quinta-feira, 12 de março de 2009

Plano de Aula para o Ensino Médio (A poesia multiplicada em Pessoa)


Se o português Fernando Pessoa fosse apenas um poeta, já teria seu lugar na galeria dos grandes literatos do planeta. Mas Pessoa foi ainda mais.

Objetivos

Refletir sobre as possibilidades da criação literária; Discutir o conceito de heteronímia na obra de Fernando Pessoa.

Introdução

"É raro um país e uma língua ganharem quatro grandes poetas em um só dia. Foi o que aconteceu em Lisboa a 8 de março de 1914". Dessa forma o crítico George Steiner descreveu no jornal americano The New York Times o surgimento dos quatro principais heterônimos de Fernando Pessoa (veja o quadro). Esse inusitado nascimento quádruplo é apenas um dos marcos do fascinante universo literário criado por esse poeta português, morto em 1935, e receptáculo de nada menos que 72 heterônimos. Juntos, eles escreveram a obra de Pessoa, cada um no seu estilo literário, cada um com sua visão de mundo, seus sonhos e idiossincrasias. A genialidade do poeta está nessa rara capacidade de enxergar o mundo, e dele fazer poesia, incorporando profundamente tantas visões diferentes. Este plano de aula tem como conteúdos a despersonalização, a criação literária e a literatura portuguesa moderna.

TEXTO DE APOIO

Muitas têm sido as explicações propostas para a heteronímia. A melhor delas é a do próprio Fernando Pessoa, que escreveu que "o ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro - eis tudo. (...) Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão".

Fernando Pessoa fornece nesse trecho a "chave" para a análise de seu trabalho. O poeta tem a capacidade de "voar outro", ou seja, é capaz de construir uma pessoa inexistente que sente realmente outras emoções e sensações. Processo semelhante acontece quando um ator representa personagens.

A criação dos heterônimos é, portanto, um processo artístico consciente e não deve ser encarada como algo "estranho". Na origem de tudo está a capacidade de despersonalizar-se. Com inteligência e imaginação consegue-se viver analiticamente um personagem que acaba por ser um novo escritor, "com estilo próprio", formado por um "grupo de estados de alma mais aproximados".

Um drama feito de gente

Fernando Pessoa transforma a despersonalização dramática em processo de criação literária tão perfeitamente que muitas vezes temos dificuldade de entender quem eram realmente os heterônimos. Como, afinal, ele conseguia criar tantos personagens? De novo o próprio poeta esclarece: "O que Fernando Pessoa escreve pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar ortônimas e heterônimas. Não se poderá dizer que são anônimas e pseudônimas (...). A obra pseudônima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterônima é do autor fora de sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu. (...) Estas individualidades devem ser consideradas como distintas da do autor delas. Cada uma forma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama. (...) É um drama em gente, em vez de em atos".

A palavra pseudônimo é formada pelos radicais gregos pseudo, "falso", e onimo, "nome" e designa o nome falso adotado por um escritor para publicar seus textos. Heterônimo (do grego hetero, "outro", "diferente", e onimo, "nome") indica uma "individualidade literária completa", ou seja, um escritor e sua forma pessoal de expressão - criados do mesmo modo como se criam personagens e falas no processo teatral (ou dramático, que é a palavra preferida por Pessoa).

Fernando era também heterônimo

Os principais heterônimos criados por Fernando Pessoa foram Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, a cujas obras se deve somar a de Fernando Pessoa ortônimo (do grego orto, correto e onimo, nome). Entre esses principais heterônimos existe, segundo Pessoa, uma relação importante: a obra poética de Alberto Caeiro influenciou os poemas dos outros três. Nesse "conjunto dramático" deve-se incluir a obra de Fernando Pessoa ortônimo - que, no jogo criado pelo poeta, não deve ser visto como o "verdadeiro" Fernando Pessoa, mas como mais um heterônimo. À obra dos quatro principais heterônimos deve ser somado o trabalho de outros 68 personagens, muitos deles apenas esboçados, entre eles Alexander Search, Antônio Mora, Antônio Seabra, Barão de Teive, Bernardo Soares, Carlos Otto, Coelho Pacheco, Faustino Antunes e Henry More.

Atividades

1. Peça aos alunos que criem outros "eus", indivíduos que tenham opiniões, valores e visões diferentes. Eles podem elaborar biografias, descrições físicas e espirituais das pessoas que vão tentar viver. Sugira que produzam um texto que essa pessoa inventada escreveria.

2. Proponha aos alunos que analisem a letra da canção Língua, de Caetano Veloso. Comente com eles as várias referências a Fernando Pessoa: "Minha pátria é minha língua", "E quem há de negar que esta (a prosa) lhe é (à poesia) superior", um conceito extraído do Livro do Desassossego (de Bernardo Soares, outro heterônimo de Pessoa), além da referência textual ("A pessoa do Pessoa na rosa do Rosa"). Que importância atribui Caetano Veloso à obra de Fernando Pessoa?

3. Peça à turma que simule uma sala de bate-papo na internet: cada um assume um apelido e começa a conversar com os outros. Aquilo que se diz nessas situações corresponde à realidade ou começam a surgir "heterônimos"? Discuta com eles esse processo de despersonalização, comparando-o com o de construção de personagens de teatro, cinema e TV.

PERSONAGENS

Fernando Pessoa ortônimo é, entre os heterônimos, o que mais se prende à tradição formal da poesia portuguesa. Isso não impede, entretanto, que o ortônimo escreva sobre questões atualíssimas, como a relação entre o que se pensa e o que se sente, a dificuldade de se conhecer e de se identificar, a sinceridade do fazer poético.

Nasceu em 1889, em Lisboa, mas desde cedo viveu no campo. Morreu em 1915. A pouca escolaridade e a vida no interior resultaram a simplicidade estilística de sua obra. Ele viveu a contradição de usar as sensações para relacionar-se com a natureza sem conseguir abandonar sua racionalidade. Esse drama íntimo revelado em sua obra mostra que a personalidade de Caeiro, afinal, não era tão simples assim.

Nascido em 1890, Álvaro de Campos era engenheiro naval e vivia em Lisboa. Considerava Alberto Caeiro seu mestre. Utilizando versos livres e um fluxo verbal intenso e vigoroso, o autor expõe em seus poemas uma forte inadaptação social e um profundo sentimento de inapetência e impotência em relação à vida. Seu cansaço existencial é profundo e conduz a uma atitude niilista.

Ricardo Reis é, segundo ele mesmo, um pagão: acredita nos deuses antigos e adota formas de comportamento baseados na mundividência dos antigos gregos e romanos. Por meio desse médico nascido no Porto em 1887 e auto-exilado no Brasil, Fernando Pessoa produziu obras-primas classicizantes, melancólicas, sóbrias e desencantadas com a civilização cristã do século XX.

Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.

Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instinta e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o "via". E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos (...)".


(Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, 1935)

Bibliografia
Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, Jacinto do Prado Coelho, Ed. Verbo/Edusp, fone: (11) 3091-4156
Fernando Pessoa - Coleção margens do texto, José de Nicola e Ulisses Infante, Ed. Scipione, fone (11) 3990-2100
Fernando Pessoa multimédia, CD-Rom da Texto Editora e da Casa Fernando Pessoa

Fontes:
artigo de Ulisses Infante. http://revistaescola.abril.com.br/

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