quinta-feira, 26 de março de 2009

Affonso Romano de Sant'Anna em Xeque



Affonso Romano de Sant’Anna conversa sobre os universos paralelos da mente do escritor, em entrevista para André Azevedo da Fonseca

Com tanta informação circulando no planeta nos veículos de comunicação, por que ainda precisamos de literatura para pensar sobre a condição humana?

Por uma razão muito simples: a literatura é uma espécie de parábola da realidade e da condição humana, e através das parábolas você espelha muito mais a realidade do que através de análises objetivas e científicas. Mesmo porque um dos efeitos da parábola — ou seja, da ficção e da poesia — é solicitar da cabeça do leitor que ela se ponha também em movimento para articular o imaginário. Então é uma obra a muitas mãos, uma leitura a muitas mãos.

Mas através das notícias a mídia também parece capaz de oferecer essas parábolas. Por exemplo, a cobertura jornalística sobre o maníaco do parque ofereceu ao imaginário da cultura de massa um personagem quase literário, pronto para encarnar um novo mito, ou uma atualização de um mito. Não há uma conversa entre real e imaginário na imprensa?

Sim, a mídia hoje é o grande romance de folhetim. A novela é apenas uma parte de um grande romance de folhetim que começa no jornal de manhã, continua nos programas infantis, nos desenhos animados, nos esporte e nas mesas redondas, no Jornal Nacional, no Fantástico. É um mundo como espetáculo, como representação. E isso provoca até situações muito intrigantes, porque o indivíduo que não está equipado para decompor esses elementos que são atabalhoadamente jogados na telinha, ou que se amontoam no jornal, ele tem uma visão das coisas muito surrealista. Eu tenho a impressão que grande parte do povo brasileiro mistura o Fantástico com Jornal Nacional, com a Bíblia, e faz um "melê" que é difícil deslindar exatamente.

Às vezes, quando penso em livros, me vem a idéia que o leitor e o escritor não passam de sujeitos covardes que, por não ter coragem de experimentar a vida de forma carnal e se entregar às aventuras reais, se contentam em ser voyeurs de personagens fictícios. Paulo Freire ensinava que nos alfabetizamos não apenas na leitura das palavras, mas na leitura do mundo. Será que um dia conseguiremos nos livrar da mediação dos livros e aprender a ler o mundo diretamente, sem esse intermédio simbólico?

Eu colocaria de outra maneira. A escritura e a leitura são modos de extensão da vida, de complementação da vida. Eu não posso ir à Lua. Julio Verne também não podia. Mas ele descreveu a viagem à Lua. Julio Verne não podia fazer uma viagem submarina. Mas ele imaginou como seriam as 20 mil léguas submarinas. José de Alencar, ou um dos autores românticos, não viveram na Idade Média mas viajaram lá através da imaginação. Mesmo o romancista que narra histórias fantásticas está dilatando o seu universo e dilatando o universo dos outros. As pessoas não cabem dentro do seu próprio corpo. Por isso elas sonham de noite. Como elas não cabem dentro do próprio corpo elas têm que ler livros e ver novelas. E têm que amar os outros.

O que têm a ver o amor e a idéia de extensão da vida?

O amor é um ato de transferência de você para o outro. Você se muda para dentro do ser alheio. E no caso dos místicos, eles tentam imigrar de vez para a humanidade inteira se fundir com a figura de Deus.

Lembro-me de Schopenhauer quando ele diz que nós, antes de nos materializarmos enquanto animais biológicos, na verdade já começamos a existir quando ainda somos um mero desejo expresso na troca de olhares de nossos pais. Na verdade ele diz que as idéias e pensamentos se esforçam para apoderar-se da matéria para se transformar em algo físico, pois no instante mesmo do desejo o real já está sendo construído. A literatura faz isso, não?

É. O real é uma construção. Assim como em um teatro de arena, onde cada espectador está vendo a cena de um ângulo diferente, o real é algo sempre construído e desconstruído. O que a arte faz sistematicamente é destruir e reconstruir a realidade. Veja as peças de Shakespeare: de repente, como tem no Rio agora, e ocorre de vez em quando em várias partes do mundo, vem um diretor e apresenta um Hamlet, um McBeth totalmente diferente e às vezes até oposto e contraditório ao que seria o Shakespeare original. Não existe um Shakespeare original, assim como a realidade em si é uma coisa que nós temos que aprender a construir e ler diariamente.

Gostaria que você falasse um pouco das diferenças que no livro A sedução da palavra (Letraviva, 2000) você estabelece entre o autor e o escritor.

Todo mundo pode ser autor. Qualquer pessoa pode dizer: ah, vou escrever a vida no meu sítio, ou escrever a história da minha tia, ou a história da minha cidade, do meu cachorro; um médico pode fazer um livro de medicina… todos são autores. Agora, o escritor é alguém que, além de ser autor, se dá ao luxo de ter heterônimos, pseudônimos, pode multiplicar a sua personalidade. O escritor é alguém que tem um trato com a linguagem muito especial. Ele constrói as coisas a partir da linguagem. Ele sabe que as coisas não existem antes da linguagem dar consistência a elas. Ou seja, a diferença entre um escritor e uma pessoa comum é que a pessoa comum diz: minha vida daria um romance; e o escritor faz um romance. Porque vida de ninguém é um romance. A vida das pessoas é interessantíssima, mas só viram romance não se forem simplesmente escritas, mas se forem muito bem escritas. E para isso tem que ser escritor.

No processo de formação do escritor é preciso que ele leia porcaria?

O escritor lê porcaria até sem querer, né? Assim como a gente assiste a filme ruim propositalmente, e há alguns filmes ruins que são ótimos, como há romances e poemas kitsch que são ótimos, volta e meia você se surpreende cantando tangos e boleros, né? O kitsch e o mau gosto fazem parte da realidade. E a formação nossa, tanto na hora de colocar um vestido, escolher um sapato, quanto na hora de escolher um bom livro, um bom concerto, é saber distinguir o que é a coisa kitsch e o que é a coisa mais bem elaborada, o que é o chamado mau gosto e o que é um gosto mais sofisticado. Então essa questão passa por tudo. Da escolha do que se vai comer no restaurante ao livro de poemas que vamos ler.

Metade do autor é o leitor?

Metade. E às vezes há casos até curiosíssimos de autor que é um leitor voraz, um leitor insaciável, como é o caso do Borges, que vivia dizendo: enquanto outros se orgulham dos livros que escreveram, eu me orgulho dos livros que eu li. Porque para ele escrever é uma forma de ler e reler.

Nas obras deles, Marquês de Sade arreganhava elogios à depravação total; Thomas de Quincey defendia que assassinatos eram obras de arte; os poetas da beat generation faziam apologia ao uso desenfreado de drogas. A literatura pode ser perigosa como dizem que é a TV? Ou, pelo contrário, num outro extremo, não há perigo algum nesses atrevimentos literários?

Tudo pode ser perigoso ou não. A palavra farmácia vem do grego farmakon, que significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Então quando você entra na farmácia, você acha veneno e remédio. Se tomar alguma coisa errada você pode morrer, se tomar a coisa certa você pode se curar. Nesse sentido a literatura, como a música, não é em si nem boa nem má. Pode potencializar nas pessoas aquilo que elas têm numa ou noutra direção. Por exemplo, na música você pode pensar assim: Mozart é uma coisa sublime, rock é coisa pesada; uma é angelical, outra é diabólica. Isso é um estereótipo, porque se algumas pessoas já cometeram violência e crime "por causa" do rock, nem todas as pessoas cometem crime e violência por causa do rock. E ao contrário, muitos dos carrascos nazistas gostavam de Bach, de Mozart. Então... é o farmakon.

Essa do farmakon foi boa! Vamos a próxima. Livro é muito caro. Hoje a média é R$30, ou seja, uns 10% do salário mínimo — isso se o Lula passasse o mínimo para R$300. Você defende o direito de que quem não tem grana possa "xerocar" os seus livros?

Realmente, o livro dentro dos padrões brasileiros é muito caro. Até na China, que tem 400 milhões de leitores, o livro custa entre R$2 e R$3. A questão do xerox tem sido debatida no mundo inteiro. Eu participei de vários seminários internacionais, sobretudo quando dirigi a Biblioteca Nacional. Cada país tenta defender uma estratégia determinada: alguns colocam uma taxa na produção da máquina que vai reverter como direito autoral para os autores, outros têm outras estratégias. No caso brasileiro especificamente, não há como impedir, por mais que se aconselhe. O professor quer dar um livro, ainda que ele recomende a compra, mas o livro está esgotado. Como fazer? O professor não vai dar aula sobre aquele livro? Por outro lado, em muitos livros você precisa só de um capítulo. Não precisa do livro inteiro. Então é uma questão muito complexa. Não de trata de proibir. Trata-se de estabelecer uma política mais ampla disso.

Você deu aulas nas Universidades da Califórnia e do Texas, nos EUA; na Universidade de Colônia, na Alemanha; e na Universidade Aix-en-Provence, na França. Como essas coisas são discutidas por lá?

Você entra numa universidade americana e em cada andar da biblioteca tem máquinas de xerox. Você compra um cartãozinho na entrada e copia quantos livros quiser, quantas páginas quiser. É só comprar e renovar o cartão. Eu já saí de bibliotecas americanas com "toneladas" de xerox.

Mas como eles lidam com a questão dos direitos autorais neste caso?

Eles têm um processo. Aquele dinheiro cobrado pelo xerox vai reverter de alguma maneira para uma política do livro, para o autor.

É uma boa idéia.

É necessário rever isso tudo. Por exemplo, em alguns países da Europa o autor ganha pelo fato de em uma biblioteca pública alguém tirar o livro dele para ler. Cada leitor da biblioteca pública é computado e o autor ganha uma comissão. É uma coisa interessante.

Você conhece um conceito que se chama copyleft?

[Sant’Anna me olhou meio de lado e vi surgir uma interrogação sobre sua cabeça.]

Esse termo inventado por um hacker americano é uma inversão da idéia de copyright.

[O escritor percebe imediatamente a idéia e se diverte com o trocadilho, soltando uma risadinha. Mesmo assim prefiro explicar melhor]

É um tipo especial de licença que ao mesmo tempo em que garante a propriedade intelectual, autoriza expressamente que os leitores reproduzam a obra à vontade, desde que não seja para fins comerciais. Se uma editora quer comercializar a obra, paga os direitos autorais. Se é para uso pessoal você pode comprar o livro ou então copiá-lo gratuitamente. A idéia é que, na verdade, quanto mais a obra circula, mesmo que seja através de cópias, mais ela vende. De cada vinte leitores que copiam, seguramente uns três ou quatro vão acabar comprando, porque ao gostar do texto não vão querer guardar as folhas grampeadas do xerox, mas sim a cópia durável e de bom acabamento do livro.

Claro.

O que acha dessa idéia?

É uma proposta interessante. Agora, embutida nessa questão tem um outro problema que acho riquíssimo e que foi exposto implicitamente num filme que se chama "O Homem que copiava". Eu até escrevi duas crônicas sobre isso, dentro de um conjunto de análise que eu estava fazendo da arte contemporânea, sobre a questão da cópia. O problema da cópia é interessantíssimo, porque a sociedade em que vivemos, que é chamada de pós-moderna, instituiu perversamente a idéia de que o autor não existe. Qualquer um pode se apoderar de qualquer coisa. O sujeito não existe. Isso, filosoficamente, redunda em uma tragédia epistemológica, porque se o sujeito não existe somos todos objetos. Eu não gosto de uma cultura onde todos são objetos. O esforço é para que as pessoas se transformem em sujeitos.

Conheço outra linha de discussão: o autor não existe porque o que ele faz é pouco mais do que copiar e cruzar vários outros autores que estão dentro de seu universo mental. Tom Zé chama isso de estética do plágio, ou estética do arrastão. Para ele, nós somos o nosso contexto, somos a nossa circunstância. [a observação ia ficando longa, e o entrevistado já ficava inquieto para falar]. Não será por mero acidente que conseguimos escrever algo novo?

Aí tem várias coisas interessantíssimas. Tem um lado que é verdade: na natureza nada se cria, tudo se transforma. É uma lei da Química. Por outro lado, dentro do folclore, da literatura, as histórias são recriadas. Você encontra pedaços da lenda do Rei Arthur em Mil e Uma Noites, em Decameron e em vários lugares. Agora, isso é uma coisa, é um fato real — o processo de metamorfose, de transformação que existe na natureza, na cultura. Outra coisa é a cultura da leviandade que a pós-modernidade cultiva. Ou então certas coisas que são veiculadas através da chamada estética do falso.

O que é isso?

Autores que fazem romance jogando com a idéia da falsidade, levantando uma questão que em última instância é a seguinte: alegam que numa sociedade se mente muito, numa sociedade tudo é falso, tudo é fake. Então a pessoa produz uma obra falsa, uma obra fake. Então eu digo: é juntando mentira a mentira que vamos combater a mentira? É juntando falsidade a falsidade que nós vamos combater a falsidade? Em termos de arte e escatologia, é juntando merda a merda que nós vamos sair da merda?

O que é uma obra falsa?

Pois é. O que é uma obra falsa?

Ou o que seria a estética do falso?

A estética do falso pretende que não há autoria. Há um deslizamento constante através do qual todos participam, que tem seu lado verdadeiro. Quando entra na moda usar um tipo de calça, de camisa, todo mundo se apropria daquilo. Mas estou desenvolvendo já há algum tempo um raciocínio que, ao lado de reconhecer o que há de natural nisso, há um outro lado perverso: a questão da apropriação. Em arte se usa muita técnica de apropriação, mas os bandidos também usam. Como um caso de um artista na França que resolveu fazer uma exposição chamada "Tudo Aquilo que Roubei de Vocês". Ele roubou vários objetos dos amigos e fez uma exposição. Os amigos não gostaram e chamaram a polícia.

Aí surgiu uma discussão, que envolveu Ministro da Cultura e Ministro da Justiça na França, se roubar é um ato artístico, um gesto estético. Até que ponto é apropriação, ou quem sabe, que é a minha ótica, a gente não deve analisar isso tudo dentro de um contexto? Analisando dentro de um contexto gestaltiano mais amplo, você entende Fernandinho Beira-Mar, o narcotráfico, a violência da nossa sociedade e a falta de caráter geral.

Entende ou justifica?

Entende. Justificar jamais. A grande ansiedade do ser humano é entender as coisas, pelo menos. Chega alguém e mata outra pessoa, você fica horrorizado, você quer entender por que matou, tem que ter uma causa, tem que ter uma razão! Não vai justificar, mas tem que entender.

Patrick Grainville, em entrevista a Betty Milan, diz que é muito importante que o escritor tenha um ofício qualquer fora da literatura, porque senão ele fica maluco, fica muito distante do mundo e se perde. O que você acha disso?

Isso é um problema dele.

Perguntei isso consciente desse contexto em que vivemos, no qual o escritor, com as raras exceções, não consegue viver de sua obra. Então…

Eu adoraria ficar só escrevendo poesia, se me financiassem por aí. Adoraria enlouquecer escrevendo poesia. Não teria nenhum medo. [nesse momento ele fez uma pausa retórica]

Você tem uma sugestão para…

Ao contrário. Quando eu trabalhava em banco, e era estudante de letras, ficava possesso porque estava jogando meu tempo fora em vez de estar escrevendo literatura. Esse Patrick pode voltar a trabalhar no banco porque eu já passei por essa experiência.

[Enquanto ria, lembrei sofregamente que, sobretudo quando entrevistamos escritores, é uma peleja para discernir quando eles já disseram tudo, quando querem deixar a coisa ambígua, ou quando o momento de silêncio é apenas uma pausa retórica na exposição do raciocínio.]

Qual a sua sugestão para pensar esse problema de o autor não conseguir viver de sua obra?

Olha, aí tem duas coisas. Uma: em qualquer profissão é complicado. Jovem arquiteto, jovem médico, jovem advogado, jornalista, costureiro, estilista, todo mundo tem uma certa dificuldade. A quantidade de pessoas que abrem lojas e fecham é muito grande. Então há uma dificuldade que no caso brasileiro se agrava porque estamos em recessão há trinta anos. Agora, nos países que têm uma estrutura econômica e social mais estável é possível viver de literatura, não só através do livro, mas de uma série de estímulos que governo, fundações e instituições culturais e fornecem — como bolsas e auxílios de pesquisa. Eu mesmo estive em uma meia dúzia de bolsas dadas por fundações estrangeiras. A última foi em Bellagio, na Itália. Eles tinham pago umas vinte pessoas no mundo inteiro para ficarem um mês, sem nenhuma preocupação, para executar um projeto, seja um livro, uma pesquisa etc. Tudo pago. Tinha escritores lá, e eu fui para terminar um livro que eu estava fazendo. E isso é muito comum na Europa e nos Estados Unidos.

Dá para adaptar essas idéias no Brasil?

Quando eu dirigi a Biblioteca Nacional eu criei um sistema de bolsas de escritores dando umas dez ou quinze bolsas por ano para o escritor terminar o trabalho dele. Criei o sistema de financiamento de tradução de autores brasileiros no exterior. Umas trinta ou cinqüenta obras traduzidas no exterior por ano. Então há mecanismos. Se você ganhar da prefeitura daqui, ou de uma fundação, uma bolsa durante um ano ou dois anos para uma pesquisa ou um livro, você estaria vivendo de literatura.

Mmmmmm, seria um sonho! Há escritores que só escrevem sob pressão, e há mesmo quem diga que a calmaria e a estabilidade não é criativa. Orson Wells tem disse aquela famosa frase, dizendo que enquanto a Itália cheia de guerras gerou a Renascença, a pacata Suíça produziu apenas o relógio cuco. O que acha disso?

A questão, outra vez, é diversificada, é complexa. Há pessoas que só conseguem funcionar, para tudo, sob pressão. Eu conheço donas-de-casa que resolvem experimentar em um jantar — onde vêm convidados! — pratos que nunca fizeram, sem saber se vai dar certo. A Marina [Colasanti] é assim.

Muito bom isso.

A tensão de fazer um negócio que nunca fez, que é desafiador, mobiliza. Como o ladrão que está correndo da polícia, ou correndo de um pitbull, ele pula um muro de cinco metros de altura. Se não tiver o pitbull, ele não pula nem um metro. Então há pessoas que precisam dessa adrenalina, outros não. Tive até duas experiências curiosas com isso. Uma vez eu estava em um programa de jovens escritores em Iowa, nos Estados Unidos, em uma dessas bolsas. Eram quarenta escritores do mundo inteiro. Dois terços diziam que não conseguiam escrever porque tinham saído exatamente de seus países onde viviam sob pressão, tendo que trabalhar, cuidar da família, não sei o quê. Ficaram num lugar só para escrever e não conseguiram escrever. Eu levei um projeto para escrever, que era a minha tese sobre Drummond, e fiz a tese normalmente; enquanto um dramaturgo turco, quinze dias antes de terminar esse período de nove meses, não tinha conseguido escrever uma linha. Já em Bellagio, onde fui mais recentemente, eu tinha levado um projeto de ensaio; mas aquele clima de paz, de beleza, de encantamento era de tal ordem que eu joguei aquilo pra lá e fiquei um mês só transando poesia.

Em Canibalismo Amoroso você desenvolve um conceito muito interessante ao considerar o texto como uma "manifestação onírica social". Você poderia falar um pouco sobre isso?

A idéia básica desse livro — na verdade é uma idéia básica para se entender a literatura — é que o escritor é uma espécie de sonhador de utilidade pública. Ele fantasia coisas que não são apenas fantasias pessoais, mas fantasias comunitárias. Ele é apenas, como propunha Ezra Pound, uma antena que está captando algumas coisas. Daí certos livros terríveis, O médico e o monstro, os livros policiais, etc. Por que as pessoas lêem isso? Você pode pensar: o autor devia ser um neurótico. Mas por que milhões de pessoas lêem Agatha Christie? Porque através do crime e do mistério elas estão elaborando os seus fantasmas. Então a literatura e a arte em geral é o lugar de elaboração de grandes fantasmas de fantasias.

Ops, eu pulei uma pergunta. Antes de falar de Canibalismo Amoroso eu queria ter conversado sobre o movimento antropofágico. Depois da minissérie da Globo, todo mundo comemora a aventura de Oswald e Mário de Andrade. Apesar de reconhecer a importância da Semana de 22, sei que você tem críticas ao modernismo. Você pode falar sobre isso?

Eu tenho várias considerações. Primeiro, o modernismo foi muito importante mas cometeu vários equívocos, várias injustiças. Ensinou uma geração a ter preconceito contra o século 19, contra certos poetas parnasianos, simbolistas, contra a literatura romântica, e isso por um vezo futurista de querer ser diferente do outro. Entende-se perfeitamente que isso tenha ocorrido num primeiro momento. Agora, além disso eu tenho uma outra colocação sobre a Semana de Arte Moderna. É que à rigor ela não aconteceu em fevereiro de 1922. Ela não só começou a acontecer muito antes disso, com Brás Cubas, com Sertões de 1902, com Lima Barreto e por aí a fora, como em 1922 aconteceu uma certa coisa da qual o país não tomou o menor conhecimento na ocasião. Mas aquela coisa tinha uma força original que foi captada por outras pessoas. Então, a Semana da Arte Moderna começou a acontecer, sistematicamente, depois. Ou seja, todo autor que estudou um autor modernista é um modernista, ajudou a fazer o modernismo. Quando alguém analisa Oswald de Andrade, dá interpretação nova, analisa Drummond, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano, é como se estivesse batendo esse bolo que está fermentando, que está crescendo, como se estivesse sendo um acionista de uma grande empresa. E isso chegou a um ponto tal que virou essa novela da Globo. Essa novela foi a apoteose popular de uma semana que continua sendo inventada. O que aparece ali não tem nada a ver com o que foi em 1922. Ou seja, a idéia da Semana é uma idéia em construção. Ela não acontece em 22.

Antropofágica pra valer!

É. Então estou devorando a Semana, fazendo uma "meta-antropofagia" com a Semana. Estou reduzindo ao meu estômago aquela semana que aconteceu.

Em seu livro você defende que o canibalismo é um traço fundamental de nossa cultura. Por quê?

Eu comecei a colecionar notícias policiais envolvendo canibalismo. Que é impressionante. Não é apenas essa coisa imaginária que existe na literatura, ou um ato episódico dos jogadores uruguaios que caíram na neve e começaram a comer os companheiros e tal. Isso existe como um impulso neurótico e Freud consegue explicar de certa maneira essa perversidade oral. E é muito comum. Ainda agora aquele programa Linha Direta vai mostrar um criminoso de São Paulo chamado Chico Picadinha, que pegava as mulheres, sobretudo prostitutas, retalhava, picava e comia; como aquele canibal alemão que pôs um anúncio na Internet porque queria comer uma pessoa e, entre vários candidatos, um se ofereceu realmente e foi devorado por ele. Existe uma coisa, um desvio, uma perversão que no lado mais ameno e mais normal se dá numa relação amorosa, que são grandes "entredevorações".

Sua pesquisa mostra como que na poesia, do parnasianismo ao romantismo, a mulher passou a ser representada de flor a fruta, ou seja, de algo para ser visto a algo a ser comido, do jardim ao pomar. Depois as metáforas passaram a comparar a mulher a animais que o homem deveria caçar se quisesse comer. Essa ligação da culinária e do amor é um traço evidente do canibalismo amoroso.

Sim, faz parte desse canibalismo masculino, como existe um canibalismo feminino. Em alguns animais, alguns insetos, a fêmea é a devoradora; assim como existe um grande mito no imaginário masculino, sobre o qual eu falo no Canibalismo: o mito da Vagina Dentada, o grande medo da grande mãe castradora, como os folclores todos trabalham isso, e como é que até a ficção moderna trabalha isso. O José Rubem Fonseca, por exemplo.

Freud disse assim: "A grande questão para a qual não encontrei nenhuma resposta durante trinta anos de pesquisas sobre a natureza da mulher é a seguinte: o que elas querem enfim?" Você, marido da Marina Colasanti, já tentou esboçar alguma resposta para esses enigmas? Por que tememos tanto as mulheres? O que elsas querem afinal?

Primeiro porque elas são seres superiores. São adoráveis, mais inteligentes. Em segundo lugar, existe uma resposta para essa pergunta do Freud, eu até fiz uma crônica sobre isso, que é uma parábola sensacional que não vai dar pra você contar, porque é muito grande, que remete à lenda do Rei Arthur.

Ah, pode contar!

Ela começa quando o Rei Arthur, ainda jovem, invadiu o terreno de um rei e como punição foi condenado à morte. E o rei falou que ele só poderia escapar da morte se conseguisse resolver a seguinte questão: o que querem as mulheres? Há todo um desenvolvimento disso e a solução que se encontra é uma coisa maravilhosa. O Arthur contou isso para um colega, um dos cavaleiros, que disse: — Eu vou resolver esse problema pra você. Eu soube que tem uma bruxa na montanha que tem a resposta. Esse cavaleiro era belíssimo, inteligente, e então foi lá no lugar do Arthur e falou com a bruxa. — Escuta aqui, tenho um problema e preciso saber: o que querem as mulheres? A bruxa falou assim: — Olha, eu posso te contar, mas tem o seguinte: você tem que casar comigo. Só se você casar comigo eu respondo. E para salvar o amigo, casou com a bruxa. — Vou te contar na noite de núpcias. No banquete a bruxa estava comendo, toda desgrenhada, sem dente, vesga, jogando comida no chão e o pessoal se perguntando: pô ele vai casar com essa mulher? Aí quando ele entrou no quarto nupcial, perguntou: Bom, então me diz agora, finalmente! Estamos casados! A bruxa disse o seguinte: — Eu vou te fazer uma revelação. Eu sou bruxa de dia, mas de noite eu sou outra pessoa. E se transformou numa mulher deslumbrante, a mulher mais deslumbrante que qualquer homem pode imaginar, nem precisa descrever, cada um descreve a sua. E apareceu aquela mulher! Na alcova do cavaleiro! E aí a bruxa transformada na bela mulher disse: — Mas você vai ter que decidir com qual de nós duas você quer ficar, a bruxa ou essa deusa. Aí o cavaleiro, como era um cavaleiro mítico, um herói, de caráter sem jaça, um sábio, disse para ela: — Você decide. Você é que decide quem você quer ser. Então o resultado dessa melódia é: o que querem as mulheres? As mulheres querem ser o que elas querem ser, e não o que os homens querem que elas sejam.

Fale um pouco sobre as estratégias compensatórias pelas quais driblamos nossas frustrações, um assunto que explora bem em sua obra.

O imaginário humano é muito rico, ele desliza muito. Há um princípio básico da psicanálise que continua válido até hoje porque na verdade corresponde até a uma lei da Física e da Química: assim como Lavoisier disse que tudo se transforma, em termos de psicanálise e inconsciente Freud mostrou, entre outras coisas, que nós não suportamos nenhuma frustração. Nós não abrimos mão das coisas; nós substituímos. Então o nosso imaginário vive fazendo substituições. Se você não pode ter uma coisa, troca por outra, consciente ou inconscientemente, dentro de um jogo que a psicologia chama de redução da dissonância cognitiva. Você quer casar com uma mulher, ela não gosta de você, mas você casa com outra, em outras circunstâncias. Mas você tem que "justificar" aquele casamento. Então você diz: casei mas ela é rica né? Ela me dá tudo, e tal, eu não preciso trabalhar... Tem que ter alguma vantagem! Eu trabalho naquela empresa ali, eu não gosto muito não, mas me pagam muito bem. E assim por diante. Então isso existe em relação a tudo. A parte erótica, a parte amorosa, social, econômica...

Proust dizia que muitas vezes o escritor só encontra a sua verdadeira personalidade no texto. Será que isso explica o fato, por exemplo, de uma pessoa escrever coisas maravilhosas, humanistas, mas na vida real ser um crápula, um monstro?

Nós temos várias pessoas dentro de nós. Fernando Pessoa não inventou nada de extraordinário. Ele apenas contextualizou uma esquizofrenia que todos nós temos. Balzac criou tantos personagens que diziam que ele estava fazendo concorrência com os cartórios, de tanta gente que ele tinha criado. Ele era todas aquelas pessoas e também não era. Então o escritor é isso. Aliás isso é até terapêutico. Inclusive no teatro eu acho que isso é mais terapêutico ainda. Quando você faz psicanálise, às vezes você pode entrar para a terapia de grupo. Você vê nos seus colegas uma série de reflexos seus que te ajudam. Então você pode tratar-se através do psicodrama, cada um representa uma série de obsessões, de fobias, de fantasias e põe aquilo para fora em termos de catarses que exorcizam. Um ator um dia representa um amante, um dia um assassino, um dia um pai, um dia um filho, empregado, patrão, ele está exercendo um universo dentro dele terapêutico incrível. E o leitor é isso também. O leitor vai encarnando. O espectador de celebridades é a mesma coisa. A pessoa que está vendo Darlene queria ser também célebre, condena a Darlene por uma série de ações, mas também fica meio siderada com a fama. Há uma transferência.

Você que é um pensador do amor, responda aí essa última pergunta, inspirada em Saint-Exupery: somos responsáveis por aqueles que nós cativamos?

De alguma maneira sim. Mas a sua relação com alguém nessa troca de emoções, de afetos, de conhecimento, deve também fazer com que o outro cresça, que o outro não seja um dependente, de tal maneira que haja uma relação de maturidade, uma relação adulta. O outro não deve ser tratado nunca como uma criança, mas com respeito. E vice-versa.

Affonso Romano de Sant‘Anna, muito obrigado pela entrevista. Foi um grande diálogo e certamente vai inspirar muitas idéias nos leitores.

Fontes:
Portfólio André Azevedo da Fonseca
Matéria publicada no Revelação (jornal-laboratório do curso de Comunicação Social da Universidade de Uberaba) n. 284, em 4 de maio de 2004
Fotomontagem - José Feldman

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