quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Napoleão Valadares (Tico Tico Preto)



Cinco da manhã. Pedro saía para o trabalho e, ao abrir a porta, um embrulho no chão. Criança recém nascida, enrolada nuns panos. Agora essa! As mães deixando as crias em portas alheias. Na hora de fazer, todo mundo está pronto. Vão parindo e abandonando os inocentes.

Com aquela filharada, vinha lhe agora mais uma boca para comer. Do jeito que a vida andava difícil... Por que não deixavam na porta de um rico? Ali perto morava Dr. Santana, advogado, cheio da grana, folgado. Dr. Santana nem precisava se levantar a uma hora daquelas, só saindo para o escritório mais tarde. Ele, Pedro, é que tinha de pular da cama com o escuro, correr uma água na cara e se mandar para a obra.

Se chamasse Madalena, ela ia querer ficar com a criança. Não chamaria. Ia era levar aquele embrulho e entregar ao juiz. Ele que arranjasse um jeito de resolver o problema. Mas àquela hora não ia encontrar juiz nenhum. O juiz, como Dr. Santana, só se levantaria mais tarde.

Pegou aquilo com cuidado, atravessou a rua, amaciou o passo, puxou o trinco do portãozinho e colocou na porta de Dr. Santana. Um aperto no coração e uma vontade de retomar a criança e levá la para casa. Mas teve medo de ser visto ali na porta alheia. Fazendo o quê? E saiu apressado, segurando se para não correr.

Na obra, os pensamentos. Se puseram em sua porta, tinha que tomar conta. Teria agido certo, recusando se a dar abrigo à criança, colocando a na porta de outro, negando a caridade?

– Seu Pedro, a massa tá pronta. O senhor hoje tá pensativo... – despertou-o Manuel, o servente.

– É... Não. Pensando é mesmo nisso aqui. Essa obra...

Que obra que nada! Teve que empurrar a criança para outra porta, negando a caridade. Tinha ouvido Frei Plequelmo dizer num sermão que o sujeito pode ser tudo neste mundo, mas se for caridoso, vai para o céu. Parece que era o caso de Dimas, que pintou o sete e depois ainda ganhou o reino de Deus.

– Seu Pedro, o senhor não disse que ia começar o reboco lá pela frente? Tá no mundo da lua hoje...

– Sim, Manuel, é pela frente. Distração minha.

Não podia criar mais ninguém. Bastavam lhe os seus. A vida custando o olho da cara. Chegava de despesas. Mais uma criança em casa significaria repartir o que os filhos comiam.

Em casa, Madalena já tinha a novidade. Veio toda repórter com as canjicas de fora:

– Pedro, não te conto a maior: deixaram um nenenzinho essa noite na porta de Dr. Santana. Uma gracinha! D. Terezinha mais Dr. Santana tão encantados com ele. Só vendo...

– É homem?

– É. Você já sabia?

– De quê?

– Do nenem, uai.

– Eu? Eu não. Por quê?

– Está perguntando se é homem, como se já soubesse...

– Não. Sabendo agora.

Dr. Santana, mais que depressa, deu ao menino o nome de Otávio, em homenagem ao civil dos Dezoito do Forte. Otávio, crioulinho bem nutrido em casa de branco, novo encanto de D. Terezinha, que já tinha os filhos grandes.

Na porta de outro. Sujeito fraco não pode se meter a caridoso. Fazer caridade para sacrificar os seus? Tinha agido certo. Dr. Santana era rico. Ele que criasse.

Acabava de largar o prato, quando o telefone tocou.

– Alô. É Pedro que está falando?

– Ele mesmo.

– Pedro, aqui é a Valquíria.

Gelou se. Valquíria, um caso antigo e complicado. Depois de umas brigas, ela sumiu. Fazia meses. Agora vinha telefonar para casa, o que nunca tinha feito.

– Alô...

– Alô, Pedro. Valquíria. Estou telefonando para avisar. Olha, não quero criar problema pra você não. Escuta. Só pra avisar que deixei nosso filho em sua porta essa noite. Toma conta. Você sabe, eu não posso criar. E, pra deixar numa porta, achei melhor deixar na sua, que é pai. Pode ficar tranqüilo, que não vou complicar sua vida não. Estou me mandando pro Paraná. Fica com Deus e olha ele.

Na porta de outro. Tinha botado o menino lá, sem saber que era seu filho. Se soubesse, não botaria. Co¬mo não sabia, estava certo. Estava? A situação pra lá de feia, com essa carestia dos diabos. Dificuldades e dificuldades. E uma criança dá despesa que não é brinquedo.

Lembrava se do tempo de menino, quando caçava ninhos. Por vezes, achava filhote de pássaro preto em ninho de tico tico. A fêmea preta botando em ninho alheio. O velho Procópio ensinava: "É, menino, a passa-preta é uma sem vergonha, e a tica tica é uma besta que cria o pretinho." Sem vergonheza... A natureza não sabe tudo? Não seria porque a comida fica mais escassa para o pássaro preto? Pobre criado em casa de rico pode estar apartado da idéia de fome. Otávio crescia gordo. Um pássaro preto em ninho de tico tico. Tico-tico preto. Deus o abençoasse.

Fontes:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/
Imagem =
http://flickr.com

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