quinta-feira, 19 de março de 2009

Cíntia Moscovich (O tempo e a memória)

Pintura de Salvador Dali
Para Modesto Carone

Poderia ter seus sessenta, no máximo sessenta e cinco anos. Beleza, não; ao menos não se diz de um homem daquela idade que é bonito.

Demonstrava, no entanto, a altivez de quem ocupa uma posição. Não era alto, mas o corpo tinha contornos de firmeza. Os óculos de hastes finas eram um halo a emoldurar os olhos cinzentos; os cabelos, raros; a testa alteada como a de um fidalgo. O vinco entre as sobrancelhas tornava-se um exaspero sobre o peso do rosto.

Ao abrir a porta, sorriu apenas educado, e o sorriso cavou com nítida precisão a ruga acima do nariz. Eu quis saber se ele era o professor Augusto e se tinha lembrança de que eu telefonara no dia anterior. Disse que sim e cumprimentou-me com dedos enérgicos. Num gesto cordial, convidou-me a entrar. Cedeu passagem recuando o corpo, e senti que me observava. Por vaidade, contraí as nádegas e alteei o queixo. Por vaidade. Foi assim que penetrei naquele lugar, com o coração ainda escuro - ainda sem nódoa.

O gabinete era amplo, e prateleiras repletas de livros enchiam o ambiente. Numa parede sobre a qual se aplicara papel de um bordô muito profundo, dominava essa pintura a óleo, de cores bastante tênues: uma mulher, jovem, trazendo ao peito um colar de pérolas. Senti que o homem ainda me observava. E, orgulhosa de juventude, ainda mais contraí as nádegas, fingindo observar o retrato.

Ofereceu-me a cadeira em frente à escrivaninha - grossos cadernos de espiral empilhavam-se a um canto, ao lado do telefone - baquelite, uma raridade - e do abajur de opaline. Deu volta e tomou assento naquele que era seu lugar; escorou os antebraços sobre a mesa, entrelaçando os dedos. Muito bem, ele disse, e então?

Um jornalista escreve para o esquecimento, enquanto desejaria escrever para a memória e para o tempo. Mesmo assim, tirei da bolsa o gravador, caneta e bloco de notas. Fiz menção de ligar o aparelho, mas ele estendeu o braço, detendo-me com a mão espalmada:

- Gravadores deixam-me com voz metálica. Além do mais, sei que a senhora não vai publicar nem metade do que vou dizer.

Jornalistas editam e cortam; jornalistas são sempre infiéis. Como, então, eu pedia que confiasse em mim? Recolhi meu equipamento, pressurosa e um pouco envergonhada. Ele empurrou as costas contra a cadeira: a vitória aliviava a concentração do rosto. Engoli o desconcerto e, alisando o papel em que rabiscara algumas notas, busquei aplicar-me à entrevista: ele era especialista em filologia, mas se dedicava, havia alguns anos, à tradução de Borges, uma das melhores, segundo diziam. Fiz a primeira pergunta.

Professor Augusto pendeu o tronco para a frente, cedendo o movimento quando estava suficientemente apoiado no braço da cadeira. Colocara-se muito próximo de mim - uma intimidade. Olhou-me:

- Por que eu traduzo Borges? Ora, porque não consigo escrever como Borges, senhora.

Talvez se tratasse de uma frase de efeito, talvez ele quisesse me confundir. Eu ainda não compreendia como a fala e as intenções se podiam modular do claro ao escuro; tudo o que existia naquela época era o preto no branco, coisas que se percebessem no brilho da nitidez. Para uma repórter ansiosa de coisas que se concretizassem, aquela era, em definitivo, uma retórica injusta, que eu escutei exatamente assim: como se não a merecesse. Anotei tonta e literalmente a afirmativa. Pedi, mentindo sobriedade, que continuasse.

- Tenho pensado que Borges não precisa que o traduzam. Melhor ler Borges no original. A senhora já leu Borges em castelhano?

A primazia das perguntas era minha, pretendi avisá-lo. Na realidade, alguns anos antes, a passeio em Buenos Aires, comprara um antigo exemplar de Ficciones numa das livrarias da calle Corrientes, volume que trouxe com o ânimo de quem porta um souvenir de viagem. Lembro, ainda hoje, de ter lido a brochura com dificuldade, um castelhano árduo mesmo para quem nasceu em terras sulinas do Brasil. Por isso, pelo penoso da experiência, naquela hora não consenti em dar a ele as miudezas de minha pequena história - muito menos me animei à confissão do quanto me custara a visita ao Ficciones. Tornei-me, de repente, cansada, de repente exausta, sem vontade de estar na frente daquele senhor, que me arrostava, os olhos cor de ardósia muito intensos.

Abreviei a entrevista: que diferença fazia eu ter lido ou não Borges no original?

Toda a diferença do mundo, retrucou, não sem certo amuo, dirigindo a atenção para algum ponto às minhas costas. Dei volta com o corpo, curiosa. Nós, os dois, agora, olhávamos para a mulher no retrato. O papel de parede, no fundo do qual frutos e pássaros entrelaçavam-se, começava a despegar à altura do encontro com a moldura de gesso que servia de contorno ao teto. Os dentes da mulher eram nacarados e pareciam repetir o brilho das pérolas. Voltei a encará-lo. Pegou uma caneta onde o dourado se amortecera pelo tempo. Repetiu a mesmíssima pergunta: a senhora leu Borges no original?

Respondi, finalmente, que sim. Seu rosto se iluminou, como quem encontra um seu igual. E desandou a falar, Borges e seus símbolos, Borges e sua erudição, Borges e seu Sul, Borges e sua melancolia, a fidelidade do tradutor ao original de partida, o conhecimento da língua de chegada, as equivalências possíveis entre espanhol e português - tudo numa velocidade que a minha tonta mão se negava a acompanhar, o papel impermeável àquele jorro repentino. Consegui retardá-lo duas ou três vezes, nunca o suficiente. Ele continuava, a caneta orquestrando uma sinfonia de instrumentos loucos, da qual me sentia excluída - não parecia fazer a mínima diferença eu ter lido Borges no original.

Até que o telefone tocou. Ele se interrompeu, a respiração poderosa. Levantou o fone do gancho, agastado. Ouviu com repentina atenção, fazendo um movimento afirmativo com a cabeça, a ruga arando a pele num sulco trágico. Ao cabo de poucos segundos, disse que já estava indo, saio agora mesmo, não se preocupe, não vai ser nada, querida.

Querida. Então havia no mundo alguém que aquele homem queria, alguém que o esperava em algum lugar - onde? Depôs a caneta sobre a pilha de cadernos, alinhando-a com o capricho de quem arranja um antigo documento. Pôs-se de pé, sentia muito, mas tinha de ir. Juntei minhas poucas coisas, apalermada de susto. Levou-me até a porta:

- Volte, por favor, amanhã, às duas da tarde. - Colheu do cabide atrás da porta um cachecol vermelho, que enrodilhou ao pescoço, e um grosso sobretudo de lã, que vestiu com destreza: - Não gosto de entrevistas por telefone.

Descemos os dois degraus que separavam a porta da calçada. A tarde já ia em seu fim, e o céu se anuviava frio de cinza. Uni as abas da gola e ajeitei melhor a bolsa sobre o ombro. Estendi-lhe a mão. Sua pele estava gelada. Fez sinal para um táxi, que se deteve logo adiante. Antes de embarcar, supôs que eu merecesse uma justificativa:

- É meu netinho, um corte na testa. Não deve ser nada, mas minha filha está muito nervosa. Sabe como é.

Não, eu não sabia. Dali a alguns anos, eu teria filhos, mas ainda faltava em mim um laço para que eu entendesse todas as formas de afeto e seus desesperos. O táxi partiu. Decidi caminhar até a redação. Uma nódoa ameaçava dentro. Apertei o passo, impressionada.

Naquela noite, jantei duas fatias de pão com manteiga. Resolvi ir para a cama antes da hora de costume. Depois de escovar os dentes, fui até a estante de livros. Como se fosse por primeira vez, dei de mão no volume de Ficciones. Luz de cabeceira acesa, tapada até o pescoço, comecei a penosa releitura. À altura da estranha história de Juan Dahlmann e seu profundo sentimento argentino, meus olhos já pesavam. Antes de chegar ao desfecho, o livro caiu dentro do silêncio do quarto e se perdeu na voragem do sono. Em meus sonhos, o bibliotecário que tinha em mãos o exemplar das Mil e uma noites se altercava com um homem de feições indiáticas.

No dia seguinte, cheguei cedo à redação. Queria, na verdade, escrever a matéria sobre Borges, antecipar-me ao prazo das rotativas. Meu editor perguntou sobre a entrevista. Menti, sendo imprecisa. Ele disse que precisava de fotos do professor Augusto, não havia nenhuma no arquivo, e pediu que escrevesse o obituário de um escritor local, que estava à morte. Concordei, com a alma densa.

O telefone tocou pelas dez. Atendi. E escutei:

- Sou eu, Augusto.

Veio algo como aflição, que também poderia ser surpresa e que - pensando bem - poderia ser alegria. A voz ao telefone soava faceira e doce, e era como se não correspondesse ao corpo de alguma idade e à índole brusca que demonstrara. Busquei, na papelada sobre minha mesa, o bloco de anotações. Ele me interrompeu:

- A senhora está ocupada agora?

Falei-lhe do obituário. O professor espantou-se, conhecia o autor e lamentava a gravidade dos fatos. Decidiu punir-me, mais uma vez: pensava que o necrológio deveria ser somente feito quando o escritor morresse. Não tinha resposta e fiquei em silêncio. Ele me fustigou:

- Assim são as coisas, senhora. As fúrias se antecipam ao ato.
Tentando dar a mim mesma alguma dignidade, comentei que era bela a frase. Ele retrucou, seco:

- A frase não é minha. É de Kafka. Por favor, venha às quatro da tarde.
Antes que ele desligasse, avisei que levaria comigo um fotógrafo. Ele foi quase ríspido:

- Senhora, uma das coisas que menos aprecio no mundo é que me fotografem.

Desligou. Terminei o texto exatamente ao meio-dia. O escritor faleceu perto da uma da tarde.

Pelas duas, começou a chover, água debatendo-se furiosa contra as vidraças. Meia hora antes do combinado, pedi que o carro do jornal me levasse à casa do professor. O motorista queixava-se da tormenta. Eu também queria queixar-me. Mas de quê?

Toquei a campainha. Ele atendeu: uma vaga de calidez suavizava a ruga entre os olhos. E, pela primeira vez, um homem daquela idade era quase bonito.

Sentei, ainda confusa, no mesmo lugar do dia anterior. Perguntei como estava o neto, se havia sido algo de grave. Ele riu com gosto:

- Dois pontos no supercílio, nada demais - o tom dele era o de amor sólido e severo. - Minha filha se assusta com facilidade - e olhou por cima de meu ombro.

Alguma penumbra muda se instalou no meio de nós. Tomei coragem e, numa vingança débil, informei que o escritor havia morrido. Ele reagiu:

- Sim, já sei. E o necrológio está pronto. - Inclinou um pouco a cabeça: - Talvez eu tenha sido indelicado com a senhora. Sou velho, a morte está ali ao lado - apontou com o queixo uma das prateleiras de livros - mas ainda não somos amigos.

Voltei os olhos para as lombadas e perdi a ação. Calar-me significava concordância com ambas as afirmativas: a de que ele era velho e a de que a morte inspirava pouco apreço. A morte era, sim, algo terrível, e o quê mais era ele senão isso, um homem velho? Nada pude falar. Sem que parecesse dar sentido ao meu mutismo, sugeriu:

- Aceita um café?

Bem, era uma idéia. Apoiou as mãos na borda da mesa e ergueu o corpo, não sem certa dificuldade. Volto já, ele disse, cruzando por mim.

Observei-o: trajava de cinza, calça e pulôver de lã, o cachecol vermelho em volta do pescoço. Ele decerto sentiu que o olhava. Pelo menos, aprumou os ombros ao cruzar pela porta do gabinete. Teria sido belo anos antes.

Caminhei até o retrato. Abaixo da assinatura - indecifrável - a data indicava que exatos trinta anos se haviam passado. Examinei sua biblioteca, detendo-me numa antiga brochura das Mil e uma noites, de Weil, que folheei com deferência; as ilustrações não poderiam ser mais encantadoras. À frente dos livros, quase à beira da estante, algo que se assemelhava a um caleidoscópio chamou-me a atenção. Levei o tubo ao olho, e coloridos vidrinhos armaram-se simétricos, mas nem por isso monótonos. Voltei à mesa de trabalho e medi a pilha de cadernos. Um pecado não estava proibido, e peguei uma das brochuras. O cheiro íntimo de café já se desprendia da cozinha, mas sem ainda ser suficiente para me espantar. Ao alto, no cabeçalho da folha, lia-se "Ulrica". O texto vinha numa caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, que logo se suavizava, escandindo-se ao longo da página com elegância. Admirei-me: um trabalho bonito. Devolvi o caderno à pilha e voltei à cadeira quando escutei o breve tilintar de louças. Ele colocou a bandeja entre nós.

- Poderia ser seu pai, senhora - ele disse, acomodando-se.

A frase não resistia à lógica da circunstância. Poderia mas não é, respondi, tentando acompanhar a sinuosidade do raciocínio. Pedi que retirasse a senhoria, melhor chamar-me pelo meu primeiro nome.

Retribuiu a gentileza na mesma moeda. Comentei que o tratamento cerimonioso fazia com que houvesse uma espada entre as pessoas. Ele incendiou o rosto num sorriso, comentando que aquela poderia ser uma frase de Borges. Perguntou se podia servir o café - a essa altura já me tratava pelo primeiro nome. Aceitei.

As palavras que ele dizia portavam cada qual sua sombra, isso era seguro. Mas havia coisas que me eram dadas, naquele momento, compreender. E compreendi. O café que ele serviu era um tanto de amor na louça delgada feito casca de ovo. No meio do silêncio vagaroso, ocorreu-me que o professor mudara de atitude da noite ao dia.

Simplesmente assim: ele havia buscado uma bandeja na cozinha e a dispusera na escrivaninha que nos separava. Sem que eu pedisse - sem que eu merecesse -, colocara, ao lado do bule, quindins lisos e perfeitos.

E como me oferecesse sóis de gemas, a fome veio. Levei o doce à boca, o ovo feito geléia, e o açúcar suavizou meus lábios. Comemos, sem que, por muito tempo, se escutasse uma só palavra: no espaço entre nós, reinava alguma mútua satisfação. O último ruído audível foi o da colher chocando-se contra a louça.

Cada um de nós tomou duas xícaras de café. Depois de passar o guardanapo de papel nos lábios finos, perguntou se estava servida.

Agradeci, elogiando a refeição inesperada. Retirou a bandeja da escrivaninha, depondo-a numa mesa lateral - movimentava-se com elegância. Sentando-se, alisou o cachecol. Varreu com a polpa do indicador alguns farelos imaginários do tampo de madeira; estalou os nós dos dedos e me ofereceu um pensativo semblante. Tive o pressentimento de que ia me dizer algo e, antes que fizesse isso, indaguei a respeito da tradução. Calmamente, repetiu o que declarara, aos jorros, no dia anterior. Ouvi.

Para não deixar as mãos abandonadas, volta e meia pousava-as na pilha de cadernos manuscritos, acarinhando-os. Os olhos perscrutavam-me, avaliando, vez que outra, meu colo, o que me inquietava um pouco ou talvez me envaidecesse. A fala se tornara mais lenta, a dicção, perfeita: uma récita que eu seguia com todos os sentidos. Em determinado momento, tive a intenção de detê-lo, de parar aquela espécie de amor que vinha no caudal das palavras. As certezas ainda longe de mim, temi que estivesse fazendo um cálculo torto - poderia ser somente bondade o que me parecia ser um influxo de carinho. Eu não tinha como saber.

Perguntei se realmente traduzia Borges porque não podia escrever como Borges. Ele sorriu.

- Desisti da carreira quando me dei conta que conseguia manejar bem dez frases curtas, mas que não conseguia uma única frase longa que prestasse - e fez um gesto com a mão, desprezando-se. - Você nunca quis ser escritora?

Confessei que sim, queria, desde pequena, quando lera Lobato. Lobato?, ele repetiu, animado. O sulco sobre a testa havia praticamente sumido.

Aparou a cabeça nos nós dos dedos. E comentou:

- Ontem eu comecei a traduzir Ulrica. É uma história de amor.

Lembrei-me, com algum receio, do caderno que havia aberto quando ele estava na cozinha. A caligrafia caprichada, de arranque impetuoso, fazendo volteios em torno do U inicial. Ele ainda me oferecia os olhos aguados, como se fosse feliz. Desviei o rosto, não sem embaraço, e, ao deter-me na caderneta de anotações, senti uma pontada de entusiasmo: do tanto que havíamos conversado, tinha assunto suficiente para três matérias. Olhei o relógio e uma onda de espanto veio, já era tarde; comentei que tinha de ir. Ele acendeu o abajur de opaline, alisou outra vez a pilha de cadernos e tomou nas mãos a caneta dourada:

- Pois bem, mocinha. O milagre tem o direito de impor condições.

Creio que, por juventude, ainda não sabia ficar calada. Só depois, descobri a imobilidade que, aliada ao silêncio, me traria a vantagem da dúvida. Disse, então, como uma tola, aquela que eu realmente era, que não havia entendido. Ele respondeu que não tinha a menor importância.

Foi comigo até a porta e ajudou-me com o casaco e com a bolsa, ajeitando o cachecol junto a meu pescoço. Perguntou se eu iria até a redação. Falei que já era hora de voltar para casa e que gostava de caminhar sozinha. Sem abrir a porta, ele disse:

- Eu também. Podemos caminhar juntos um dia desses.

Rimos os dois. Parados, de frente um para o outro, ríamos juntos, e eu temi que fosse feliz na hora errada. Num gesto imprevisto colocou-me as mãos sobre os ombros. Estaquei: uma mulher se depara como mulher frente a um homem poucas vezes no espaço de uma vida. Atendendo a algum impulso subterrâneo, abracei-lhe o corpo. Ele suspendeu a respiração. Para uma mocinha, e para um senhor, para nós dois, o contato físico era um dom inesperado. Ele retribuiu o abraço com muita força e encostou, como se fosse permitido, o rosto ao meu. Conheci a pele escanhoada. Era macia.

- Sou viúvo - ele disse. - Não costumo ter nos braços outras pessoas que não minha filha e meu neto.

O diálogo se tornara difícil, como o de duas criaturas que não podem se enganar. Saí com dó daquele laço; sem encará-lo, confidenciei que estava triste por ter acabado a entrevista.

- Ora, mocinha. Amanhã o sol vai brilhar em seus dentes.

A frase tinha lá sua pompa; fazia parecer que o afeto era fácil. Ele abriu a porta e aspirou o ar gelado. Estiara. Hesitou um breve momento antes de perguntar.

- Você quer vir amanhã?

Eu me confundi. Depois de alguns momentos, em que tentei avaliar a pergunta, fiz que sim com a cabeça. Ele disse que me esperaria. E mais:

- A vocação dos velhos é esperar.

Quis saber se, de fato, ele se sentia velho. Negou, meneando a cabeça com certo orgulho.

Ganhei a calçada. A porta fechou-se delicadamente às minhas costas.

Eu, úmida, parada no meio de uma rua transversal da cidade, sentia-me o avesso de uma menina. Meu rosto, onde a pele do professor se juntara à minha, era puro resplendor. Estava toda sensibilidade, algo que me incomodava sem doer, feito uma unha quebrada. Era uma alegria, que apesar de ser alegria, pesava: carga tão difícil de ser eu mesma daquele jeito insolente. Um calor me vinha de dentro do corpo, do tempo em que batia o coração, mas que também era marcado pelos passos que percutiam na calçada. Enfrentava o vento frio, como se houvesse chegado a algum extremo. Cada coisa já tinha sua sombra. Uma delas se instalara em mim e, ao menos por aquele momento, eu achava que era uma bênção. Porque são abençoadas, as pessoas continuam a viver.

Naquela noite, mais uma vez, pouco comi. Deitada, mantive os olhos abertos, numa tentativa de contar a mim mesma meu dia. Nas trevas do quarto, o rosto do professor surgiu, as hastes dos óculos pura iluminação.

Nos meus sonhos, ele se defrontava com o homem de feições indiáticas.
Bem cedo, pulei da cama. Antes de bater a porta de casa, apanhei o volume de Ficciones e carreguei-o junto ao peito. Bastante antes do meu horário de costume, estava na redação. Escrevi e escrevi, horas inteiras. Borges nunca me pareceu tão claro e tão próximo. Era uma intimidade recente, bem certo, mas havia laços que me autorizavam. Meu editor veio pedir-me outro obituário. Polidamente, recusei, alegando que as fúrias não deviam se antecipar ao ato. Ele estranhou.

Por volta de cinco da tarde, a matéria estava pronta. Pedi ao arquivo fotografias de Borges. Escolhi uma bastante antiga, em que se notava o trabalho do tempo. Ao final da edição, dando o artigo por concluído, conheci o medo de ficar sozinha.

Cheguei à casa do professor pelas sete da noite. O volume de Ficciones agarrado junto aos seios. Toquei a campainha. Ele abriu a porta: recebeu-me sem surpresa. Meu coração trocou o tempo em que batia, e eu acolhi, enfim, como quem aprende, a nódoa.

O rosto de um homem daquela idade era finalmente bonito.

Fonte:
MOSCOVICH, Cintia. Arquitetura do Arco-Íris. RJ: Record, 2004.

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