quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Antonio Roberto de Paula (Campeonatos da vida)



- Tem fogo?

- Tenho.

- Obrigado. Quer fumar?

- Não, fumei agora.

- Que fila, não?

- Já entraram uns trinta.

- E são só cinco vagas.

- Eu tô aqui de bobeira. Não tenho experiência.

- Trabalhei só uns três meses nisso, mas não tem mistério.

- Então você tem mais chances do que eu.

- Sei não. Depois dos 40 o pessoal tem má vontade.

- Que 40 nada. Com 35 já te olham meio atravessado.

- Faz tempo que você tá parado?

- Você diz: sem registro?

- É.

- Uns três anos.

- Eu já faz quatro. Só bico.

- Igual eu. Já vendi cartela de bingo, confecções, fita K-7. Até pão feito em casa eu já entreguei de bicicleta. Agora tô ajudando um amigo a construir uma casa. Não manjo nada. Fico o dia inteiro empurrando carriola e carregando balde de massa.

- Eu tô recolhendo jogo de bicho. O duro é que nunca fui bom de moto. Já passei cada sufoco. A gente tem horário. Sabe como é, né?

- Me avisa quando você for sair deste trampo.

- Tá a fim de encarar?

- Não, é pra um sobrinho meu. O cara é bom de moto e fica o dia inteiro coçando lá em casa.

- Tá, mas do jeito que a coisa anda, acho que não vou sair tão cedo.

- O que você fazia? Qual era a tua profissão de verdade?

- Jogador de futebol.

- Cê tá brincando?

- Não, é sério.

- Jogou onde?

- Interior de São Paulo.

- Em que time?

- Num monte. No Bragantino, Marília, Garça, Linense, Jaboticabal, Paraguaçuense...

- Você jogou no Bragantino?

- Mas saí um pouco antes do Luxemburgo chegar. Lembra daquele time que foi campeão paulista em 90? Tinha o Mauro Silva, Alberto, Mazinho, Gil Baiano, o Tiba...

- Lógico que lembro. Ganhou do Novorizontino na final. Gol do Tiba.

- Pois é. Joguei com aquele pessoal todo.

- Sério?

- Só que fui dispensado um pouco antes. Mas me considero um campeão paulista.

- Como é que é teu nome?

- No futebol a turma me chamava de Índio.

- Não vai me dizer que você é o Índio que jogou no Coritiba, que fez o gol do título brasileiro de 85, na final com o Bangu, no Maracanã?

- Não, aquele é o meu xará.

- O Londrina também tinha um...

- Não, nunca joguei lá.

- Já sei. Você é o zagueiro Índio que começou aqui, no Grêmio Maringá, e virou Ademir no Atlético Mineiro.

- Também não. Este é bem mais novo do que eu.

- Ah, me desculpe, mas não tô lembrado de você.

- Lembra a final do Paulistão de 85?

- Se lembro. O meu São Paulo detonou a Portuguesa. O Cilinho era o treinador. Tinha o Muller, o Silas, o Sidnei... Um timaço. Mas, o que é que tem a ver?

- Joguei a preliminar daquela decisão.

- Como é que eu vou me lembrar de preliminar de decisão?

- Cara, o Morumbi estava lotado. Fiz uma jogada pela lateral...

- Você jogava de lateral?

- Na direita.

- Então você é o Índio que começou no Santos, passou pelo Palmeiras, foi para o Goiás...

- Não, não. Este é outro. Deve estar jogando ainda. Mas como eu estava falando, avancei pela lateral passei por dois e cruzei na medida para o nosso centroavante fazer de cabeça. O Morumbi veio abaixo. Acho que fui um injustiçado. Cruzava melhor do que o Cafu.

- Grande vantagem cruzar melhor do que o Cafu.

- Acho que perdi pelo menos uns quinze anos da minha vida atrás da bola. Não tenho nem a 7ª Série.

- Não esquenta, não. Pelo menos você conheceu muita gente. Valeu como experiência de vida. Melhor do que eu. Fiquei afundado nesta cidade, conheço meio mundo aqui e não consigo um trampo de 300 paus.

- Você trouxe referências?

- Um monte. Mas acho que não vou conseguir emprego nem com o prefeito indicando.

- Tem que ter fé.

- Dê uma olhada para trás. Tem mais de cinqüenta na fila. Como é que você vai competir? Pode crer que tem cara formado aí atrás.

- Formado e que fala inglês.

- E morou nos Estados Unidos e na Europa.

- E não tem mais que 25 anos.

- Vou cair fora da fila.

- Agüenta aí.

- Quer um conselho: sai da fila também. É perda de tempo.

- Não, vou esperar. Vai que o cara lembra de mim.

- Esquece. O que tem de Índio jogando por aí e você é o Índio mais desconhecido de todos. Eu, que acompanho futebol, não me lembro de você. Imagine se eles vão saber quem você é. Além do mais, eles não estão precisando de gente pra cruzar bola.

- É, vamos embora. Tem uma loja de calçados que tá precisando de um vendedor e um faturista.

- Vendedor e o quê?

- Faturista.

- Vamos lá que eu vou pedir esta vaga de vendedor. Cê foi campeão alguma vez?

- Só de torneio início. Mas na 2ª Divisão Paulista nosso time chegou entre os quatro.

- Existem pessoas que nasceram para ser campeãs. Outras, não. Entram somente como figurantes.

- É a vida, meu caro, é a vida.

(livro Da minha janela, publicado em 2003)

Fontes:
http://blogdodepaula.blogspot.com/
Desenho = http://jardimdeurtigas.blogspot.com

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