domingo, 23 de novembro de 2008

Maria Ganzoto da Silva (Uma “ Consoada “ com Manuel Bandeira)


Na obra de Manuel Bandeira a temática da morte é constante. Ele revela uma certa tranqüilidade ao construir um eufemismo na poesia Consoada. O poeta demonstra a aceitação da “Indesejada”, porque a dor de viver é quase sempre insuportável. Constrói uma poesia sem dizer o nome da convidada e nos surpreende ao vermos que sua convivência com a Indesejada é serena.

CONSOADA

QUANDO A INDESEJADA das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios).
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Ao contemplarmos o eu lírico de Bandeira aguardando sua convidada, a “iniludível” fica nítido que, apesar do receio inevitável da noite e de seus “sortilégios”, o poeta apresenta sua composição com a idéia de sua própria efemeridade. Afinal, ao ter a “consoada” por sua companheira destina-lhe um justo lugar, em suas concepções pessoais.A biografia de Bandeira nos mostra que também ele viveu, perenemente, sob a sombra da morte. Condenado ainda em sua juventude pelos médicos, fez da Indesejada a sua própria sombra, fazendo-o aceitar e compreender que a vida é uma “...agitação feroz e sem finalidade / Que a vida é traição... ”.

Nota-se uma afinidade de sentimentos entre Bandeira e o francês Baudelaire, que expressou a futilidade da contenção no seu “Remorso Póstumo”: “... porque o túmulo sempre há de entender o poeta / na insônia sepulcral dessas noites sem fim, / Dir-te-á: “de que serviu, cortesã incompleta, / não ter tido o que em vão choram os mortos sós?”/ - E o verme te roerá como um remorso atroz ...”.

Bandeira se esforçou para escapar da sua aproximação mais estreita da morte, fiel companheira retratada em Consoada. Com isto demonstrou possuir uma consciência aguçada de que a condição humana é provisória. Desvairado por ter sido lançada em seu caminho a verdade comum a todos os mortais, Bandeira suplica, em “Renúncia”, “... humildemente a Deus que a faça/ Tua doce e constante companheira ...”. Esta intimidade com a dor e a morte gera uma amizade que é um contentamento amoroso, uma rotina para um homem acompanhado permanentemente da “indesejada das gentes”. Neste sentido podemos afirmar que foi, sim, Bandeira o traidor, pois durante toda sua existência traiu sua perseguidora (a morte) com sua amante fugidia e involuntária (a vida).

E o poeta reconcilia-se com a traída, convidando-a para a Consoada, a princípio temeroso (por não saber se a morte chegaria de maneira dura ou caroável). Aqui, talvez, caiba falar do segundo sentido de consoar, de soar em conjunto, estar de acordo. Assim, consoante com a morte, pode o poeta incluí-la em seu rol de conquistas, que ela se torna não apenas inspiração como também, musa! Foi, afinal, ela quem colaborou com o poeta para que seu campo fosse lavrado com tanta ternura. Foi a morte que plantou a semente, não do poeta, pois (como o próprio afirma no Itinerário de Pasárgada) este já estava em formação, mas, sim de algumas belíssimas obras, que fazem parte, neste receptivo jantar: um cardápio como finas iguarias dispostas ao longo de uma vida que deixou cada coisa em seu lugar.

Em Consoada, Bandeira conseguiu superar as aflições, em um ritual de sedução, em uma confraternização, em um jantar, que é uma das atividades normais da vida.Uniu os princípios da vida e da morte. Ela, a traidora e amante indesejada, sob o mesmo teto, à mesma mesa, em um banquete servido pela poesia em pessoa.
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Fonte:
Portal CEN. http://www.caestamosnos.org/

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