segunda-feira, 30 de março de 2009

Paulo Bentacur (A gênese do gênio)

John Faed (Shakespeare e seus contemporâneos) [1851]
O jornal era de circulação modesta, mas o anúncio impressionava: “Transforme-se num Shakespeare em seis meses. Curso de redação literária administrado pelo Professor Paiva.”

Paiva era bem relacionado, solteiro apesar dos circunspectos 57 anos, e além do anúncio pelo qual pagara R$ 490,00 reais para inserção diária na página 3, havia outros que davam autenticidade ao que o professor prometia. “Agradeço ao Professor Paiva por ter resolvido em meio ano o que mais de dez de prática literária constante não conseguiram. Hoje sou disputado por várias editoras.” Quem assinava o agradecimento público era um desconhecido, o que gerava desconfiança quanto à eficácia do método do Professor, mas isso Paiva explicava facilmente. Não ia um homem coberto pela glória expor-se assim; para tanto, utilizara-se de pseudônimo, registrando a gratidão justa e, ao mesmo tempo, preservando-se.

O fato é que em pouco tempo a agenda de Paiva não dispunha mais de datas: 83 alunos freqüentavam sua casa, revezando-se numa carga horária bastante puxada. Todos os dias, das 9 às 18h, Paiva recebia alguma promessa. Seu desafio era transformar essa promessa em realidade, desafio maior ainda se considerarmos que a maciça maioria não era promessa de coisa alguma.

Militares reformados com vida ociosa e fantasias beletristas, que mal sabiam redigir uma carta; senhoras viúvas, ou solteiras mesmo, que sonhavam em ocupar suas paredes com diplomas de menção honrosa; publicitários que dominavam as mumunhas da redação metida a esperta e engraçadinha e que queriam mais, bem mais. Paiva jurava que tinha mais.

Durante uns seis anos a casa de Paiva conviveu um movimento que as casas da vizinhança, mesmo aquelas dadas a festas nada ocasionais, ignoravam. Mas a constância dos alunos não repetia nomes, apenas quantidade. O Major Hipólito freqüentou aquele vetusto recinto uns três meses, e logo pediu baixa. Silvinho Cláudio, redator da Fala Ação, ficou menos tempo ainda, quatro semanas, e desistiu. Ismael dos Santos Bicalho, jornalista aposentado, foi um que entrou e saiu da casa do professor sempre disposto a entrar de novo. Não se convencia da ausência de progresso em seus textos. Culpava a si mesmo, não a Paiva, cujos esforços eram ingentes. Mas um dia Ismael cansou, ou talvez tenha ficado constrangido, nunca se sabe. Dona Élida Paranhos continuava, jamais falhou uma aula nesses seis anos, mas Élida era uma mulher de fibra, constante em tudo que fazia, e sua esperança, nada secreta, era tão vasta como vasta era sua carência, e a nada abandonava, nem sequer à decepção que sentia com as aulas de Paiva há mais de dois anos.

Enquanto mais de 75% dos alunos iam ficando pelo caminho, desistindo, dando o braço a torcer ao comentário de um parente que punha sérias dúvidas sobre o futuro do literato, os 25% que permaneciam, permaneciam porém com o ânimo arrefecido, sem forças sequer para debater o método do aplicado Paiva.

Os anúncios continuavam, e faziam aquele sucesso. Todos na cidade se admiravam que um homem pudesse transformar outro num Shakespeare, logo em quem. Mas depois de seis anos – o mundo é impaciente – os luminares da comunidade passaram a perguntar-se: falando nisso, quando é que vamos ver na prática o que a teoria tão entusiasticamente anuncia?

Nada viam surgir além dos nomes de sempre, os novos nomes de sempre, se se pode dizer assim, gente que estréia com cara de quem vai dependurar a chuteira no segundo livro, e é bom que dependure depressa, se pensa, quando não dependuram somente – mas já – no terceiro.

Enquanto isso, a cidade vizinha, com quatro universidades, três grandes jornais e sete nomes a ostentarem fortuna crítica a pô-los na lista dos cem maiores da literatura contemporânea do país (o que, somando todos, não dá meio Shakespeare), ia, de ano em ano, apresentando uma que outra novidade, a causar susto na pasmaceira geral. A novidade sacudia a rotina, ficava na vitrine algum tempo, até sumia depois, mas ficava o suficiente para dar a impressão aos conterrâneos de Paiva que o seu método não era lá essas coisas.

O próprio Paiva, homem sério, dedicado, cujo único pecado fora aceitar a oferta do departamento de Anúncios e Classificados do jornal em colocar também aquele outro tipo de anúncio, naturalmente forjado (garantir a própria sobrevivência trabalhando é de tal ordem que dispensa alguns escrúpulos), começou a ficar nervoso com a previsível queda de procura por seu curso. A queda se deu. Propaganda boca a boca, sabe-se, tem eficiência como nenhuma outra.

O Major falou com dezenas de ex-companheiros de caserna que aspiravam às letras, ao curso de Paiva, e que desistiram antes de tentar. Silvinho Cláudio até que foi piedoso, dispunha de um forte veículo, mas satisfez-se em dizer num único programa de televisão, um só, que o método de Paiva era ultrapassado, mais psicológico que literário, que era comovente, e risível, a teoria do Professor acerca da gênese do talento mais como bloqueio a ser rompido do que técnica a ser ensinada. Silvinho admitia que a idéia não estava errada, mas o papel do professor deveria ser outro, o de ensinar truques, formas, caminhos específicos, atalhos para a verdade estilística contida nos limites de cada um. O professor, no fundo, era apenas um simpático motivador, só isso. Motivação não era o que faltava àquela gente. Talvez faltasse talento, e ele independe de motivação, é outra coisa, mais obscura, menos relacionada ao caráter, ao contrário do que Paiva pregava.

O Professor, depois do programa, que, aliás, fora assistido unicamente por dois alunos seus – e ele tinha ainda 49 cândidos nomes que não ficaram sabendo do depoimento do publicitário –, decidiu acabar com tudo. Doía-lhe a derrota de ver aquela gente toda sem nenhum futuro. Doía-lhe os que haviam ficado pelo caminho. Doía-lhe, não sendo um Shakespeare, tentar fazer brotar nos outros o Shakespeare que nele não brotaria nunca. Sabia o que não fizera para que não brotasse, e gostaria de tentar, à exaustão, que seus alunos não cometessem os erros que ele cometera. Mas o mundo quer Shakespeares, precisa deles, e urgente. Seis anos é muito tempo.

Paiva tinha acumulado bons recursos durante aquele período. Podia, sem sangrar suas divisas, devolver o dinheiro dos 49 heróicos remanescente. Convocou-os em regime de urgência. Uma fila formou-se na entrada de sua casa.

Devolveu o que haviam pago como antecipação. Disse que nada podia fazer além do que eles mesmos poderiam. Sentia-se cansado, e cansaço é incompatível com criação. Quando se quer descansar é porque o mundo ou foi criado, ou foi destruído. Não pôde continuar falando.

Um vulto destacou-se do grupo que o ouvia falar. Era Élida Paranhos.

Deu um abraço comovido em Paiva.

– Gosto de ti, te acho um homem de bem, e isso vale mais que ser um gênio. Tá cheio de gênio por aí, mas homem de bem, não sei não.

O perfume de Élida era doce, porém suave, não pesava. Seu rosto branco estava levemente dourado pelo calor. Paiva não resistiu.

Beijou-a, esquecido de qualquer vergonha, e talvez já enamorado.

Aliás, nesse caso, nem Shakespeare resistiria. Nem Shakespeare.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/

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