sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Ademir Braz (Poesias Avulsas)

Quando saem os tigres

Mal freqüento esta casa
em que os frutos apodrecem sobre a mesa.
No entanto, trouxe flores – duas,
que fizeram bem aos olhos na rua
e deram essa ilusão de ter quem recebê-las.
(Quando puder consumir-me, talvez a casa
não será imensa nem a solitude tanta
nem no espelho brotarão gerúndios).

Trouxe também n’alma a vaga sede
dos pântanos e no coração um sobressalto.

Enquanto ponho n’água as flores soturnas
penso que os astros aconselham um largo
passeio (sozinho) pelos lugares que você
gosta e penso nos lugares que gostaria
e não os acho em meio a esta enorme sedução.
Quem estará hoje nas ruas?
Os loucos e os distraídos... E eu, sairei?

Sim, sairei... Talvez eu siga existindo por uma rua
que me faça lembrar dos acenos
que chamam a aurora sem degredos
a tessitura da pedra sob o orvalho
a enegrecida substância do poema.
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Elegia de verão

Enquanto Pedro agoniza
e sangra a vida nas pedras
do chão estreito da praça
na praça tonta de luz
acácias douram o dia
aves alegres revoam
na praça tonta de luz.

Pedra entre pedras a poça
dos olhos vítreos de Pedro
reflete lotes de nuvens
no latifúndio do céu.

Enquanto Pedro agoniza
e um sol perfeito resseca
o sangue espesso nas pedras
Pedro ignora que a terra
a terra amante e mãe
com leves dedos afaga
o corpo que a desejou.

Inacabado horizonte
exangue pássaro Pedro:
seu corpo é sua sina
de pedra a mão campesina

Seu corpo é sua sina
de pedra a mão campesina.
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Em carne viva

Juntam gravetos e lume,
arde a fogueira na rua.
No sete-estrelo dos céus
Canções de roda e lembranças
Giram os vitrais da infância
na viuvez das estrelas.

Sobe da ilharga do fogo
um alarido tribal.
Ora pro nobis nas velas
Outro obscuro Natal.

Fazíamos assim, no tempo
que esta noite resgata:
Adultos sobre a calçada,
boca-de-forno, crianças,
Voz do Brasil no Transglobe
de válvula e bateria.

Com a seda garça da lua,
e fios de fada e encantos,
à luz de vela tecia
dona Itália o manto
da virgem que desencanta
(fiando fibras de urtiga
na carne viva da mão)
o príncipe que a bruxa má
tornara ave infeliz.

A cada noite a vida
ganhava em luz e magia
quando Itália na porta
cercada pelos meninos
contava histórias perdidas
entre degraus da calçada:
“Era uma vez...”, e girava
a estrela azul entre as algas
e o fogo-fátuo dos astros
nos infinitos luzia.
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Celebração

Abre a geladeira quase com ternura:
entre sua mão
os soníferos
o uísque
as ternas pedras de gelo
há uma espécie de traição.
.
Lá fora o sol corrosivo
entontece as árvores.

Uma mulher sorri.
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Quermesse

Quase contraforte ergue-se o muro.

Luzem nele opalas metálicas
rubis topázios em navalha
metódicas esmeraldas
incrustradas
na gengiva de tijolos nus.

Ruas de luz trafegam sobre o muro.

Detrás do muro:
grades portas janelas (crianças
invisíveis às vezes riem).

Na rua, além do litoral,
sacis e vento inventam cabra-cega
entre saias floridas e quintais.

Fonte:
http://www.culturapara.art.br/Literatura/

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