quinta-feira, 12 de março de 2009

Fernando Pessoa (O baú do poeta)


Nova edição revela facetas de Fernando Pessoa e ilumina pontos de sua discreta biografia

O poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) é um sucesso de público e crítica. Considerado unanimemente o melhor da língua ao lado de Luís de Camões, Pessoa hoje é também saudado como um dos maiores de todos os tempos, em qualquer idioma. Ele é o único português que aparece entre os grandes em O Cânone Ocidental elaborado pelo crítico americano Harold Bloom. Nas últimas décadas, Pessoa também virou ídolo popular no Brasil e em Portugal. Ao lado de Che Guevara e Gandhi, é campeão de vendas daquelas camisetas que trazem frases impressas. As dele são sempre as mesmas: "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena" e "O poeta é um fingidor". Pessoa, no entanto, é muito mais do que isso. Mesmo os fãs do poeta português conhecem pouco, proporcionalmente, de sua obra. Fernando Pessoa publicou apenas um livro em vida, Mensagem, e alguns versos em jornal. Boa parte de sua literatura ficou guardada numa arca de madeira escura, grandalhona, contendo exatamente 27.543 textos. Nos anos 40, uma parcela desse legado foi lançada numa primeira edição de sua obra completa, mas ficou faltando muita coisa. Os novos inéditos começaram a vir à tona há cerca de quinze anos, em livros que só circularam entre especialistas. Apenas no ano passado, em Portugal, atingiram o grande público numa edição comercial da obra de Pessoa que saiu pela casa Assírio & Alvim de Lisboa. Essa nova edição, que deverá ter ao todo 23 volumes, começa a ser publicada agora no Brasil pela Companhia das Letras. Os livros trarão muitas surpresas mesmo para o leitor habitual de Pessoa.

A Ofélia ­ IV

Porque o olhar de quem não merece
O meu amor para outro olhou,
Uma dor fria me enfurece,
Decido odiar quem me insultou.

Vil dor, vil causa e vil remédio!
Quanto melhor não fora achar-se
No antigo sem-amor, com tédio,
Mas sem dor de que envergonhar-se!

Retirado do livro Pessoa por Conhecer, de Teresa Rita Lopes

Como todo mundo aprendeu na escola, o poeta português é famoso pelas personalidades literárias que criou. As mais famosas são o clássico Ricardo Reis, o pagão Alberto Caeiro e o atormentado Álvaro de Campos, chamados heterônimos porque tinham estilo próprio e até temperamentos diferentes. Mais alguns poucos eram conhecidos: o guarda-livros Bernardo Soares e os ingleses Charles Anon e Alexander Search. Estudos recentes demonstraram que chegam a 72 as personalidades literárias de Pessoa. Os inéditos também trazem subsídios para iluminar a discreta biografia do poeta. Ele, que jamais teve emprego fixo, viveu apertado com dívidas e acossado pela pobreza. Agora, pode-se entender melhor suas posições políticas e até sua sexualidade. Por último, as pesquisas restabelecem o texto original de alguns poemas de Pessoa que haviam sido publicados anteriormente de forma errada.

Machista — Talvez os dados mais impressionantes que emergem dos textos recém-descobertos sejam os relativos às novas personalidades literárias do autor. Muitos merecem leitura, como Antônio Mora e o Barão de Teive. O primeiro é filósofo. Ele teoriza sobre um certo neopaganismo e mostra o lado provocador de Pessoa, com passagens polêmicas que levariam o poeta à execração pública em tempos politicamente corretos. Num fragmento encontrado pela professora portuguesa Teresa Rita Lopes, flagra-se o machista Mora dizendo o seguinte: "As três classes mais profundamente viciadas, na sua missão social, pelo influxo das idéias modernas, são as mulheres, o povo e os políticos. A mulher, na nossa época, supõe-se com direito a ter uma personalidade; o que pode parecer 'justo', 'lógico' e outras coisas parecidas; mas que infelizmente foi de outro modo disposto pela natureza". Já o Barão de Teive é um pouco parecido com Bernardo Soares, o autor do famoso Livro do Desassossego. Pessoa inventou a história de que teria encontrado "o único manuscrito" do barão numa gaveta. A Assírio & Alvim pretende publicar livros com textos de Mora e de Teive. Segundo Teresa Rita Lopes, que há mais de três décadas se dedica ao estudo de Pessoa e já produziu alguns ensaios marcantes, como os dois volumes de Pessoa por Conhecer, as várias personalidades literárias inventadas por Pessoa eram como figuras de um romance, ou diário, que ele foi "escrevendo para viver e vivendo para escrever".

Os novos textos já publicados em Portugal revelam facetas inusitadas do talento de Pessoa. Ele gostava, por exemplo, de escrever poemas infantis para as sobrinhas. Esses poucos textos já estão reunidos num volume, O Melhor do Mundo São as Crianças. Em A Língua Portuguesa, o poeta reflete longamente sobre o idioma dando a entender que, hoje, seria um opositor feroz da reforma ortográfica. Existe ainda o Pessoa ficcionista, autor da novela A Hora do Diabo, que tinha inclusive planos de redigir contos policiais. Há o criador de chistes e piadas e o inventor de charadas e jogos. Note-se, aliás, que boa parte dos trabalhos mencionados é em prosa. Pouca gente sabe, mas a obra em prosa de Fernando Pessoa é mais extensa que a poética.

Sem título

De leste a oeste comandamos,
Onde o sol vai, pisamos nós.
Ao luar de ignotos fins buscamos
A glória, inéditos e sós.
Hoje a derrota é a nossa vida
Doença o nosso sono brando.
Para quando é a nova lida,
Ó mãe Ibéria, para quando?

Dois povos vêm da mesma raça
Da mãe comum dois filhos nados,
Hispanha, glória, orgulho e graça,
Portugal, a saudade e a espada,
Mas hoje... clama no ermo insulso
Quem fomos por quem somos, chamando.
Para quando é o novo impulso
Ó mãe Ibéria, para quando?
Fernando Pessoa

Sexualidade "branca" — Pessoa namorou uma única mulher, Ofélia Queiroz, que parece ter-lhe inspirado uns poemas ruins e várias cartas ("todas as cartas de amor são ridículas" é outra de suas frases estampadas em camisetas). Não se sabe de outras aventuras sexuais, de qualquer tipo, que possa ter tido. Foi ele homossexual? Ou teve uma sexualidade "branca", inexistente? Só há especulações. Ele sempre se achou feio. E triste. Normalmente é lembrado como um homem tímido, dado a devaneios metafísicos (algo que está bem documentado em sua poesia) e a explorações místicas. Pessoa, que pensou em ser astrólogo profissional, usando o pseudônimo Rafael Baldaya, guiava-se por seu horóscopo. Certa vez, deixou a poetisa brasileira Cecília Meireles aguardando em um café porque os astros lhe diziam que o dia não era propício para conhecer novas pessoas.

Ao contrário do que se pensava, Pessoa escreveu sobre sexo. Há no espólio diversos poemas e textos a respeito de amor e de mulheres, no sentido bíblico. Freqüentemente eles são surpreendentes. "O desdobramento do eu é um fenômeno em grande número de casos de masturbadores", escreveu Pessoa, certamente pensando em seus próprios heterônimos. Um deles, o já citado Antônio Mora, defende que a mulher deve ter experiências sexuais antes do casamento, em contraste com o que rezava o costume da época. Em outra passagem desconhecida, Pessoa joga com a idéia da homossexualidade: Álvaro de Campos faz insinuações a respeito de Ricardo Reis, que teria tentado disfarçar, "pela sintaxe", o fato de que uma de suas odes é dirigida a um rapaz. Segundo Teresa Rita Lopes, o mais provável é que Pessoa fosse casto, não gay. "Se não assumiu, é porque não tinha de assumir. Ele não teria problemas quanto a isso, já que defendeu sem preconceitos seus amigos homossexuais, como o escritor Antônio Botto".

As primeiras incursões no espólio literário de Fernando Pessoa ocorreram na década de 40. Ligados à editora portuguesa Ática, esses exploradores desentranharam do baú escritos fundamentais. As edições da Ática têm o mérito do pioneirismo e tornaram-se canônicas pelos cinqüenta anos seguintes. Serviram de base, por exemplo, para as edições brasileiras mais utilizadas, a da Nova Aguilar e a da Nova Fronteira. Esses pioneiros, contudo, fizeram certa bagunça remexendo a papelada, que só voltou a ter ordem em 1968, quando foi catalogada. Também mandaram para a gráfica poemas em que havia dúvidas, deixando para os tipógrafos a responsabilidade de "acertar" o texto. Até hoje isso compromete a boa leitura de alguns clássicos. É o caso de "Passagem das horas", extenso poema assinado pelo heterônimo Álvaro de Campos. Em 1990, a pesquisadora brasileira Cleonice Berardinelli, membro da Equipa Pessoa, uma comissão nomeada pelo governo português para fazer edições críticas da obra do poeta, descobriu que a edição da Ática simplesmente invertia o posicionamento de dois grandes trechos do poema, alterando sua interpretação. Em outros casos, havia erros de grafia que modificavam completamente o sentido, como no verso Assim sou a máscara — que durante cinqüenta anos foi lido como Assim sem a máscara.

Íbis, ave do Egito

O Íbis, ave do Egito,
Pousa sempre sobre um pé
(O que é
Esquisito).
É uma ave sossegada
Porque assim não anda nada.

Quando vejo esta Lisboa,
Digo sempre, Ah quem me dera
(E essa era
Boa)
Ser um íbis esquisito
Ou pelo menos estar no Egito.

Estrofes de poema de Fernando Pessoa

No caso das edições da Assírio & Alvim, a responsabilidade pelo texto cabe a Teresa Rita Lopes e seus colaboradores. "Não estamos fazendo edições críticas, mas edições criteriosas", diz a pesquisadora. "Os versos de Pessoa costumam ter muitas variantes, sem indicação de qual era a opção final. Para dar conta disso, redigimos as notas necessárias, mas evitando que esse aparato técnico se transforme num problema para o leitor comum." Existe, porém, uma questão jurídica em torno dessa nova edição que começa a sair no Brasil. A obra de Pessoa, que havia caído em domínio público em 1985, voltou a ser patrimônio dos herdeiros do poeta no ano passado, graças a uma mudança na legislação européia. Esses herdeiros concederam exclusividade de publicação à Assírio & Alvim e, em razão disso, as outras edições de Pessoa que existiam em Portugal (algumas boas, outras muito ruins) estão saindo aos poucos de circulação. A pergunta é: será que essa legislação vale também no Brasil? O assunto dá pano para mangas. Segundo o diretor da Assírio & Alvim, Manuel Hermínio Monteiro, a expectativa é de que os livros lançados por outras editoras, que não a Companhia das Letras, também deixem o mercado, sem que para isso seja necessária ação na Justiça. Tudo indica, porém, que uma nova pendenga judicial vem aí.

Uma descrição dos heterônimos

Em torno do meu mestre Caeiro havia, como se terá depreendido destas páginas, principalmente três pessoas ­ o Ricardo Reis, o Antônio Mora e eu. O Ricardo Reis era um pagão latente, desentendido da vida moderna e desentendido daquela vida antiga, onde deveria ter nascido. Caeiro, reconstrutor do Paganismo, ou melhor, fundador dele no que eterno, trouxe-lhe a matéria da sensibilidade que lhe faltava. O Antônio Mora era uma sombra com veleidades especulativas. Encontrou Caeiro e encontrou a verdade. Por mim, antes de conhecer Caeiro, eu era uma máquina nervosa de não fazer nada. Logo que conheci Caeiro, verifiquei-me. Mais curioso é o caso do Fernando Pessoa, que não existe, propriamente falando. Ouviu ler o Guardador de Rebanhos. Foi para casa com febre, e escreveu, num só lance ou traço, a Chuva Oblíqua.

Fonte:
Artigo de Carlos Graieb. Revista Veja. 11 de novembro de 1998. Disponível em
http://veja.abril.com.br/111198/p_204.html

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