quinta-feira, 21 de maio de 2009

Amadeu Amaral (O Elogio da Mediocridade)



Carta a um crítico

Meu amigo:

Está V. a ensaiar os seus pendores para a crítica, no que faz muito bem, porque é tempo de se ir criando por aqui essa coisa proveitosa; mas a ensaiá-los a custa de pobres poetas enfermiços e de prosadores claudicantes, no que faz muito mal. Permita que lhe represente, em brevesos linhas, os equívocos fundamentais e as incongruências desta sua atitude heróica.

O crítico, meu caro, que ferozmente agride as obras medíocres, procede como o sujeito que pretendesse deitar abaixo o pavimento inferior de uma casa de vários andares, para só conservar o resto. A mediocridade é necessária, absolutamente necessária que no sentido de coisa inevitável, quer no sentido de coisa útil. É, porque tem de ser; além disso, é benéfica.

A turba imensa dos medíocres constitui uma como nebulosa informe, sementeira protoplasmática de estrelas. A maioria dos grandes de lá saiu, e felizes daqueles que saíram de vez, para não mais tornar ao rebanho depois de um esforço máximo e prodigioso. Em regra, a obra total de um escritor de fama é uma série de livros que vai da mediocridade ao esplendor de um pináculo de ouro, e esse pináculo, como o de uma pirâmide, é justamente a porção que ocupa o menor lugar no espaço. A glória de Cervantes está inteira na cúpula de um enorme edifício literário Dom Quixote; o resto ficou para sempre mergulhado na sombra, como o corpo colossal de um casarão que só conserva iluminado, no seio da noite, a torre mais alta e mais esguia.

Certo, escritores há que, em rigor, nunca foram medíocres, cujas primeiras tentativas podem comparar-se aos primeiros vôos, mas aos primeiros vôos das águias jovens. São poucos. Esses mesmos, porém, não existiriam se não houvesse a vasta mediocridade que os cerca, que lhes serve de ponto de apoio, que lhes alimenta o espírito nos primeiros tempos, e que os impele para cima com todos os estímulos contraditórios da rivalidade e do aplauso.

Toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres, e não só de medíocres, senão também de inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse mato baixo sustenta a indispensável camada de humus, resguarda e entretém a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão. Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare, a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes e uma turba-multa obscura de escribas irrequietos.

Por que, pois, essa fúria sinistra de demolição, de que o meu jovem amigo se mostra dominado, a exemplo de outros cavalheiros que conscienciosamente manejam o cacete correcional da crítica impiedosa?

[...]

No seu entender, quem publica um livro está por força na atitude de quem constrói um pagode monumental, e nele se remira, e lá dentro se instala, como um Buda, à espera da romaria dos pósteros. Ora, o livro, depois que se inventou a imprensa, deixou rapidamente de ser um luxo, uma alfaia, um segredo, um adorno, qualquer coisa que avaramente se guardava a um canto da casa, entre a arca pregueada e o oratório esculpido, como uma relíquia ou um manipanço, para ser algo que já não corresponde a qualquer imagem antiga, algo de imprevisto e de original, uma característica flagrante de tempos renovados: um instrumento de comércio transitório entre as almas, prolongamento da conversação adstrito à troca universal das idéias.

O livro tem de ser considerado, não mais como um repositório de coisas concebidas e filtradas “para a eternidade”, mas sim como uma rede de pesca a sair do seio imenso das águas, trazendo de envolta com o peixe a alga, o marisco e a salsugem. Instrumento, utensil, aparelho, o livro tem a sua função naturalmente limitada: o seu fim primacial não é durar, é prestar serviço. Cumprida a sua missão, embotado, enferrujado, substituiu-se pelo mais novo e mais interessante e põe-se fora. Nem por isso deixou de haver um momento em que foi bem-vindo. Era um elo, passou; mas teve a virtude de arrastar um outro, que também passa, e a circulação continua...

Deixe em paz, meu bom amigo, os literatelhos em que V. gosta de saciar o seu rancor ao pedantismo e à pretensão. Ou bem que faz moral, ou bem que faz crítica.

Como crítico, o seu dever é respeitá-los: estão desempenhando a alta função de preparar o terreno para o surto das grandezas futuras.

Lembre-se de que o nosso amigo Shakespeare não fez, nas sua grandes peças, senão apoderar-se tranqüilamente de produtos medíocres para os transformar a seu jeito, insuflando-lhes aquilo que os predecessores não haviam podido dar-lhes, apesar de toda a boa vontade: gênio. Lembre-se de que a lenda dos gigantes que fazem línguas e literaturas por si sós está definitivamente morta. Dante não teria feito a Divina comédia, nem Camões os Os lusíadas, nem você estaria aí escrevendo críticas, se não fosse a enorme legião dos pigmeus sem nome nem lustre, cujo esforço apagado e tenaz, inumerável e ininterrupto, lavrando subterraneamente, aumenta pouco a pouco o tesouro coletivo da língua, lhe dá variedade, elasticidade e energia, e a conduz ao ponto de poder ser manejada com fragor por um punho poderoso.

Não se impressione com as pretensões da mediocridade, com a troca de doçuras ditirâmbicas em que ela se compraz. O louvor excessivo só perverte e inutiliza, em regra, os que nasceram talhados para coisa nenhuma. Há, em compensação, muito cavalheiro de grande valor que a canalha deixa na sombra? A isso, meu amigo, nem, Você nem ninguém dará remédio. Molière, numa época de florescência literária, que V. não quererá comparar com a nossa, passava por um hábil comediógrafo, em quem a crítica justiceira do tempo nem por isso lobrigava grandes méritos. Em compensação, Delille foi aclamado gênio pelos contemporâneos. E, sempre há de ser assim.

O caminho que V. deve tomar é outro. Deixe os medíocres em paz, e vá direito aos grandes. Com eles é que o meu amigo deve medir forças. Trate de ser alto e forte com eles, e renuncie a esse trabalho infrutífero e triste de remexer miçangas e alfinetes, acocorado numa esteira.

Lá é que eu desejo ver aplicadas as excelentes disposições que V. revela para a crítica, e que nos hão de dar daqui a pouco o nosso respeitável Brandes, ou o nosso compendioso Faguet.

Ex-corde...

Fonte:
- AMARAL, Amadeu.O elogio da mediocridade. SP: Hucitec, 1976.

Um comentário:

Guido Fidelis disse...

Caro colega, obrigado pela visita. Passei um tempo afastado do blog e somente agora li seu recado.

Sobre divulgar meus textos em seu blog, fique à vontade. Basta citar a fonte.

Vou ler com calma seu blog e depois tecerei meus comentários.

Tenha um ótimo dia.

Guido Fidelis
Jornalista e escritor