domingo, 19 de abril de 2009

Ignácio de Loyola Brandão (Mentira? Verdade?)

A molecada se reunia.

— A mentira vem chegando.

Era uma menina baixinha, quase anã. Todo mundo tirava o pelo dela. Uns gritavam:

— Vai anãzinha, vai pr’o circo.

— Vai ser comida pelo leão.

— Vai lá casar com o gigante.

Enquanto isso, outros a chamavam pelo apelido: Mentira. Um dia, na escola, a professora chamou um grupo. Estava irritada.

— Que história é essa de chamar a Creuza de Mentira? Acaso ela conta alguma mentira? Contou? Por que isso?

— Ora, professora, responderam todos, nossos pais não vivem dizendo que a mentira tem perna curta? Olha a perninha da Creuza!

A professora não conseguiu segurar o riso, mas pediu:

— Parem com isso, é maldade.

Outra vez, chamamos o Dioniso (assim mesmo, como se faltasse um i) Mentiroso para uma aposta. Ninguém mentia mais do que ele. Contava cada patacoada que dava vergonha ouvir, imaginem dizer. Ele afirmava que o pai tinha sido prefeito de uma cidade, quando todos sabiam que não tinha pai. Ou parece que tinha, mas ele tinha vergonha do pai, um ex-padre que fugira com a empregada. Contava sempre que ia receber uma herança aos 18 anos, só que ele era duro, emprestava dinheiro e não pagava, roubava da bolsa da mãe e das tias, comprava na quitanda e a mãe tinha de se virar.

— Qual é a aposta?

— Não é bem aposta, é uma corrida.

— Quem contra quem?

— Você contra o Nando Manquinho.

— Contra o Nando Manquinho?

O Nando Manquinho era um garoto bom, todo mundo gostava dele. Acho que gostavam por causa da irmã dele, uma gostosinha.

— Quem ganha, ganha o quê?

— Um sorvete de uvaia.

Fruta do interior, azedinha, deliciosa para suco e sorvete, só dá em certa época. Dioniso, interesseiro, topou. Por um momento, teve um leve aceno de consciência.

— Logo contra o Manquinho? Covardia! Claro que vou ganhar. Por que essa corrida?

— Queremos tirar uma dúvida. Nossas mães vivem gritando uma coisa para nós, queremos tirar a prova.

— Que coisa?

— É mais rápido e fácil pegar um mentiroso do que um manco.

Numa prova, a professora, que era exigente quanto ao português — tínhamos aulas todos os dias —, propôs.

— Vou dizer uma palavra, vocês dizem o contrário. E quanto mais palavras contrárias disserem, melhor a nota. Vai valer para a média do final de ano.

— Mentira, disse a professora.

— Verdade, dissemos todos.

— Essa é fácil demais. Quero outras. Ponham a cabeça a funcionar.

— Cabeluda, disse a Wanda-olho-azul.

— Cabeluda? O que é isso?

— Pois todo mundo diz mentira cabeluda...

— Está bem, valeu.

— Falsidade.

— Patrosca.

— Patrosca? Onde ouviu ?

— No armazém.

— Coisa de caipira. Esquisita, mas vale.

— Invenção.

— Inverdade.

— Conto da carochinha.

— Engano.

— Farsante.

— Farsante? De onde tirou isso?

— Minha mãe disse do meu pai, que chegou tarde em casa. Achei que farsante é mentiroso.

— Pois minha mãe disse que o meu pai é enganador.

— E a minha xingou o meu de embusteiro.

— A minha disse que meu irmão é cheio de patranhas.

— Meu pai disse que a vizinha é pulha. É o mesmo que mentira, mentirosa?

— O meu disse que a mulher do dono do bar é infiel. O que é infiel?

— O quê? Minha mãe? Reagiu o filho do dono do bar.

Parece que a professora viu que a coisa caminhava de maneira estranha, estava com cara de terminar mal. Decidiu parar, deu nota boa para todo mundo. Juro que ela estava rindo quando deixou a classe.

Fontes:
Revista da Cultura (Livraria Cultura) – edição 21 – abril de 2009

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