovem troca experiências) é de extrema importância. Em muitas passagens do livro, o protagonista se emociona com situações alheias, e estas são necessárias para a apreensão do mundo que o cerca.
A dançarina de Izu é um livro muito lido até hoje no Japão. Teve várias versões cinematográficas, sendo a primeira de 1933, sob a direção de Heinosuke Gosho. Ganha sua versão brasileira traduzida do japonês por Carlos Hiroshi Usirono. Este volume também traz um competente estudo feito pela professora Meiko Shimon, especialista na obra de Kawabata, que traça um panorama crítico da trajetória do autor, tocando em pontos centrais de sua vida e escrita, além de se debruçar sobre algumas de suas importantes obras, como Kyoto ou Contos da palma da mão.

Trechos

“Ele apontou em direção ao banho público, no outro lado do rio. Sete ou oito figuras surgiram vagamente em meio ao vapor. Pude ver então o vulto de uma mulher nua sair correndo da sala de banhos mal iluminada. Em frente ao vestiário, postou-se na ponta dos pés, parecendo que iria pular no rio. Com as mãos e braços bem esticados, parecia dizer algo. Não trajava sequer uma toalha. Era ela, a pequena dançarina. Observando suas pernas, que eram como tenros caules, e seu corpo alvo e bem torneado, senti meu coração mergulhar em êxtase. Por final, soltei um profundo suspiro e sorri maliciosamente.” (p. 25-26)

“Era uma criança. Uma criança que ao nos descobrir em sua alegria, exibia seu corpo aos raios do sol, equilibrando-se e esticando-se completamente. Tomado por um caloroso prazer, continuei a sorrir, e minha mente purificou-se inteiramente.” (p. 26)

“Suas lindas e intensas pupilas negras encerradas em seus grandes olhos eram de rara beleza. Suas sobrancelhas também eram belas. Lembrava uma flor sorrindo. Exatamente: uma flor sorrindo era a melhor definição.” (p. 37)

“Ao me aproximar do píer, meu coração deu um sobressalto ao ver a pequena dançarina agachada perto da borda. Enquanto me aproximava, ela olhava o mar fixamente. Em silêncio, permitiu minha aproximação. A maquiagem era a mesma da noite anterior, deixando-me mais emocionado. O carmim que contornava seus olhos revelava uma certa ira, um ar de valentia infantil.” (p. 54)
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O PAÍS DAS NEVES

Obra máxima de Kawabata, O País das Neves é considerada um marco da literatura intimista e neo-sensorialista que deu destaque mundial ao Prêmio Nobel de 1968

A primeira versão desta obra foi publicada originalmente em 1937, mas foi apenas dez anos depois, já influenciado pelos acontecimentos da Segunda Guerra, que o escritor japonês terminou a versão final deste romance sobre o amor espontâneo e sem nenhuma esperança de retribuição.

Neste livro, de grande repercussão no Japão e no exterior (inclusive com adaptações para o cinema), Kawabata expõe a densidade e as contradições das relações humanas por meio do encontro entre Shimamura, um culto senhor de posses, Komako, uma gueixa das montanhas, e Yoko, uma bela jovem provinciana, trazendo ao leitor um texto comovente e lírico ao extremo.

Em vez de provocantes paixões, o desperdício do amor e o sacrifício pessoal dos personagens conduzem-nos a uma atmosfera gélida, com pinceladas de forte afetividade, em que o branco da neve e o frio penetrante contribuem para dar o tom melancólico da narrativa. Não à toa: a estação termal de Yusawa, que o escritor visitou pela primeira vez em 1934, serviu de inspiração para a criação do cenário onde a história se passa.

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Em mais um hino dedicado à beleza e à alma femininas, Yasunari Kawabata literalmente nos transporta para uma região mágica do Japão, o País das Neves, onde ruídos, sentimentos, embates amorosos assumem contornos irreais abafados por densas camadas brancas, cenário ideal para os paralelos que tanto aprazem o Prêmio Nobel de 1968, ao cotejar a pele de suas onipresentes jovens com a tradicional cerâmica japonesa, igualmente perfeitas ao toque.

Shimamura, escritor ora refinado ora diletante, sobre o qual pouco sabemos — qualquer desprezo de Kawabata por seus personagens masculinos não será mero acaso —, deixa para trás casa e família e parte com o rigor de uma missão a cumprir rumo ao reencontro com seus anos jovens (“no final das contas, só esse dedo guardava a memória crua da mulher com a qual estava indo se encontrar”).

Entre casas termais, gueixas aprendizes e paisagens gélidas, revela-se uma insistente busca do eu em um correr do tempo estancado desde que o protagonista desceu do trem após longo trecho de narrativa antológica retomando, via reflexos em janelas, o constante tema do espelhamento na obra de Kawabata. E logo de início, ainda no longo túnel levando de Tóquio ao famoso País das Neves, travessia simbólica que conduz de um Japão do Pacífico ao mundo mais irrequieto do Mar da China, o autor nos leva a um magistral mergulho nos mistérios do relacionamento humano. No caso, um velado triângulo amoroso cujos contornos parecem jamais fechar, mas que inevitavelmente alcançarão um fogoso ponto de ruptura.

O País das Neves pode — e deve — ser visto como ponto crucial na obra de Kawabata, e não é por acaso que Shuichi Kato, o papa japonês da história da literatura, escreve que esta é “claramente a obra-prima de Kawabata” — não por outro motivo que pela construção e caracterização dos personagens. Ao contrário do que ocorre no mundo de Kawabata em geral, no qual os personagens femininos são inteiramente inventados, a gueixa Komako existiu na vida real — e mesmo para um autor deste calibre, alguma diferença parece ter havido.

Trechos

“Como o interior do trem não era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. Ele não refletia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer.

Foi nesse momento que os raios de sol, já tênues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta, forte o bastante para ofuscar a imagem refletida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para iluminá-lo. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno de sua pequena pupila foi se iluminando, como se os olhos da moça e a luz se sobrepusessem, seus olhos se tornaram um vaga-lume misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde.” (p. 15)

“... sob a sombra de um beiral, cinco ou seis gueixas conversavam em pé. Shimamura pensou que Komako — nome artístico que ficara conhecendo graças à empregada da hospedaria naquela manhã — poderia estar por ali; de fato, parecendo perceber que ele se aproximava, seu semblante sério a distinguia das outras. Sem que houvesse tempo para Shimamura pensar que ela ficaria ruborizada, desejando que um vento desinteressado a refrescasse, o rosto de Komako já estava vermelho até o pescoço. Já que era assim, ela deveria ter ficado de costas, mas desviando o olhar, visivelmente incomodada, movia aos poucos o rosto na direção em que ele andava.” (p. 48)

“No entanto, ao pensar que Yoko estava naquela hospedaria, Shimamura, sem saber por que, sentiu receio de chamar Komako. Embora o amor de Komako fosse destinado a ele, sentia um vazio como se isso fosse mais um belo esforço em vão. Ao mesmo tempo, também sentia a vida que Komako tentava viver roçar nele tal qual uma pele nua. Compadecendo-se dela, também se compadeceu de si mesmo. Julgou que Yoko era possuidora de um olhar semelhante a uma luz que pungia tal situação, e, por algum motivo, se sentiu atraído por ela também.” (p. 114)

O livro teve duas adaptações para o cinema, em 1957 e 1965, ambas chamadas Yukiguni.
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MIL TSURUS

Tradicional cerimônia do chá serve de cenário para autor expor a complexidade das relações humanas

Publicado originalmente em capítulos por revistas japonesas, este romance foi escrito entre os anos 1949 e 1951, período de reconstrução de um Japão devastado pela Segunda Guerra. Nesse contexto em que a sociedade japonesa se reestruturava e também se defrontava com valores culturais vindos do Ocidente, Kawabata resgata valores tradicionais de seu país, fazendo da cerimônia do chá o pano de fundo para a história de Mil tsurus.

Kikuji Mitani é um jovem que, durante uma cerimônia do chá, reencontra duas antigas amantes de seu falecido pai, Chikako Kurimoto e a viúva Ota, e de repente se vê profundamente envolvido com elas. Enquanto Chikako tenta arranjar um casamento para Kikuji, este inicia um inesperado romance com a senhora Ota, que por sua vez tem uma filha chamada Fumiko, de quem Kikuji também irá se aproximar. Mas há ainda Yukiko, a delicada jovem pretendente a se casar com Kikuji, personagem que representa serenidade num ambiente repleto de ressentimentos e intrigas. Não é por acaso que a moça é descrita usando um lenço de seda ilustrado com tsurus, ave que simboliza nobreza e felicidade na tradição japonesa.

Nessa história em que o passado, através da figura do pai do protagonista, desperta sentimentos em conflito, Kawabata demonstra, mais uma vez, seu profundo conhecimento da antiga cultura de seu país e enaltece a importância da arte oriental, representada nas cerâmicas seculares do ritual do chá. Ao mesmo tempo em que discorre sobre a permanência da arte no decorrer dos séculos, sobrevivendo a gerações, o autor nos mostra o lado efêmero da vida e das relações humanas.

No Brasil, a obra foi publicada pela primeira vez no início dos anos 70, sob o título Nuvens de pássaros brancos (Ed. Nova Fronteira), emprestando-se o título da edição francesa (Nuée d'oiseaux blancs). Preferimos nos reportar ao título original japonês, Senbazuru correspondendo a Mil tsurus.

Trechos

“Da janela do trem, avistava uma larga avenida com altas árvores que despontava logo após a estação Yurakucho e se estendia até a estação de Tóquio, cruzando de leste a oeste a linha do trem. Naquele momento, o asfalto refletia o pôr-do-sol tal qual um cinturão de metal radiante. Contudo, as árvores estavam à contraluz e apenas insinuavam-se suas silhuetas. As sombras pareciam frescas. Os galhos se expandiam para todos os lados, cobertos de folhas. Em ambas as calçadas, havia sólidas mansões de estilo ocidental. Estranhamente, poucas pessoas passavam por ali. Não havia viva alma até bem próximo do fosso do Palácio Imperial. Nem carros havia no asfalto que refletia a luminosidade. Observando de dentro daquele trem lotado, o lugar parecia estar suspenso no entardecer de algum mundo além da imaginação. Havia uma atmosfera estrangeira em tudo.” (p. 63)

“O verniz arranhado daquele vaso antigo deixava semi-aparente a assinatura da peça, ‘Soutan’, que também estava presente na caixa onde ele era guardado. Caso fosse autêntica, a cabaça teria cerca de trezentos anos. Kikuji não conhecia as flores usadas na cerimônia do chá, tampouco sua criada o sabia. Apesar disso, aquela bela-da-manhã parecia ideal a uma cerimônia das primeiras horas do dia. Ficou a observar o arranjo por algum tempo. Que fascinante era ver aquele ramo de vida tão efêmera dentro de uma cabaça tão antiga! Aquela singela flor combinaria melhor com o mizusashi de Shino que o ramalhete de estilo ocidental que comprara? Quanto tempo poderia durar num vaso uma bela-da-manhã? Kikuji sentiu certa inquietude ao pensar na sua fugacidade.” (p. 112)

“A peça era exatamente como Fumiko havia descrito ao telefone naquela manhã. Seu esmalte branco apresentava um leve toque avermelhado. Observando-o por algum tempo, parecia que aquela tonalidade rubra emergia de dentro do branco. Toda a borda era ligeiramente amarronzada, havendo apenas uma faixa mais escura. Seria ali onde a boca tocava? A bebida bem podia ter-lhe tingido a borda, ou então, seriam os lábios de alguém que a maculara. Aquela suave mancha marrom, à medida que era olhada, começava a parecer rosa. Seria mesmo a marca de batom da viúva impregnada na cerâmica, como Fumiko lhe contara? Kikuji também reparou numa coloração marrom-avermelhada nas trincas naturais da cerâmica. Era um tom parecido com o de um batom desbotado, uma rosa vermelha murcha... Mas quando o associou a uma mancha seca de sangue, sentiu-se enjoado. Tinha a sensação de um embrulho no estômago mesclado a uma certa sedução que o fascinava.” (p. 128-9)

“Ele só havia visto Yukiko duas vezes. A primeira, na cerimônia do chá no templo Engakuji, quando Chikako levara a jovem a fazer uma demonstração, com a função de exibi-la a ele. Durante o preparo do chá, seus gestos eram simples e elegantes. Kikuji ainda trazia fresca na memória a imagem dos ombros e das mangas do quimono de Yukiko, bem como de seus cabelos, iluminados sob a divisória de papel-arroz por onde se projetavam suavemente as sombras das árvores próximas. Só não conseguia recordar-se muito bem de suas feições. Já o fukusa vermelho e o lenço de tsurus brancos que a jovem levava quando se dirigia à sala de chá eram-lhe vivas lembranças.” (p. 144)
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A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS

Obra serviu de inspiração para o recém-lançado e aclamado Memória de mis putas tristes, de Gabriel García Márquez

Imbuída de um erotismo inusitado, esta obra, escrita em 1961, demonstra a maturidade estilística do autor, que se utiliza de sua virtuose descritiva para contar a história de Eguchi, um senhor de 67 anos que freqüenta a “casa das belas adormecidas”, uma espécie de bordel onde moças encontram-se em sono profundo, sob efeito de narcóticos. Apesar da idade avançada, o protagonista parte em busca dos prazeres perdidos e se depara com moças virgens, que os visitantes podem tocar, mas são proibidos de corromper. Daí derivam passagens antológicas de rememorações pessoais e fantasia.

Kawabata procura desvendar o enigmático universo do corpo feminino em um culto ao belo e ao inalcançável, investigando as dores da solidão a partir da sutileza de um erotismo expressivo, constantemente atravessado por passagens de fina ironia e perturbadora consciência da passagem do tempo, do vazio existencial que permeia as relações humanas.

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É objeto de consenso na crítica literária mundial que Yasunari Kawabata descreveu com meticulosa concisão as profundezas da alma feminina e revelou o corpo da mulher em seu mais sutil esplendor. Dono de uma capacidade de observação única, nenhum detalhe, nenhuma verdade escapam de seu olhar incomum. Em A casa das belas adormecidas, Kawabata dedicou-se obsessivamente a esta marca de sua literatura. Imbuído do matsugo no me, que talvez pudéssemos traduzir por “o olhar derradeiro”, Kawabata nos dá a impressão de pintar em cores vivas as últimas imagens de quem vai partir deste mundo.

A sexualidade na idade madura aflora nua e crua num cenário composto para o deleite de quem não mais pode procurá-lo por conta própria. Contrapartida mais fantasiosa e ao mesmo tempo mais radical, apresenta um inegável parentesco com Diário de um velho louco, de Jun’ichiro Tanizaki, outro grande mestre da literatura japonesa moderna. Se este último trata da sensualidade a priori contida que acomete um idoso no cotidiano, Kawabata nos leva aqui em singela exploração sensorial do corpo feminino oferecido em estado de torpor controlado. Os meandros da sexualidade — assim como a inexistência dela — em situações limite, da repressão do desejo e do autocontrole exacerbado compõem um jogo perverso que assume todo seu significado quando o protagonista tem de lidar com a noção de virgindade em seu sentido mais amplo. Temos aqui um indício de até que ponto Kawabata, sempre fiel a si mesmo, foi deliberadamente aos alicerces das estruturas mentais. Yukio Mishima, que louvava Kawabata, escreveu de forma reveladora em seu prefácio à edição norte-americana desta obra: “E será que a impossibilidade de obtenção não coloca definitivamente o erotismo e a morte no mesmo nível? E se nós romancistas não estamos do lado da ‘vida’ (se estamos confinados a uma abstração de certo tipo de neutralidade perpétua), então ‘a radiação da vida’ somente pode aparecer onde morte e erotismo caminham juntos.”

Trechos

“Uma mulher mergulhada no sono, que não fala nada, que não ouve nada: não seria, por outro lado, o mesmo que falar tudo, escutar tudo de um velho que já não tem virilidade para fazer companhia a uma mulher? Para Eguchi, entretanto, essa era sua primeira experiência com uma mulher desse tipo. A garota, por certo, já devia ter experiência de deitar-se com velhos como ele. Entregava-se totalmente e ignorava tudo, mergulhada no sono letárgico tal como uma morte aparente, deitada com um rosto quase infantil e respirando com tranqüilidade.” (p. 22)

“A decrepitude hedionda dos pobres velhotes que procuravam aquela casa ameaçava atingi-lo dentro de alguns anos. Quanto da imensurável amplitude do sexo, da insondável profundidade do sexo ele teria tocado na sua vida de 67 anos? Além disso, em volta dos velhotes nasciam incontáveis peles renovadas de mulheres, peles jovens, de garotas bonitas. Os desejos de sonhos impossíveis, o lamento pelos dias que lhes escaparam e que estavam perdidos para sempre não estariam impregnando os pecados daquela casa secreta? Eguchi já havia pensado que as garotas adormecidas o tempo todo seriam uma eterna liberdade para os velhotes. As garotas adormecidas e mudas certamente lhes falavam tudo que eles gostariam de ouvir.” (p. 43)

“Eguchi afrouxou o braço que apertava a garota com força, abraçou-a com carinho e ajeitou seus braços nus de modo que ela o enlaçasse. E ela o abraçou docilmente. O velho manteve-se nessa posição e permaneceu quieto. Fechou os olhos. Aquecido, sentia-se num deleite. Era quase um êxtase inconsciente. Parecia compreender o bem-estar e a felicidade sentidos pelos velhotes que freqüentavam a casa. Ali eles não sentiriam apenas o pesar da velhice, sua fealdade e miséria, mas estariam se sentindo repletos de dádiva da vida jovem. Para um homem no extremo limite da sua velhice, não haveria um momento em que pudesse se esquecer por completo de si mesmo, a não ser quando envolvido por inteiro pelo corpo da jovem mulher.” (p. 53-4)

“Quando se deitavam em contato com a nudez da jovem mulher, os sentimentos que ressurgiam do fundo do seus âmagos talvez não fossem apenas o medo da morte que se aproximava ou o lamento pela juventude perdida. Talvez houvesse neles também certo arrependimento pelos pecados cometidos, ou pela infelicidade no lar, coisa muito comum nas famílias dos vencedores. Decerto os velhotes não possuíam seu Buda, diante do qual pudessem ajoelhar-se e orar. Por mais que abraçassem fortemente a bela desnuda, derramassem lágrimas frias, se desmanchassem em choro convulsivo ou berrassem, a garota nada ficaria sabendo e jamais acordaria.” (p. 80)
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CONTOS DA PALMA DA MÃO

Produção que acompanhou praticamente toda a vida do autor — o mais antigo data de 1923 e o mais recente, de 1964 —, esses brevíssimos contos, gênero literário dileto de Kawabata, foram reunidos pela primeira vez em 1971. Eram, então, 111, de acordo com a seleção acompanhada pelo próprio escritor, que, na época, declarou: “A maioria dos escritores, quando jovens, escreve poemas, enquanto eu escrevia ‘contos da palma da mão’”. Dez anos mais tarde, numa edição já póstuma, e que se tornaria corrente, acrescentaram-se outros onze. É essa, da editora Shinchosha, a referência para a edição lançada agora no Brasil. Quantos são, de fato, os “contos da palma da mão”, é difícil saber ao certo: há pesquisadores que afirmam existirem 175; outros falam em 146.
Em cada uma das narrativas chama a atenção, em primeiro lugar, o poder de concisão. Ao tratar de uma rica variedade de temas — na qual, aqui e ali, identificam-se recorrências que voltaremos a encontrar também nos romances do autor —, Kawabata sabe escolher o essencial, a palavra precisa, e descartar tudo o que não é absolutamente necessário. As imagens são fortes, a escrita é sinestésica e não há lugar para sentimentalismo, divagações e explicações. Muitas vezes encerra-se a leitura de um conto — que contém, numa média de duas a quatro páginas, tamanho que “cabe na palma da mão”, todo um universo dramático — sem a noção exata de seu significado. Paira no ar uma impressão, algo que, a um só tempo, é capaz de impregnar a imaginação do leitor e ficar além do seu entendimento. E então, em algum momento posterior, essa sensação difusa pode vir a se transformar em revelação plena de sentido.

A morte, o amor, a infância, a cegueira, a sensualidade, os laços de família, os sonhos, as expectativas são alguns dos temas que perpassam os contos, e que muitas vezes nascem da observação do que há de mais cotidiano — e, nesse sentido, invisível — na existência. “[...] entre eles há algumas peças não muito razoavelmente fabricadas, mas há algumas boas, que jorraram de minha pluma naturalmente, de seu próprio aval. [...] Vive neles o espírito poético de meus dias jovens”, disse o autor certa vez.

Trechos

“E, por fim, quando chegar o dia em que seu coração nublado e ferido fizer com que veja um gafanhoto como um autêntico suzumushi, ou se vier a sentir que o mundo está repleto de gafanhotos, então, nesses momentos, sentirei pena de você por não possuir meios de recordar esta noite; a brincadeira das luzes verdes de sua bela lanterna que desenhavam seu nome no peito daquela menina.” (p. 43)

“Atraído pelo olhar da moça, o homem também me olhou. Esboçou um sorriso safado, por um instante, e logo voltou à expressão séria de antes. No mesmo instante, fiquei sem graça. Então, a moça também corou um pouco e, como se ajeitasse os cabelos, levantou a mão esquerda para seu momoware. Seu rosto ficou oculto atrás da manga do braço erguido. Tudo isso aconteceu num instante, que se seguiu depois que ela tentou arrebatar a vara da mão do homem pela segunda vez. Sentindo ligeira revolta por aquele quê de maldade lançado pelo vendedor de óculos, e com um pouco de remorso por ter espiado os segredos dos outros, retomei a minha caminhada.” (p. 189-90)

“Quando vira o garoto passar na frente da lojinha, ela saíra voando, sem ter tempo de ajeitar o cabelo. Como se acabasse de tirar a touca de banho de mar, seus cabelos estavam em desalinho, deixando-a ansiosa. No entanto, na frente dele, ela era uma menina inibida que não conseguia arriscar um gesto para ajeitar os fios rebeldes de seus cabelos. O garoto, por sua vez, temia que pudesse ofendê-la se lhe pedisse para ajeitá-los.” (p. 334)

“Ela, que vivera sempre perseguindo amores intensos, mesmo agora que estava enferma, não conseguia conciliar o sono sossegado sem sentir, no seu pescoço ou no peito, o braço de um homem. Entretanto, quando seu estado se agravou, ela implorava:
— Segure meus pés! Não posso suportá-los tão tristes.
[...]
No entanto, inesperadamente, as mãos dele tremeram. Sentiu a sensualidade da mulher vinda dos pequenos pés. Aqueles pequenos e frios pés nas palmas de suas mãos suscitaram nele o mesmo prazer de tocar nos pés quentes e úmidos dela. Envergonhou-se das próprias sensações que pareciam profanar os momentos sagrados da morte da namorada. Mas aquele pedido para ele segurar os pés dela não teria sido seu último recurso da arte do amor? Ao pensar nisso, ficou aterrorizado ante a exacerbada feminilidade daquela mulher.” (p. 348-9)
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KYOTO

Obra que deu reconhecimento internacional ao escritor japonês e foi uma das três citadas pela comissão quando este recebeu o Nobel em 1968

Rico em descrições da cidade que foi a capital do Japão por cerca de mil anos (794-1868), Kyoto, de 1962, foi uma das últimas obras finalizadas pelo autor antes de sua morte dez anos mais tarde. Ambientado no período pós-guerra, o livro narra a trajetória de Chieko, filha adotiva de Takichiro, um comerciante de quimonos, e de sua esposa, Shige.

Chieko é uma jovem que trabalha na loja da família e a vê em processo de falência, assim como vários outros pontos comerciais da antiga capital japonesa, em razão de mudanças nos valores culturais, agora fortemente influenciados pelo Ocidente. Durante um passeio pela aldeia de Kitayama, região montanhosa na periferia de Kyoto onde são cultivados cedros, Chieko acidentalmente conhece sua irmã gêmea, Naeko. Separadas ainda quando bebês, criadas em ambientes hierarquicamente distantes entre si, as irmãs agora tentam se aproximar, e se deparam com a inevitabilidade do destino, o afloramento da sexualidade e o surpreendente curso do acaso.

Kawabata desenvolveu uma extensa e profunda pesquisa para mergulhar na cultura, nos costumes e no dialeto da cidade mais tradicional do Japão, revelando na obra aspectos da região de Kyoto desconhecidos mesmo de japoneses, provenientes de localidades distantes, como o próprio autor, nascido em Osaka. As líricas descrições de Kawabata sobre a cidade, sua mescla de antigas e modernas construções, suas datas festivas e belezas naturais, inspiraram duas versões para o cinema, uma do diretor Noboru Nakamura, indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1964, e outra de Kon Ichikawa, de 1980.

Trechos

“A maioria das casas de Nakagyo tinha virado cinzas na conturbada época que precedera a Restauração Meiji, em 1867, em decorrência de incêndios, os quais ficaram conhecidos como ‘das Espingardas’ e ‘dos Canhões’. A loja de Takichiro tampouco escapara do mesmo destino. Por isso, mesmo que tenha sido preservado o estilo tradicional das lojas da antiga Kyoto, com as portas frontais gradeadas e pintadas de bengara e janelas do tipo mushiko, na realidade, nenhuma delas tinha mais de cem anos. Dizem, contudo, que o grande depósito nos fundos da loja de Takichiro havia escapado daqueles incêndios... Seu estabelecimento praticamente não fora modernizado, em parte devido ao caráter de seu proprietário, mas também por ser um atacado cuja administração não prosperara.” (p. 47-8)

“A beleza das árvores era sem dúvida proporcionada pela beleza da cidade, pelos cuidados com a limpeza em todos os recantos. No bairro de Gion, até mesmo as ruelas mais recolhidas, onde há muitas casas antigas, pequenas e mal iluminadas, são asseadas. O mesmo pode ser dito de Nishijin, bairro conhecido por seus quimonos. Nas imediações, onde se espremem minúsculas lojas que só de olhar causam pena, as ruas são relativamente limpas. Mesmo as pequenas grades de madeira nunca estão empoeiradas. Assim também é no Jardim Botânico, onde não se vêem papéis espalhados no chão. O exército de ocupação norte-americano havia construído ali casas para seus militares e, naturalmente, a entrada fora proibida aos japoneses. Mas, desde a retirada das tropas, o Jardim Botânico voltara a ser como antes.” (p. 63-4)

“Os cedros da aldeia de Kitayama eram todos administrados por pequenos empresários. Contudo, nem toda família era dona de terra. Pelo contrário, poucos o eram. Chieko cogitava se seus pais também teriam sido empregados de alguma família proprietária. A própria Naeko dissera: ‘Estou trabalhando para...’ Tudo havia acontecido vinte anos antes. Chieko teria sido abandonada porque, na época, ter filhos gêmeos era considerado uma vergonha, além do que se acreditava na dificuldade de criá-los com saúde. Era possível que tivessem se preocupado também com os escassos rendimentos da família. Chieko esquecera de perguntar três coisas a Naeko. Por que abandonaram a ela e não a irmã? Quando ocorrera o acidente do pai, sua queda do alto do cedro? Naeko dissera ser ‘recém-nascida’ na época, no entanto... Havia dito também ter nascido na casa do avô materno, um lugar bem mais remoto do que a aldeia dos cedros. Nesse caso, qual seria o nome do lugar?” (140-1)

Fonte:
http://www.estacaoliberdade.com.br/

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

José Rubem Fonseca (A Grande Arte)



Parte I

O narrador - protagonista Mandrake e seu sócio judeu Wexler mantêm um escritório de advocacia. Às vezes perdem suas causas, outras ganham (exemplo: o caso da cafetina Miriam). Recebem a visita da prostituta Gisela, ameaçada de morte por Roberto Mitry (tentara chantageá-lo com uma fita de vídeo). Não aceitam o caso por se tratar de chantagem. R. Mitry tenta contratá-los em seguida, para recuperar a fita; paga qualquer preço. No dia seguinte, Gisela aparece morta. Dois dias depois, sua amiga massagista Danusa - ambas estranguladas e com letra P desenhada a faca na bochecha.

Alfredo (marido de Danusa) conta a Mandrake sobre a relação das moças com Cila (ou Laura Lins, dona da butique Messina e de um bom apartamento), aventureira que chegara do NE para "subir na vida". Na casa de Laura Lins, alertado pela empregada do "sumiço da patroa", o detetive chama o delegado e amigo de faculdade, Raul. Arrombam a porta e acham Laura morta. Ao sair, Mandrake leva uma carta recém-chegada, através da qual descobre que ela tem um amante e uma amante: Rosa Leitão, casada com o vice-presidente do Banco Aquiles, mas não consegue localizá-la. Raul procura-a inutilmente na boate Lesbos, do anão preto José Zakkai, o "Nariz de Ferro", inescrupuloso, vaidoso e falador (cita constantemente pensamentos próprios, que atribui a escritores ou pessoas de renome).

Mandrake e Wexler conversam sobre o passado de Mandrake e a situação do escritório (ausências contínuas do primeiro), quando chega Bebel, filha de Rosa Leitão, propondo-se a levar Mandrake até a mãe, que se escondera num sítio em Itaipava. Apesar de Wexler ser contra a idéia de Bebel para o tal sítio acabam indo. Passam a noite juntos e encontram Rosa no dia seguinte. Ela conta a história de Cila e o estabelecimento da relação entre ambas. Mostra ressentimento contra a amante morta e diz que não imagina quem a matou. Talvez o amante "coronel". Rosa conversa com a filha Bebel. No jardim, Mandrake pensa em Ada, que quer casar-se com ele e ter filhos, e na gata Elizabeth, a "dona" do seu apartamento (o mundo precisa mais de gatos que de gente). Ele ama Ada, mas não consegue ser-lhe fiel.

No Rio, sai com Ada para jantar. Na volta, são surpreendidos no apartamento por dois homens à procura da fita de vídeo. Um deles esfaqueia Mandrake no abdômen e sevicia (violenta) Ada com o cabo da faca. Os dois vão parar no hospital. Mandrake quer vingança. Pede a Hermes (ex-sargento do exército, que livrara da prisão) especialista no manejo de armas brancas, que lhe ensine a arte do Percor ("perfurar" e "cortar"). Ficam quites. Lê e treina muito. Deixa a barba crescer. Ada volta para a casa dos pais, em Pouso Alto. Uma semana depois, o namorado vai atrás dela. Volta sozinho, chamado por Raul. Identifica Camilo Fuentes (boliviano bruto, forte, que odeia brasileiros e é matador profissional) como o homem que os feriu (usava um cordão de ouro com um unicórnio, presente de Berta). Sem provas concretas, Camilo é libertado e viaja para a Bolívia. É seguido pela polícia federal, que pretende flagrá-lo traficando cocaína.

Mandrake resolve segui-lo disfarçado. No trem Mandrake encontra Camilo no restaurante com duas prostitutas, Zélia e Mercedes. Aproxima-se da Mercedes, a mais velha, quando os outros dois se retiram para a cabine. Apresenta-se como comprador de gado. Mercedes finge que acredita. Começa a informá-lo sobre o boliviano e acabam ficando juntos. Camilo Fuentes odeia os brasileiros, pois seu tio Miguel lhe contara que um deles havia assassinado seu pai. Desconfia de Mandrake e de Mercedes (bebe, mas nunca se embriaga). Odeia Rafael (o outro matador de aluguel, que o chama de China), mas vai encontrá-lo para tratarem de "negócios" em Quijarro e depois em Puerto Suárez. Encontram-se todos no "Dancing Days". Sentindo-se seguidos, adiam os negócios: Mateus manda Fuentes matar Mandrake e volta com Rafael para o Rio. Mandrake, após segui-los até o aeroporto, vai ao restaurante de Alberto e fica conhecendo sua história. De volta ao quarto, encontra Mercedes com o pescoço quebrado: ela fora descoberta por Fuentes, lutaram e ela o cegara, sendo morta. Chama a polícia e depois acompanha o enterro. No cemitério, fica sabendo que Mercedes era agente federal e que ele, com sua bisbilhotice, estragara o plano da captura de Fuentes.

De volta a São Paulo, antes de entrar no apartamento, na Av. São João, Camilo Fuentes procura o jornaleiro Benito, que o avisa que ele está sendo vigiado. Decide ir ao Rio e combinam um encontro no cine Marabá, daí a quinze dias. No Rio procura um oftalmologista, que lhe recomenda um transplante de córnea, pois não enxerga mais com o olho ferido. Conhece Míriam em um supermercado e gosta dela. Apesar de brasileira e ex-cafetina. Volta a São Paulo, mas encontra Benito morto no apartamento. Vai ao cine Marabá, onde percebe uma armadilha para pegálo.

Mata dois homens, mas antes fica sabendo que foram contratados por Mateus ("queima de arquivo"), a mando do Chefe. Mandrake é procurado por José Zakkai ("Nariz de Ferro"), o anão negro, que lhe conta sua história: "Já cuspiram e cagaram em mim. Ou eu morria ou virava essa maravilha que sou" (pg. 151). Por dever favores a Raul, o anão procura Mandrake e o avisa sobre a lista de "queima de arquivo" da Organização (tóxicos, diversões eletrônicas, mulheres, rede de fast-food e de pornografia). Fazem o jogo do "sim" e do "não", mas Mandrake deixa a última pergunta para outra oportunidade e não aceita a aliança proposta.

Zakkai vai em busca de Camilo Fuentes e os dois se unem para enfrentar o Escritório Central (Org. Aquiles). Começa a "briga" entre Ada e Bebel por Mandrake.

Parte II
Inicia-se com um "flash-back" para explicar a origem da família Lima Prado e da Organização Aquiles. 1845: José Joaquim de Barros Lima nasce no Rio, filho de imigrantes portugueses. O pai é carvoeiro, mas o filho vira bacharel em Coimbra. Aos 42 anos casase com Vicentina Cintra, filha do senador Abelardo Cintra. Sua banca de advogado prospera com a abolição e a república. Trava amizade com políticos e escritores ilustres, mas tem uma frustração literária: não consegue ser reconhecido como grande poeta. Também se frustou como político: morre na véspera de tomar posse como ministro do S.T.F. (Supremo Tribunal Federal). Sua maior frustração provém das duas filhas, que não o amam: Maria do Socorro leva vida dupla: à noite veste-se de homem, chama-se Mário e freqüenta prostitutas em bordéis. Acaba assassinada por uma delas. A outra filha, Laurinda, casa-se grávida aos 16 anos com José Prescilio Prado, de dezessete anos e sobrenome próspero. Após a morte do pai sustenta a mãe no Rio. Laurinda vive em São Paulo e tem três filhos - Fernando, Maria Augusta e Maria Clara.

Torna-se patronesse das artes, recebe escritores, artistas e amantes, patrocina revistas literárias. O marido perde fortunas no pôquer e no vício (drogas), suicidando-se no aniversário de casamento (31 anos de casados). Laurinda vende sua mansão na Av. Paulista e muda para o Rio, com os três filhos: Maria Augusta casa-se com um "nobre" francês, Bernard Mitry, que a abandona e ao filho Roberto; Maria Clara era doente mental, uivava feito lobo e vivia presa no porão; Fernando, casado com Luísa Montillo, vive de um emprego modesto na prefeitura do Rio. Seu filho, Thales Lima Prado, guarda cioso um livro de 500 páginas sobre a vida da família Prado (Retrato de família, de Basílio Peralta, 1949) e sonha tornar-se escritor famoso. Enquanto isso, torna-se banqueiro famoso e presidente da Organização Aquiles. Desde os 19 anos, a avó Laurinda, que o adora, dissera-lhe não ser ele filho de Fernando, mas de Bernard Mitry. Segundo ela, só Thales teria escapado do destino trágico da família Prado. Como presidente da poderosa organização, corrompe políticos, "lava" dinheiro proveniente do tráfico de drogas e outros serviços escusos.

Mantém hábitos estranhos e defende as idéias de Hitler e do nazismo. Ordena a Mateus a "queima de arquivos": o primo Roberto Mitry (fita de vídeo), Mandrake, Fuentes e o anão Zakkai, que ameaça seu poder. Rafael inicia o "trabalho" com R. Mitry, Titi e Tatá, duas ninfetas com quem este dormia depois de uma festa pesada" em seu apartamento. O crime triplo repercute na imprensa muito mais que as matanças nas favelas. No clube, Lima Prado conversa com um senador sobre "negócios" e sai para encontrar-se com Mônica, com quem faz sexo. Tornam-se amantes. Na verdade, Thales (ou Ajax) é filho de Fernando com a irmã louca. Daí a preferência da avó por ele. Pensa na loucura. Fuentes e Miriam querem começar nova vida. Ela conta a ele sobre o advogado Mandrake. Camilo e Zakkai encontram-se em um circo. O casal muda para uma casa na ladeira Madre de Deus (tentando fugir).

Camilo e Zakkai encontram Rafael em seu sítio. Torturam-no (comer barata) e o anão o mata com uma tesoura. Acham a fita. Zakkai assiste ao vídeo e liga para Thales Lima Prado, que combina um encontro: Hermes vai buscar a fita, mas é morto por Camilo Fuentes. Thales, acuado, suicida-se enfiando uma faca na axila. Deixa seus cadernos de anotações na mesa da cozinha, ao lado de uma garrafa de álcool. Mandrake é abandonado pelas três mulheres. Lilibeth, Bebel e Ada (que viaja com Wexler). Miriam visita o advogado para contar sobre a morte de Camilo Fuentes e para devolver-lhe o unicórnio de ouro. Mandrake decifra os cadernos de Lima Prado, que a polícia não conseguira entender, e soluciona a trama: Thales, em busca da fita, matou as prostitutas e marcou-as com o P. Rosa Leitão, que ascendera socialmente até se casar com o vice-presidente do banco e tornar-se amante do presidente da Organização, assassinou Cila por ciúme, ao flagrá-la com outra mulher. Todos os outros crimes foram atribuídos à "queima de arquivos". Zakkai assume o controle da Holding que controlava a Pleasure, a Fun e a Fastfood, separando-se do banco. Procurado por Mandrake, responde à terceira pergunta de Mandrake (O que havia na fita? - Nada, só risquinhos). Bebel volta para Mandrake. Falam de amor.

Personagens

Mandrake: narrador-personagem. Advogado com tendências a detetive, solteirão irresistível às mulheres, extremamente sedutor. Aprecia vinhos finos e charutos. Foi menino introvertido e solitário. Embora tenha fobia a sangue, inicia-se na arte do PERCOR (perfurar e cortar), mas não consegue encontrar-se na arte do amar ("amo aqueles que me amam"). Cinismo disfarça insegurança.

Ada: namorada "oficial" de Mandrake, corpo bonito e atlético, acaba desencantando-se e optando pela serenidade de Wexler.

Wexler: advogado judeu, sócio de Mandrake. Apaixonado por Ada, mantém-se ético até o final, quando sai de viagem levando Ada junto.

Thales Lima Prado: Chefe da Organização criminosa "Escritório Central", constitui-se no grande vilão do livro. Foi militar. Ao tentar escrever um livro sobre a família Prado, descobre-se filho incestuoso e sua personalidade começa a desintegrar-se na loucura. "Patrocina" a grande maioria dos assassinatos do livro, suicidando-se no final (como o Ajax mitológico).

José Zakkai (o Nariz de Ferro): Anão negro, feio e inescrupuloso. Sai do esgoto para tornar-se "uma maravilha". Vive citando pensamentos e atribuindo-os a escritores e filósofos, para simular erudição.Ambicioso, torna-se o principal adversário de Thales, a quem trai para conseguir a direção dos braços da organização ligados ao tráfico, jogo e prostituição.

Roberto Mitry: primo de Thales, que o usava para desviar recursos ao exterior. Cultivava aberrações sexuais (sado-masoquismo). É assassinado na "queima de arquivos".

Camilo Fuentes: matador boliviano que odeia brasileiros. Esfaqueia Mandrake e sevicia Ada com o cabo de sua faca. Frio e cuidadoso, bandeia-se para o lado de Zakkai. Morre fuzilado (queima de arquivo).

Hermes: professor na arte do PERCOR, quando militar, assassinou um superior e foi defendido por Mandrake, a quem dá aulas para livrar-se da dívida. É morto por Camilo Fuentes.

Rafael: membro da Organização, é assassino cruel. Ao mesmo tempo, cultiva rosas. É assassinado por Zakkai, com uma tesoura. namoradas de Mandrake: Ada, Bebel, Lilibeth, Berta.

prostitutas: Miriam (cafetina), Gisela, Danusa, Cila, Titi e Tatá...

mulheres arrivistas: Rosa Leitão, Laura Lins (Cila) a família Lima Prado (avós, filhos e netos), de trágica linhagem.

Tempo

Embora procure seguir certa cronologia, apresenta vários cortes: em função das informações fragmentárias que o narrador vai recolhendo sobre os crimes; apresenta cortes cinematográficos e simultaneidade de cenas; há um grande "flash-back" no início da Parte II para que a genealogia da família Prado seja conhecida.

Espaço
Rio de Janeiro: a alta e a baixa sociedade, convivendo violentamente em busca de riqueza e poder. São Paulo - Cuiabá - Bolívia - Pouso Alto (MG).

Sobre o autor postagem em 14/04/08

Fonte:
Digerati CEC 003. (CD Rom)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Colar de Pérolas Culturais



Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio.

O nervo ótico transmite idéias luminosas ao cérebro.

O vento é uma imensa quantidade de ar.

O terremoto é um pequeno movimento de terras não cultivadas.

Os egípcios antigos desenvolveram a arte funerária para que os mortos pudessem viver melhor.

Péricles foi o principal ditador da democracia grega.

O problema fundamental do terceiro mundo e a superabundância de necessidades.

O petróleo apareceu há muitos séculos, numa época em que os peixes se afogavam dentro d'água.

A principal função da raiz é se enterrar.

O sol nos dá luz, calor e turistas.

As aves têm na boca um dente chamado bico.

A unidade de força é o Newton, que significa a força que se tem que realizar em um metro da unidade de tempo, no sentido contrario.

Lenda é toda narração em prosa de um tema confuso.

A harpa é uma asa que toca.

A febre amarela foi trazida da China por Marco Pólo.

Os ruminantes se distinguem dos outros animais porque o que comem, comem por duas vezes.

O coração é o único órgão que não deixa de funcionar 24 horas por dia.

Quando um animal irracional não tem água para beber, só sobrevive se for empalhado.

A insônia consiste em dormir ao contrário.

A arquitetura gótica se notabilizou por fazer edifícios verticais.

A diferença entre o Romantismo e o Realismo é que os românticos escrevem romances e os realistas nos mostram como está a situação do país.

O Chile é um país muito alto e magro.

As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia.

O batismo é uma espécie de detergente do pecado original.

Na Grécia a democracia funcionava muito bem porque os que não estavam de acordo se envenenavam.

A prosopopéia é o começo de uma epopéia.

Os crustáceos fora d'água respiram como podem.

As plantas se distinguem dos animais por só respirarem à noite.

Os hermafroditas humanos nascem unidos pelo corpo.

As glândulas salivares só trabalham quando a gente tem vontade de cuspir.

A fé é uma graça através da qual podemos ver o que não vemos.

Os estuários e os deltas foram os primitivos habitantes da Mesopotâmia.

O objetivo da Sociedade Anônima é ter muitas fabricas desconhecidas.

A Previdência Social assegura o direito a enfermidade coletiva.

O Ateísmo é uma religião anônima.

A respiração anaeróbia é a respiração sem ar que não deve passar de três minutos.

O calor é a quantidade de calorias armazenadas numa unidade de tempo.

Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto.

Fonte:
"Jornal do Brasil". Rio de Janeiro: 21/10/84

Machado de Assis (A Desejada das Gentes)

— Ah! conselheiro, aí começa a falar em verso.

— Todos os homens devem ter uma lira no coração, — ou não sejam homens. Que a lira ressoe a toda hora, nem por qualquer motivo, não o digo eu; mas de longe em longe, e por algumas reminiscências particulares... Sabe por que é que lhe pareço poeta, apesar das Ordenações do Reino e dos cabelos grisalhos? É porque vamos por esta Glória adiante, costeando aqui a Secretaria de Estrangeiros... Lá está o outeiro célebre... Adiante há uma casa...

— Vamos andando.

— Vamos... Divina Quintília! Todas essas caras que por aí passam são outras, mas falam-me daquele tempo, como se fossem as mesmas de outrora; é a lira que ressoa, e a imaginação faz o resto. Divina Quintília!

— Chamava-se Quintília? Conheci de vista, quando andava na Escola de Medicina, uma linda moça com esse nome. Diziam que era a mais bela da cidade.

— Há de ser a mesma, porque tinha essa fama. Magra e alta?

— Isso. Que fim levou?

— Morreu em 1859. Vinte de Abril. Nunca me há de esquecer esse dia. Vou contar-lhe um caso interessante para mim, e creio que também para o senhor. Olhe, a casa era aquela... Morava com um tio, chefe de esquadra reformado; tinha outra casa no Cosme Velho. Quando conheci Quintília... Que idade pensa que teria, quando a conheci?

— Se foi em 1855..

— Em 1855.

— Devia ter vinte anos.

— Tinha trinta.

— Trinta?

— Trinta anos. Não os parecia, nem era nenhuma inimiga que lhe dava essa idade. Ela própria confessava e até com afetação. Ao contrário, uma de suas amigas afirmava que Quintília não passava de vinte e sete; mas como ambas tinham nascido no mesmo dia, dizia isso para diminuir-se a si própria.

— Mau, nada de ironias; olhe que ironia não faz boa cama com a saudade.

— Que é a saudade senão uma ironia do tempo e da fortuna? Veja lá; começo a ficar sentencioso. Trinta anos; mas em verdade, não os parecia. Lembra-se bem que era magra e alta; tinha os olhos, como eu então dizia, que pareciam cortados da capa da última noite, mas apesar de noturnos, sem mistérios nem abismos. A voz era brandíssima, um tanto apaulistada, a boca larga, e os dentes, quando ela simplesmente falava, davam-lhe à boca um ar de riso. Ria também, e foram os risos dela, de parceria com os olhos, que me doeram muito durante certo tempo.

— Mas se os olhos não tinham mistérios...

— Tanto não tinham que cheguei ao ponto de supor que eram as portas abertas do castelo, e o riso o clarim que chamava os cavaleiros. Já a conhecíamos, eu e o meu companheiro de escritório, o João Nóbrega, ambos principiantes na advocacia, e íntimos como ninguém mais; mas nunca nos lembrou namorá-la. Ela andava então no galarim; era bela, rica, elegante e da primeira roda. Mas um dia, no antigo teatro Provisório, entre dois atos dos Puritanos, estando eu num corredor, ouvi um grupo de moços que falavam dela, como de uma fortaleza inexpugnável. Dous confessaram haver tentado alguma cousa, mas sem fruto; e todos pasmavam do celibato da moça que lhes parecia sem explicação. E chalaceavam: um dizia que era promessa até ver se engordava primeiro; outro que estava esperando a segunda mocidade do tio para casar com ele; outro que provavelmente encomendara algum anjo ao porteiro do céu; trivialidades que me aborreceram muito, e da parte dos que confessaram tê-la cortejado ou amado, achei que era uma grosseria sem nome. No que eles estavam todos de acordo é que ela era extraordinariamente bela; aí foram entusiastas e sinceros.

— Oh! ainda me lembro!... era muito bonita.

— No dia seguinte, ao chegar ao escritório, entre duas causas que não vinham, contei ao Nóbrega a conversação da véspera. Nóbrega riu-se do caso, refletiu, e depois de dar alguns passos, parou diante de mim, olhando calado. —Aposto que a namoras? perguntei-lhe. —Não, disse ele; nem tu? Pois lembrou-me uma cousa: vamos tentar o assalto à fortaleza? Que perdemos com isso? Nada; ou ela nos põe na rua e já podemos esperá-lo, ou aceita um de nós, e tanto melhor para o outro que verá o seu amigo feliz. — Estás falando sério?

— Muito sério. — Nóbrega acrescentou que não era só a beleza dela que a fazia atraente. Note que ele tinha a presunção de ser espírito prático, mas era principalmente um sonhador que vivia lendo e construindo aparelhos sociais e políticos. Segundo ele, os tais rapazes do teatro evitavam falar dos bens da moça, que eram um dos feitiços dela, e uma das causas prováveis da desconsolação de uns e dos sarcasmos de todos. E dizia-me: — este relógio, por exemplo. Combatamos pela nossa Quintília, minha ou tua, mas provavelmente minha, porque sou mais bonito que tu.

— Conselheiro, a confissão é grave; foi assim brincando...?

— Foi assim brincando, cheirando ainda aos bancos da academia, que nos metemos em negócio de tanta ponderação, que podia acabar em nada, mas deu muito de si. Era um começo estouvado, quase um passatempo de crianças, sem a nota da sinceridade; mas o homem põe e a espécie dispõe. Conhecíamo-la, posto não tivéssemos encontros frequentes; uma vez que nos dispusemos a uma ação comum, entrou um elemento novo na nossa vida, e dentro de um mês estávamos brigados.

— Brigados?

— Ou quase. Não tínhamos contado com ela, que tinha nos enfeitiçado a ambos, violentamente. Em algumas semanas já pouco nos falávamos de Quintília, e com indiferença; tratávamos de enganar um ao outro e dissimular o que sentíamos. Foi assim que as nossas relações se dissolveram, no fim de seis meses, sem ódio nem luta, nem demonstração externa, porque ainda nos falávamos, onde o acaso nos reunia; mas já então tínhamos banca separada.

— Começo a ver uma pontinha do drama...

— Tragédia, diga tragédia; porque daí a pouco tempo, ou por desengano verbal que ela lhe desse, ou por desespero de vencer, Nóbrega deixou-me só em campo. Arranjou uma nomeação de juiz municipal lá para os sertões da Bahia, onde definhou e morreu antes de acabar o quatriênio. E juro-lhe que não foi o inculcado espírito prático de Nóbrega que o separou de mim; ele, que tanto falava das vantagens do dinheiro, morreu apaixonado como um simples Werther.

— Menos a pistola.

— Também o veneno mata; e o amor de Quintília podia dizer-se alguma cousa parecido com isso; foi o que o matou, e o que ainda hoje me dói... Mas, vejo pelo seu dito que o estou aborrecendo...

— Pelo amor de Deus. Juro-lhe que não; foi uma graçola que me escapou. Vamos adiante, conselheiro; ficou só em campo.

— Quintília não deixava ninguém estar só em campo, — não digo por ela, mas pelos outros. Muitos vinham ali a tomar um cálix de esperanças, e iam cear a outra parte. Ela não favorecia a um mais que a outro; mas era lhana, graciosa e tinha essa espécie de olhos derramados que não foram feitos para homens ciumentos. Tive ciúmes amargos e, às vezes, terríveis. Todo argueiro me parecia um cavaleiro, e todo cavaleiro um diabo. Afinal acostumei-me a ver que eram passageiros de um dia. Outros me metiam mais medo, eram os que vinham dentro da luvas das amigas. Creio que houve duas ou três negociações dessas, mas sem resultado. Quintília declarou que nada faria sem consultar o tio, e o tio aconselhou a recusa, — cousa que ela sabia de antemão. O bom velho não gostava nunca da visita de homens, um receio de que a sobrinha escolhesse algum e casasse. Estava tão acostumado a trazê-la ao pé de si, como uma muleta da velha alma aleijada, que temia perdê-la inteiramente.

— Não seria essa a causa da isenção sistemática da moça?

— Vai ver que não.

— O que noto é que o senhor era mais teimoso que os outros...

— ... Iludido, a princípio, porque no meio de tantas candidaturas malogradas, Quintília preferia-me a todos os outros homens, e conversava comigo mais largamente e mais intimamente, a tal ponto que chegou a correr que nos casávamos.

— Mas conversavam de quê?

— De tudo o que ela não conversava com os outros; e era de fazer pasmar que uma pessoa tão amiga de bailes e passeios, de valsar e rir, fosse comigo tão severa e grave, tão diferente do que costumava ou que parecia ser.

— A razão é clara: achava a sua conversação menos ensossa que a dos outros homens.

— Obrigado; era mais profunda a causa da diferença, e a diferença ia-se acentuando com os tempos. Quando a vida cá embaixo a aborrecia muito, ia para o Cosme Velho, e ali as nossas conversações eram mais frequentes e compridas. Não lhe posso dizer, nem o senhor compreenderia nada, o que foram as horas que ali passei, incorporando na minha vida toda a vida que jorrava dela. Muitas vezes quis dizer-lhe o que sentia, mas as palavras tinham medo e ficavam no coração. Escrevi cartas sobre cartas; todas me pareciam frias, difusas, ou inchadas de estilo. Demais, ela não dava ensejo a nada; tinha um ar de velha amiga. No princípio de 1857 adoeceu meu pai em Itaboraí; corri a vê-lo, achei-o moribundo. Este fato reteve-me fora da Corte uns quatro meses. Voltei pelos fins de maio. Quintília recebeu-me triste da minha tristeza, e vi claramente que o meu luto passara aos olhos dela...

— Mas que era isso senão amor?

— Assim o cri, e dispus a minha vida para desposá-la. Nisto, adoeceu o tio gravemente. Quintília não ficava só, se ele morresse, porque, além dos muitos parentes espalhados que tinha, morava com ela agora, na casa da rua do Catete, uma prima, D. Ana, viúva; mas, é certo que a afeição principal ia-se embora e nessa transição da vida presente à vida ulterior podia eu alcançar o que desejava. A moléstia do tio foi breve; ajudada da velhice, levou-o em duas semanas. Digo-lhe aqui que a morte dele lembrou-me a de meu pai, e a dor que então senti foi quase a mesma. Quintília viu-me padecer, compreendeu o duplo motivo, e, segundo me disse depois, estimou a coincidência do golpe, uma vez que tínhamos de o receber sem falta e tão breve. A palavra pareceu-me um convite matrimonial; dois meses depois cuidei de pedi-la em casamento. D. Ana ficara morando com ela e estavam no Cosme Velho. Fui ali achei-as juntas no terraço, que ficava perto da montanha. Eram quatro horas da tarde de um domingo. D. Ana, que nos presumia namorados, deixou-nos o campo livre.

— Enfim!

— No terraço, lugar solitário, e posso dizer agreste, proferi a primeira palavra. O meu plano era justamente precipitar tudo, com medo de que, cinco minutos de conversa, me tirassem as forças. Ainda assim, não sabe o que me custou; custaria menos uma batalha, e juro-lhe que não nasci para guerras. Mas aquela mulher magrinha e delicada, impunha-se-me, como nenhuma outra, antes e depois...

— E então?

— Quintília adivinhara, pelo transtorno do meu rosto, o que lhe ia pedir, e deixou-me falar para preparar a resposta. A resposta foi interrogativa e negativa. Casar para quê? Era melhor que ficássemos amigos como dantes. Respondi-lhe que a amizade era, em mim, desde muito, a simples sentinela do amor; não podendo mais contê-lo, deixou que ele saísse. Quintília sorriu da metáfora, o que me doeu, e sem razão; ela, vendo o efeito, fez-se outra vez séria e tratou de persuadir-me de que era melhor não casar. — Estou velha, disse ela; vou em trinta e três anos. Mas se eu a amo assim mesmo, repliquei, e disse-lhe uma porção de cousas, que não poderia repetir agora. Quintília refletiu um instante; depois insistiu nas relações de amizade; disse que posto que mais moço que ela, tinha a gravidade de um homem mais velho, e inspirava-lhe confiança como nenhum outro. Desesperançado, dei algumas passadas, depois sentei-me outra vez e narrei-lhe tudo. Ao saber da minha briga com o amigo e companheiro da academia, e a separação em que ficámos sentiu-se, não sei se diga, magoada ou irritada. Censurou-nos a ambos; não valia a pena que chegássemos a tal ponto. — A senhora diz isso, porque não sente a mesma cousa. — Mas então é um delírio? — Creio que sim; o que lhe afianço é que ainda agora, se fosse necessário, separar-me-ia dele uma e cem vezes; e creio poder afirmar-lhe que ele faria a mesma cousa. Aqui olhou ela espantada para mim, como se olha para uma pessoa cujas faculdades parecem transtornadas; depois abanou a cabeça, e repetiu que fora um erro; não valia a pena. — Fiquemos amigos, disse-me, estendendo a mão. — É impossível; pede-me cousa superior às minhas forças, nunca poderei ver na senhora uma simples amiga; não desejo impor-lhe nada; dir-lhe-ei até que nem mais insisto, porque não aceitaria outra resposta agora. Trocámos ainda algumas palavras, e retirei-me... Veja a minha mão.

— Treme-lhe ainda ...

— E não lhe contei tudo. Não lhe digo aqui os aborrecimentos que tive, nem a dor e o despeito que me ficaram. Estava arrependido, zangado, devia ter provocado aquele desengano desde as primeiras semanas; mas a culpa foi da esperança, que é uma planta daninha , que me comeu o lugar de outras plantas melhores. No fim de cinco dias saí para Itaboraí, onde me chamaram alguns interesses do inventário de meu pai. Quando voltei, três semanas depois, achei em casa uma carta de Quintília.

— Oh!

— Abri-a alvoroçadamente: datava de quatro dias. Era longa; aludia aos últimos sucessos , e dizia cousas meigas e graves . Quintília afirmava ter esperado por mim todos os dias, não cuidando que eu levasse o egoísmo até não voltar lá mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava um ao outro; como a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbulo. Respondi à carta dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me humilhado. Risquei a palavra ridículo já escrita, para poder ir vê-la sem este vexame; bastava o outro.

— Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.

— Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.

— Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a absolvição. Mas, enfim, correu à casa dela.

— Não corri; fui dois dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de humilhação, onde não houve público." Fui e voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que era dantes; depois o demônio da esperança veio outra vez pousar no meu coração; e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que me achava. As boatos de nosso casamento correram o mundo. Chegaram aos nossos ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata austríaco ou não sei quê, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga das paixões, e assistira a algumas alheias.

— De que moléstia padecia?

— Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia tocando o ponto melindroso. Chegámos assim a 1859. Desde março desse ano a moléstia agravou-se muito, teve uma pequena parada, mas para os fins do mês chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia mentir; ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lho. Uma vez certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.

— Casou com o senhor, aposto?

— Não me relembre essa triste cerimônia; ou antes, deixe-me relembrá-la, porque me traz algum alento do passado. Não aceitou recusa nem pedidos; casou comigo à beira da morte. Foi no dia 18 de Abril de 1859. Passei os últimos dois dias, até 20 de Abril, ao pé da minha noiva moribunda, e abracei-a pela primeira vez, feita cadáver.

— Tudo isso é bem esquisito.

— Não sei o que dirá a sua fisiologia. A minha, que é de profano, crê que aquela moça tinha ao casamento uma aversão puramente física. Casou meia defunta, às portas do nada. Chame-lhe monstro, se quer, mas acrescente divino.

Fonte:
Biblioteca Virtual da USP.