sexta-feira, 17 de outubro de 2008

H P LOVECRAFT (O NAVIO BRANCO)



The White Ship
Tradução de Marianna C. de Carvalho

Eu sou Basil Elton, responsável pelo farol de North Point, o mesmo deixado aos cuidados de meu pai e meu avô antes de mim. Distante da costa e acima de rochas escorregadias e submersas que podem ser vistas quando a maré está baixa, mas são imperceptíveis quando ela está alta se encontra o farol cinzento. Por ele passaram navios majestosos vindos dos sete mares. No tempo de meu avô eles eram muitos, no tempo de meu pai nem tantos, e agora eles são tão poucos que às vezes sinto-me estranhamente sozinho, como se eu fosse o último homem na Terra.

De terras distantes vinham aqueles antigos navios mercantes de velas brancas; de terras Orientais distantes onde sóis quentes brilham e doces aromas se perpetuam em estranhos jardins e graciosos templos. Os velhos capitães do mar geralmente vinham até meu avô e contavam-lhe sobre essas coisas que por sua vez ele contou ao meu pai, e meu pai contou-me nas longas tardes de outono quando o vento vindo do Leste soprava de forma assustadora. E eu lia mais sobre essas coisas, e sobre muitas outras também, nos livros que os homens me davam quando eu era jovem e maravilhado com elas.

Porém mais maravilhosa que a sabedoria de velhos homens e a sabedoria dos livros é a sabedoria secreta do mar. Azul, verde, cinza, escuro ou límpido; calmo, agitado ou turbulento; o mar não é silencioso. Durante toda a minha vida eu o observei e o escutei, e eu o conheço bem. De início ele me contou somente histórias simples e pequenas sobre praias tranqüilas e portos vizinhos, mas com o passar dos anos ele ficou mais amistoso e falou-me sobre outras coisas; sobre coisas mais estranhas e mais distantes no tempo e no espaço. Às vezes, no crepúsculo, os vapores acinzentados do horizonte começavam a me oferecer visões de caminhos distantes; e às vezes à noite as águas profundas do mar ficavam cada vez mais claras e fosforescentes, concedendo-me visões de seus caminhos. E essas visões eram tantas quanto os caminhos eram, podiam ser ou ainda são; pois o mar é mais velho que as montanhas, e repleto de memórias e sonhos de muitas Eras.

Do longínquo Sul era de onde o Navio Branco costumava vir quando a lua estava cheia e alta nos céus. Do longínquo Sul ele deslizava bem suave e silenciosamente sobre o mar. E o mar estando calmo ou agitado, ou o com o vento amistoso ou desfavorável, ele sempre conseguia deslizar suave e silenciosamente; com suas velas estáticas e suas longas e estranhas fileiras de remos movendo em perfeito ritmo. Uma noite eu espiei um homem sobre o convés, barbas e túnica longas, e ele pareceu acenar para que eu embarcasse rumo a terras longínquas e desconhecidas. Muitas vezes depois eu o vi sob a lua cheia, e ele não mais voltou a me acenar.

A lua brilhava profundamente na noite em que eu respondi ao chamado, e caminhei sobre as águas em direção ao Navio Branco sobre uma ponte de luar. O homem que me convidara agora me dava as boas vindas em uma língua suave que eu parecia conhecer bem, e as horas foram preenchidas por doces cantigas dos remadores à medida que deslizávamos rumo ao misterioso Sul, dourado pelo brilho daquela delicada lua cheia.

E quando o dia amanheceu cor de rosa e radiante, eu avistei as verdes planícies das terras distantes, ensolaradas e belas e desconhecidas para mim. Acima do oceano surgiam gigantescas fileiras de vegetação, ornadas com árvores, e mostrando aqui e lá telhados de um branco brilhante e colunas de templos estranhos. Ao nos aproximarmos da verde planície o homem de longas barbas contou-me sobre aquela terra, a terra de Zar, onde habitavam todos os sonhos e pensamentos belos que vêem aos homens e depois são esquecidos. E olhamos para a vegetação novamente e vi que o que ele disse era verdade, pois entre a paisagem diante de mim estavam muitas coisas que eu vira apenas através das brumas, além do horizonte e dos abismos fosforescentes do oceano. Havia também formas e fantasias mais esplêndidas que qualquer homem já conhecera; as visões de jovens poetas que morreram antes que o mundo pudesse aprender o que eles haviam sonhado ou visto. Mas nós não colocamos nossos pés sobre as encostas verdes de Zar, pois se diz que aquele que nelas pisa talvez nunca mais retorne a sua terra natal.

À medida que o Navio Branco se distanciava silenciosamente da planície repleta de templos de Zar, observamos no horizonte, a nossa frente, as torres de uma imponente cidade; o homem de longas barbas me disse “Esta é Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, onde residem todos aqueles mistérios que o homem tem tentado, em vão, compreender”. E eu olhei novamente, a uma distância menor, e vi que a cidade era maior que qualquer cidade com a qual eu sonhara ou já vira. As torres de seus templos alcançavam os céus, assim nenhum homem seria capaz de alcançar as suas pontas; e bem distante, além do horizonte, estendia-se uma muralha cinza e lúgubre sobre a qual se poderiam espiar somente alguns telhados, estranhos e sinistros, adornados com ricos beirais e esculturas. Eu estava ainda mais ansioso para entrar nessa fascinante ainda que repelente cidade e implorei ao homem de barbas longas que me deixasse aportar naquele píer de pedra próximo ao enorme portal esculpido de Akariel; mas ele gentilmente negou o meu pedido dizendo, “Em Thalarion, a Cidade das Mil Maravilhas, muitos entraram, mas ninguém retornou. Em seu interior somente caminham demônios e criaturas loucas que há muito deixaram de ser humanas, e as ruas ficaram brancas com os ossos não-sepultados daqueles que olharam sobre o espectro de Lathi, aquele que reina sobre a cidade”. Assim o Navio Branco continuou sua viagem navegando ao lado da muralha de Thalarion, e seguiu por muitos dias um pássaro que voava rumo ao sul, cuja lustrosa plumagem se confundia com o céu de onde ele surgira.

Chegamos então a uma agradável costa que se mostrava atraente com suas flores de todas as tonalidades possíveis; tanto quanto nossa vista permitia alcançar seu interior podíamos ver bosques adoráveis e árvores radiantes repousando sob o sol do meridiano. À sombra além de nossa vista vinham trechos de música e canções líricas, entrecortados por gargalhadas tão deliciosas que eu instiguei os remadores a seguirem adiante no meu afã de alcançar aquela cena. E o homem de barbas longas não disse uma palavra, mas observou-me à medida que nos aproximamos da margem de terra ladeada por lírios. De repente um vento soprou vindo do prado e dos bosques frondosos trazendo um cheiro que me fez estremecer. O vento ficou mais forte, e o ar foi tomado pelo odor letal e pútrido de cidades devastadas pela peste e cemitérios descobertos. E quando navegamos como loucos para nos afastar daquela costa amaldiçoada o homem de barbas longas finalmente se pronunciou, dizendo: “Esta é Xura, a Terra dos Prazeres Inalcançados”.

Então mais uma vez o Navio Branco seguiu o pássaro do céu, sobre os mares quentes e abençoados, embalados por brisas aromáticas e acariciantes. Dia após dia, noite após noite navegamos, e quando a lua ficava cheia ouvíamos as suaves cantigas dos remadores, doces como naquela noite distante quando partimos para longe da nossa terra natal. E foi sob a luz do luar que ancoramos finalmente no porto de Sona-Nyl, que é protegida por dois promontórios de cristal que surgem do oceano e se encontram em um esplêndido arco. Essa é a Terra da Imaginação e nós seguimos a sua costa verdejante sob uma ponte dourada de luz do luar.

Em Sona-Nyl não há nem tempo nem espaço, nem sofrimento nem morte, e lá eu fiquei por muitíssimo tempo. Verdes são os bosques e pastos, brilhantes e perfumadas as flores, azuis e musicais os riachos, límpidas e frescas as fontes, e impressionantes e maravilhosos os templos, castelos e cidades de Sona-Nyl. Naquela terra não há fronteira, pois para cada visão bela surge uma outra ainda mais bela. Por toda a paisagem campestre e em meio ao esplendor das cidades o povo pode se locomover à vontade, de quem tudo é ofertado com uma graça intocada e uma felicidade genuína. Durante o longo tempo em que lá permaneci, perambulei extasiado por jardins onde pagodes pitorescos nos observam por de trás de agradáveis arbustos, e onde as calçadas brancas são ladeadas por flores delicadas. Escalei suaves colinas de cujos cumes eu podia ver paisagens extasiastes, com cidades verticais como torres de igrejas aconchegando-se em vales verdejantes, e as abóbadas douradas das cidades brilhando no horizonte infinitamente distante. E eu vi sob a luz do luar o mar cintilante, os promontórios de cristal, e o porto tranqüilo onde ficava ancorado o Navio Branco.

Foi numa noite, contra a lua cheia no imemorável ano do Tharp que eu vi a silhueta do pássaro celestial, e senti os primeiros indícios de inquietação. Falei então para o homem de barbas longas, e contei-lhe sobre a minha nova ânsia em partir rumo à remota Cathuria, aquela que nenhum homem jamais vira, mas que todos acreditavam encontrar-se além dos pilares de basalto do Oeste. Trata-se da Terra da Esperança, e nela brilha os ideais perfeitos de tudo que se conhece em todos os lugares, ou pelo menos é o que dizem. Mas o homem de barbas longas me disse: “Seja cauteloso com aqueles oceanos perigosos onde os homens dizem se encontrar Cathuria. Em Sona-Nyl não há nem dor nem morte, mas quem pode dizer o que jaz além dos pilares de basalto do Oeste?” Todavia, na lua cheia seguinte eu embarquei no Navio Branco, e com o relutante homem de barbas longas, eu deixei com alegria o porto para viajar por mares desconhecidos.

E o pássaro dos céus voou a nossa frente, e nos guiou em direção ao pilares de basalto do Oeste, mas desta vez os remadores não cantaram melodias doces sob a lua cheia. Na minha cabeça eu geralmente desenhava a Terra de Cathuria com seus palácios e caminhos esplêndidos, e me perguntava que novos deleites me aguardavam. “Cathuria” eu dizia a mim mesmo “é a morada dos deuses e terra das inumeráveis cidades de ouro. Suas florestas são de aloé e sândalo, mesmo os bosques de Camorin, e entre as árvores voam pássaros alegres cantando doces canções. Nas verdes e floridas montanhas de Cathuria encontram-se templos de mármore róseo, adornados com entalhes e pinturas que representam glórias, e em seus pátios há fontes de prata, onde as águas perfumadas que vem do rio Narg, cuja nascente se encontra em uma gruta, bramem encantadoras canções. E as cidades de Cathuria são cercadas por muralhas douradas, e seu calçamento também é de ouro. Nos jardins dessas cidades encontram-se estranhas orquídeas, e lagos perfumados cujos leitos são de coral e âmbar. À noite as ruas e os jardins são iluminados com lanternas vistosas feitas com casco de tartarugas de três cores, e lá ecoam as doces notas de um cantor e um tocador de alaúdes. E todas as casas das cidades de Cathuria são palácios, cada um deles construído sobre um perfumado canal que conduz as águas do sagrado Narg. De mármore e alabastro são feitas as casas, e cobertas com telhados de ouro brilhante que refletem os raios de sol e aumentam o esplendor das cidades como se os deuses jubilosos as observassem dos picos distantes. O mais belo de todos é o palácio do grande monarca Dorieb, aquele que alguns afirmam ser um semi-deus enquanto outros um deus. Sublime é o palácio de Dorieb, e muitas são as pequenas torres de mármore sobre suas muralhas. Em seus amplos salões multidões se reúnem, e lá pendem troféus conquistados há eras. E o teto é inteiramente feito de ouro, sustentado por altos pilares de rubi e lápis-lazúli, entalhados com imagens de deuses e heróis que faz com que aquele os fita tenha a impressão de estar contemplando o próprio Olimpo. E o piso do palácio é feito de vidro, sob o qual corre as iluminadas águas do Nargh, alegre com os pomposos peixes por ninguém conhecidos além da fronteira da amável Cathuria.”

Assim eu falava para mim mesmo sobre Cathuria, mas o homem de barbas longas sempre me alertava para voltarmos à afortunada Sona-Nyl; pois Sona-Nyl é conhecida pelos homens, enquanto ninguém conseguira chegar a Cathuria. E no trigésimo primeiro dia, guiados pelo pássaro alcançamos os pilares de basalto do Oeste. Envolvidos pela neblina estavam eles, assim nenhum homem podia espiar além ou ver o seu ponto mais alto – que na verdade alguns dizem chegar aos céus. E o homem de barbas longas mais uma vez implorou-me que voltássemos, mas eu não lhe dei atenção; pois da neblina além dos pilares de basalto eu imaginei que viriam as notas dos cantores e tocadores de alaúdes; mais doces que as mais doces canções de Sona-Nyl, e parecendo-se com meus próprios louvores; eu que viajara para longe da lua cheia e morara na Terra da Fantasia. Assim ao som da melodia o Navio Branco navegou pela neblina entre os pilares de basalto do Oeste. Então quando a música cessou e a neblina se dissipou, vimos que não havíamos chegado a Terra de Cathuria, mas sim a um mar revoltoso e indominável, sobre o qual nosso navio já sem esperanças era levado rumo a algum objetivo desconhecido. Logo chegaram aos nossos ouvidos o trovejar distante de quedas d’água, e aos nossos olhos apareceu, no horizonte distante a nossa frente, a rajada titânica de uma catarata monstruosa, onde os oceanos do mundo se encontram e deságuam em um abismo do nada. Então o homem de barbas longas me disse, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, “Nós rejeitamos a bela Terra de Sona-Nyl, à qual jamais retornaremos. Os deuses são maiores que os homens, e eles venceram.” E eu fechei meus olhos antes da queda que eu sabia que viria, impedindo a visão do pássaro celestial que batia suas asas azuis e orgulhosas sobre a correnteza.

Com a queda veio a escuridão, e eu ouvi os gritos de homens e de coisas que não eram humanas. Dos ventos tempestuosos do Leste eles surgiram, e deram-me calafrios como se eu me curvasse sobre uma laje de pedra que surgira sobre meus pés. Então eu ouvi mais uma batida e abri os olhos e me encontrei sobre a plataforma daquele farol de onde eu partira há muitos e muitos anos. Na escuridão abaixo surgiam os vastos contornos embaçados de um navio despedaçado sobre as rochas cruéis, e quando fitei os destroços vi que a luz havia se extinguido pela primeira vez desde que meu avô assumira o seu posto.

E nas tardes horas noturnas, quando eu fui para o interior da torre, vi que no calendário pregado na parede continuava lá como eu deixara na hora em que partira. Com o amanhecer eu desci a torre e olhei para os destroços sobre o rochedo, mas o que encontrei foi somente o seguinte: um estranho pássaro morto cujo tom era de um azul celeste, e um único mastro, de uma brancura maior que a da espuma do mar ou de uma montanha de neve.

E desde então o mar nunca mais me contou seus segredos; e embora muitas vezes a lua cheia tenha brilhado e se erguido nos céus, o Navio Branco do Sul nunca mais voltou.

Fontes:
Primeiras Traduções.
http://www.ichs.ufop.br/tradufop/?cat=1
Imagem = http://
www.monsores.net

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