quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

José Feldman (Espelho da Alma)


I

Antes de começar a narrar a minha odisséia, creio que devo me apresentar, para que não imaginem ter eu saído de algum livro de conto de fadas.

Meu nome é Zwaig Ramcharran. Apesar de ser filho de mãe norueguesa, nasci nas Bahamas. Desde cedo, senti uma tendência aquém do normal para a pintura, uma facilidade enorme para realizar a combinação de cores, dando a impressão de que meus quadros criavam vida.

Comecei a dedicar-me desde cedo a esta arte e, senti-me muito influenciado por Ben Nicholson(1) , inglês de Buckinghamshire (2), filho do já pintor William Nicholson. Ben foi considerado um dos maiores expoentes da arte não figurativa da Inglaterra, criou obras abstratas, tratadas por vezes, como baixo-relevos, mas também pintava paisagens e naturezas mortas muito estilizadas, oferecendo jogo de cores purificadas ao extremo.

Aliás, para não estender-me muito no assunto, o qual acredito não ser de vosso interesse uma aula de pintura, encerro esta explanação com uma frase marcante de Nicholson, ao menos para a minha pessoa: “Os problemas de que trata a arte abstrata ligam-se a encontro de forças e, por conseguinte, toda solução em que nos detemos exerce influência sobre todos os equilíbrios de forças. Trata-se de uma partida de futebol entre o Arsenal e o Clube de Corridas ou do movimento dos astros”.

Graças a este meu dom, fui galgando cada vez mais a escala dos pintores do século XX, expondo em museus da América do Norte, América Latina e Europa, rendendo-me, pois, certa compensação financeira e, estando eu com 35 anos de idade, resolvi procurar um lugar tranqüilo para me dedicar à pintura e, ao meu hobby, a eletrônica.

Morava numa casa simples de um quarto apenas, em Estocolmo, Suécia, localizada na Grev Magnigatn, que fazia esquina com Riddargatan. Entretanto, sentia que a casa já era pequena. Portanto, graças à venda de alguns quadros na exposição de arte e artesanato de Liljevalchs Konsthall(3) , finalmente pude cumprir o meu sonho de um lugar sossegado, comprando um terreno em Riddarholmen, beirando o lago Malaren, um lugar quase que totalmente isolado, excetuando-se o grande movimento aos finais de semana devido a proximidade do cemitério Riddarholmskyrkan, ocasião tal, que aproveito para ir às confeitarias no centro de Estocolmo para comer o famoso “smorgasbord”(4) e degustar um bom vinho. Esta é uma oportunidade para percorrer a cidade, atualizando-me de novidades no mundo da arte da eletrônica.

II

A minha história começa na terça-feira, no período da manhã, quando eu me mantivera ocupado tentando montar um conversor térmico, para fornecer maior calor à casa, pois sentia que nesta época do ano, somente a lareira seria insuficiente, além do fato de que não estava ambientizado num país frio como a Suécia e eu ser originário de um país de clima quente.

Estava absorvido nesta montagem – eram tantos fios, pólos de contato, relés, resistência, etc. – que comecei a perder a paciência e abandonei tudo de lado, retornando às minhas pinturas.

O quadro em que eu me empenhava no momento era uma espécie de auto-retrato de corpo inteiro, no qual eu colocava-me refletido num espelho e, na frente, meio de lado, uma figura de costas, que seria eu mesmo, o qual devo confessar sem falsa modéstia, um retrato fiel de mim mesmo. Entretanto, o que eu não encontrava, era uma cor que desse mais vida – não desejava um retrato simplesmente – mas sim algo que mexesse com as emoções das pessoas, despertasse seus sentimentos, uma pintura viva, na qual eu seria o Dr. Viktor Frankestein, como idealizou Mary Shelley. Seria minha maior obra-prima.

Enquanto eu refletia sobre o que utilizar, peguei meu cachimbo bengt “plumb”(5) , o qual havia ganho de presente de um oficial do exército, em umas de minhas vernissages em Londres, Inglaterra, abri uma caixinha de tabaco dinamarquês “neeskens”, meu preferido por não ter nenhum odor, de modo a que o ar não ficasse muito carregado em meu atelier, já tão carregado pelo cheiro das tintas à óleo.

Estava eu perdido em reflexões sobre a pintura, quando a réstia de luz que penetrava em meu atelier principiou a desvanecer-se. Mirei através do vidro da janela e percebi que o céu, frequentemente sombrio, tornava-se escuro, prenunciando o início de uma tempestade (algo muito raro na Suécia), mas o clima encontrava-se instável em virtude do aquecimento global - obra do homem. passei a trava de segurança no batente da janela, trancando-a, para que, se porventura houvesse um vento violento, não penetrasse no atelier, derrubando tudo.

Quase que instantaneamente, uma saraivada de trovões estourou no céu, cujos raios brilhavam intensamente, iluminando-o, como se fosse o "Gotterdamerung", a batalha final dos deuses realizada em solo sueco.

Repentinamente, uma descarga elétrica se fez sentir nos fios de alta tensão dos postes enfileirados na rua, produzindo um clarão de grande intensidade e, tudo que se encontrava ligado na eletricidade, estalou. as luzes se apagaram e um cheiro de queimado volatizou-se pelo ar - fios queimados e retorcidos.

Confesso que eu, acostumado a tempestades em vários lugares do mundo, a observar o encanto das forças da natureza, senti um calafrio repentino percorrer-me a espinha, mas prevenido sobre estes fenômenos repentinos neste local isolado da cidade, havia-me preparado, colocando no centro de cada compartimento da casa uma lamparina, algo arcaico, mas eficiente.

Peguei a caixa de fósforos que havia utilizado para acender o cachimbo e acendi a lamparina da sala. No instante que meus olhos se acostumavam lentamente com a escuridão que momentaneamente havia me cegado, o ruído de um estalo no assoalho na sala contígua me assustou e, um suor frio escorreu em minha testa. Fiquei paralisado.

Agucei os ouvidos, mas nada mais ouvi. Senti minha pressão voltar ao normal e, raciocinei que estava a me deixar levar pela imaginação - uma casa isolada, próxima ao cemitério e, como se não bastasse, tivera a maldita idéia de ler na noite anterior o livro "Drácula", de Bram Stocker.

Não, não podia deixar que minha imaginação me dominasse. Evidentemente é isto que ocorreu...eu estava muito sozinho.

Espere!!...Um ruído no assoalho novamente. Passos...não! Não é minha imaginação! Alguém ou alguma coisa está na casa.

Procurei me controlar e dirigi-me lentamente até o criado-mudo, de onde tirei da gaveta uma pistola semi-automática Maanlicher, a qual ganhei de um oficial austríaco, quando expus em Viena. Na verdade, era uma pistola para colecionador, já que há mais de 20 anos não se fazem mais suas balas especiais de calibre 7,65. Aliás, a última vez que uma arma como esta foi empregada, foi na II Guerra Mundial. Contundo, a minha ainda possuía em seu tambor as dez balas originais, fabricadas em 1905, raridade. Mas, para auto-defesa, tem sua validade.

Peguei a arma e andei sorrateiramente, sempre beirando a parede, para não ser apanhado de surpresa pelas costas.

Novo ruído! E na semi-escuridão de meu atelier pareceu-me divisar uma sombra passando célere. Com a arma na não, tremendo entre meus dedos gelados, avancei devagar e, numa mesa ao lado peguei um farolete e fui em direção à soleira da porta entreaberta - alguém estava lá - eu sentia.

Procurei raciocinar. O jeito era fazer como aqueles filmes policiais americanos, meter o pé na porta e entrar com tudo. É claro, seria um ato absurdo, pois se alguém estivesse me esperando, me acertaria facilmente.

Mas não podia ficar naquela posição de presa acuada. Suspirei para me recompor e meti o pé na porta, iluminei o atelier com o farolete e gritei: "Pare aí mesmo ou atiro!"

Talvez tenha sido uma entrada em cena muito cinematográfica, mas não havia mais nada que passasse por minha cabeça - aliás, devo admitir, que naquele momento, nem cabeça eu tinha.

O farolete iluminou tudo - não havia ninguém. Gelei!

Eu estava em minha casa, e eu era a caça.

Gritar? Para quem? Só haviam os mortos do cemitério.

Maldita hora que aluguei esta casa isolada do mundo! Estou com os nervos à flor da pele.

Lentamente, tornei a ficar de costas para a parede e fui andando como um gato pelo atelier, apesar de minhas pernas estarem tão trêmulas, que me faziam cambalear.

Com respiração arfante, andei, passo a passo para o canto da sala. A janela estava trancada, como eu havia deixado antes da tempestade e, só fechava por dentro.

Alguém estava em casa! Girei o farolete pelo ambiente.

A estante de pincéis e tintas, a caixa de ferramentas, a prateleira de porcas, parafusos e fios, o conversor térmico estourado e enegrecido, caído junto ao cavalete, provavelmente devido à descarga elétrica.

O quadro...o...o quadro!

Minhas pálpebras ergueram-se completamente e com os olhos esbugalhados de pavor fitei o quadro. O farolete escorregou de minha mão, batendo em meu sapato com um ruído surdo e rolando até próximo ao conversor. Minha boca entreaberta de espanto.

O quadro! - A imagem de mim mesmo que havia desenhado no espelho...sumira. Só ficara o espelho e a imagem de costas.

Senti um terror enorme - se eu fosse um gato de sete vidas, teria perdido ao menos umas seis naquele momento.

Um ruído à minha direita.

Aterrorizado, quase desfalecido, inclinei-me para a direita e o vi. Nem sei dizer o que senti...era a visão mais tétrica que jamais poderia ter imaginado em toda minha vida, em pensamento ou pesadelo. Lovecraft, Hoffman ou Stocker eram simplesmente infantis diante de que eu via.

Encostei-me na parede e senti-me escorregar pelo assoalho.

Ele estava parado tranquilamente à minha frente, fitando-me nos olhos, como se esperasse uma reação minha, pior do que qualquer filme ou história de terror, pior do que tudo que se pode criar. Estava lá a encarar-me.

E, então, ergueu as mãos. Desesperado, apontei a arma para ele.

Um raio! Uma luz! Um buraco vindo do nada! Tudo rápido como um relâmpago.

III

O Museu Liljevatchs Konsthall estava apinhado de gente. Fotógrafos, jornalistas, artistas e críticos estavam todos reunidos para admirar o quadro que fazia sensação. O diretor do museu, cedia uma reportagem, extasiado, aos repórteres:

"Sentimo-nos honrados em realizar esta exposição em nosso museu em homem ao desaparecido pintor Zwaig Ramcharram. Como já puderam comprovar anteriormente, seus quadros são de uma vivacidade ímpar. E, hoje, temos a imensa satisfação de revelar-lhes este fantástico quadro, o qual podem perceber nele a imagem do próprio artista refletida no espelho, com uma expressão de angústia, como se estivesse vendo uma coisa sobrenatural. Podemos até sentir em seu quadro, uma réplica de seu atelier, o desespero, a dor, a arma que empunha em sua mão, que parecem tão real. Se observarem dentro de seus olhos, parece que ele está nos vendo, com tanta intensidade, que chega até dar um arrepio. As cores são vivas, que parece que ele está vivo dentro do quadro, diante de nós. Esta é com certeza sua maior obra-prima, onde ele mexe com nossos sentimentos. Lamentavelmente, desde aquela semana de tempestade de raios, Zwaig desapareceu misteriosamente, mas ele sempre será imortal entre nós. Descerro para vocês o quadro "Espelho da Alma".
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Notas
1 1884 – 1982.
2 Condado no Sul da Inglaterra
3 Liljevalchs Konsthall é uma galeria de arte, localizada na Ilha de Djurgarden, em Estocolmo, Suécia. Inaugurada em 1916, é uma mistura da arte moderna e a tradicional.
4 O Smorgasbord é um buffet elaborado com diferentes ingredientes típicos da cozinha sueca. A palavra sueca "smörgåsbord" é composta pelas palavras smörgås (sandwich) e Bord (mesa). Se costuma servir em reuniões familiares ou em festejos, sendo servido nos restaurantes como um buffet. Um tradicional smörgåsbord consiste em alimentos quentes e frios, separando os pescados das carnes. Indispensáveis são o pão (diversos tipos) e a manteiga e queijo, arenque, salmão, almôndegas, salsichas e patê além de outras especialidades suecas. A idéia é consumir muitas proteínas, por isso os acompanhamentos como batatas, arroz ou saladas estão geralmente ausentes. Os comensais se servem por si mesmos e se fazem até cinco rodadas. Costuma ser acompanhado com cerveja e aquavit (bebida destilada escandinava, com 40% de álcool, aromatizada por ervas.
5 Bengt = cachimbo curvo, tipo utilizado por Sherlock Holmes, ou por marinheiros. Plumb = marca de cachimbo fabricado na Inglaterra.
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Fontes:
Feldman, José. Antologia de Contos para Curar Dorminhocos.
Imagem = http://www.angela.amorepaz.nom.br/

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