sábado, 29 de agosto de 2009

Edgar Allan Poe (Al Aaraaf)


Parte I

Oh! nada de terrestre além da luz
do olhar (que em cada flor se reproduz)
da Beleza, tal como em jardins, onde o dia
de gemas circassianas se desata;
oh! nada de terrestre, além da melodia
trêmula do regato dentre a mata;
ou (música de apaixonado peito)
o canto de um prazer suavemente desfeito
de que o eco há de, eterno, perdurar,
como vive na concha a saudade do mar;
nenhuma dor terrena, alanceante;
porém toda a beleza e cada flor
que o bosque enfeita e escuta o nosso amor,
é que adornam o mundo tão distante
daquela estrela errante.

Para Nesace era esse um tempo abençoado,
pois de quatro brilhantes sóis bem perto
o seu mundo oscilava no ar dourado...
Repouso efêmero... Oásis num deserto
de venturas... e longe, longe, em meio
a um luminoso mar, em que se alaga
de fulgores do Empíreo o espírito liberto...
a custo abrindo (tão espessa é a vaga)
a estrada dos destinos celestiais,
ela, de tempo em tempo, se encaminha
a orbes distantes, e hoje ao nosso veio,
favorito de Deus. Porém, rainha
de reino bem mais firme, atira o cetro a um lado,
deixa o leme e por entre hinos espirituais
banha em quádrupla luz seu corpo imaculado.

Será ela mais feliz, na terra suave e doce,
distante, onde nasceu a "Idéia da Beleza"
(caída em espirais da estrelada surpresa,
qual trança feminil de pérolas cercada
para em montes aqueus ter eterna morada)?
Olhou para o Infinito... e ajoelhou-se.
Nuvem linda à sua volta se recurva
- zimbório que seu mundo reproduz -
vista só na beleza e que não turva
outra visão tão bela, a cintilar na luz...
grinalda que entre os atros espirala
e a enlaçá-los colore o ar de opala.

Em flores ajoelhou-se, avidamente:
lírios como os que a fronte erguiam, de alabastro
sobre o Cabo Deucato e, de repente,
irromperam do chão, para encobrir o rastro
fugitivo da que - soberba rara -
morreu, tão-só porque um mortal amara;
e a Sefálica, que de abelhas mil se inunda,
ergue a haste purpurina e os joelhos lhe circunda;
e a flor preciosa, a que um engano dava
de Trebizonda o nome e que, habitando
outrora os mais longínquos atros, quando
tudo quanto era belo suplantava,
dos céus seu mel dulcíssimo esparzia
(o néctar dos pagãos) no orvalho que caía
sobre o jardim do pária em Trebizonda e sobre
a flor que a imita e que de sol se cobre,
tão semelhante à sua irmã da altura
que, hoje ainda, atormenta a abelha que a procura,
com sonhos e loucuras desvairadas;
no céu, perto do céu, da bela planta
a flor e as folhas onde, desoladas,
e sua fronte, de dor, não se levanta,
- remorso. das loucuras já passadas
o seio de ar balsâmico a lhe inflar,
bela que errou, e que é mais casta e linda;
e ao pefurmar a noite ela receia ainda
as Nictantes sagradas perfumar;
E Clítia, pensativa entre sóis numerosos,
a face a rorejar de prantos invejosos;
e a magnífica flor que na terra nasceu
e morreu, mal a vida começara,
rasgando o seio redolente, para
que dos jardins de um rei sua alma fosse ao céu,
e o lótus valisnério, que a torrente
do Ródano atirou, após luta inclemente.
e teu perfume rubro e encantador, ó Zante
"Isola d`oro! Fior di Levante!"
E do Netuno a flor, que ao deus do amor conduz
a boiar sempre sobre o rio santo;
flores magas a que é dado, em perfume, o canto
da Deusa transmitir ao céu de luz.

"Deus! Espírito, que habitas
lá onde, no céu profundo,
o que é belo e o que é terrível
na beleza se assemelham;
para além da linha azul
que marca um limite à estrela,
mas quem à vista se desvia
da barreira que lhe ergueste,
da barreira ultrapassada
pelos cometas lançados
de seu orgulho e seu trono
para até o fim ser escravos,
para conduzir o fogo
vermelho, que arde em seu peito,
incansáveis, em carreira
sempre e sempre dolorosa;
Tu, que vives (bem sabemos)
na eternidade (e o sentimos),
que espírito há de mostrar
a sombra de tua fronte?
Embora tua mensageira,
Nesace, encontrasse seres
que à sua medida e imagem
Teu Infinito sonhassem,
tua vontade, ó Deus, foi feita!
A estrela pairou, na altura,
entre imensas tempestades,
sob o teu olhar ardente;
e hoje, a ti, em pensamento
(pois só o pensamento pode
ascender a teu império
e partilhar de teu trono)
pela Fantasia alada
minha mensagem envio,
até o dia em que o segredo
se revele junto aos céus."

Calou-se e mergulhou a face ardente e bela
entre os lírios, humilde, a procurar
abrigar-se do ardor de seu olhar;
porque treme, ante Deus, a própria estrela.
Nem respira, imóvel, pois ouvia
uma voz, dominando as amplitudes quietas,
um rumor de silêncio, que aturdia
o ouvido e que, em seus sonhos, os poetas
"musica das esferas" denominam.
O nosso mundo é feito de mil termos
e chamamos "Silêncio" à quietude dos ermos,
a mais vã das palavras existentes.
A Natureza inteira fala e os entes
imaginários, mesmos, disseminam
sombras de sons das asas de ficção;
mas, ah! tal não se dá no reino alto e fulgente
onde perpassa a voz de Deus, eternamente,
e o vento rubro murcha na amplidão.

"Que importa, nesses mundos apagados,
a um pequeno sistema e a um sol ligados,
seja loucura meu amor a multidão
minha cólera veja no trovão
em tormentas, tremor de terra, iras do mar
(por que vêm meu caminho irado assim cruzar?);
que importa se, com um sol somente, em tais planetas,
se extinguem, a correr, do Tempo as ampulhetas?
Teu é meu resplendor; recebe-o e leva
o meu segredo ao céu que mais se eleva.
Voa, deixa deserto o cristal de teu lar,
vai com tua corte pelo céu lunar
(e apartando-vos, como, em noite siciliana,
os pirilampos), leva em sua asa
a outros mundos, a luz que agora de ti emana.
Os mistérios a ti confiados revelam
a cada mundo que a soberba abrasa;
e por barreira os corações te tomem,
barreira e maldição, para que a estrela
não vacile perante os crimes do homem."
Pôs-se a virgem de pé na noite amarelada
de um só lua! Aqui, na Terra, é só adorada
uma lua e só de um amor fica a alma presa;
não o possuía mais o berço da Beleza.
Como a estrela nascida em horas de alvorada,
ergueu-se a virgem da florida alfombra
e por montes de luz e planícies de sombra
seguiu, sem, entretanto, abandonar ainda
sua morada teraseana e linda.

Parte II

Num cume de montanha em flor, alcantilada,
tal como a que o pastor, imerso no seu leito
de imensa pradaria, satisfeito,
vê, atônito, erguendo a pálpebra pesada
e "espero ser perdoado" então murmura,
sob a luz que paira, há muito, na ampla altura;
num cume cor-de-rosa, que se erguia
no éter iluminado e recebia,
à tarde, a última luz dos sóis morrentes:
sobre esse cume, em plena noite, quando
mais bela e estranha a lua vai dançando,
é que se ergue um palácio; resplendentes
colunas riem, cintilam no leve ar
e o mármore de Paros, a faiscar,
ri de novo, bem longe, sobre vaga
que no abismo reflete essa montanha maga.
É sua base de estrelas em fusão
como, no ébano do ar, as que tombam e vão
prateando, ao morrer, a mortalha que as veste,
para assim adornar a morada celeste.
A abóbada, que ao céu prende radiosa tela,
nas colunas, de leve, a coroá-las, se deita.
Redonda, de um diamante, apenas, feita,
olha o espaço purpúreo uma janela.
E a luz vinha da mão de Deus, atravessando
a cadeia meteórica, abençoar
toda aquela beleza, a não ser quando,
entre o Empíreo e esse liame, sacudia
algum espírito a asa impaciente e sombria.
Dos pilares tombou, dos serafins, o olhar
nas trevas deste mundo; e as verdes cores graves
e plúmbeas, que costuma a Natureza
preferir para a tumba da Beleza,
contornaram cornijas e arquitraves.
E cada querubim, ali em volta esculpido,
que olhava de seu lar marmóreo, comovido,
parecia terrestre, em seu nicho, à penumbra,
como estátua da Acaia, em região que deslumbra.
Ó frisas de Balbec, Persépolis, Tadmor,
da Gomorra de encantos abissais,
oh, a onda hoje a vós se veio sobrepor
e é, para vos salvar, tarde demais!
Gosta o som de brincar nas noites de verão;
testemunha-o o rumor do entardecer cinéreo,
que em Eiraco escutava, outrora, em seu mistério,
quem contemplasse os astros da amplidão,
e que ouve sempre quem, perdido ao longe o olhar,
vê numa nuvem fusca a treva se adensar.

Não possui forma e voz mais palpável, sonora,
Mas, que é isto? Alguém chega e traz, consigo, agora,
um rumor musical... bater de asas parece...
silêncio... e o som depois se arrasta e desvanece.
Nesace está de novo em sua linda morada.
O esforço da veloz carreira alucinada
fá-la ofegar e as faces lhe enrubesce;
e a faixa que rodeia os seios virginais
rompeu-se com o bater do coração.
Parou, a descansar, no centro do salão,
sob a mágica luz, que lhe beijava
o cabelo dourado, e que aspirava
repousar, porém só podia brilhar mais!

Cada flor jovem a outra flor e cada
árvore a outra, em doce melodia
suspirava, feliz, na noite iluminada.
E a música, a gemer dentre as fontes, caía
sobre bosques, que a luz das estrelas recobre,
vales vestidos de lua; mas sobre
as belas flores, as cascatas de ouro
e asas de querubins, o silêncio imperava;
e só o som a irromper do espírito era o coro
da encantada canção que a donzela cantava:

"Sob lianas, campânulas
e sebes de mata
que abrigam quem sonha
dos raios da lua,
erguei-vos, ó seres
de luz, que pensais
nos atros, que atônitos
dos céus extraístes
para, dentre as sombras,
sobre vós descerem,
como o olhar da virgem
que agora vos chama.

Erguei-vos dos sonhos
por entre violetas,
cumprindo os deveres
desta hora estrelada.
Sacudi das tranças
pesadas de orvalho
o hálito dos beijos
que o repouso embalam!
(sem ti, Amor, seriam
felizes os anjos?),
beijos de amor puro
que o repouso embalam!
Sacudi das asas
tudo que as detém:
que o orvalho da noite
os vôos retarda.
E as doces carícias
deixai-as de parte!
São plumas nas tranças,
mas chumbo no peito.
Ligéia! Ligéia!
Tu, que és a mais bela
e a mais rude idéia
exprimes em música,
será teu desejo
na brisa embalar-te?
Ou, calma, em descanso,
como os albatrozes
na noite estendidos
(tal ficas nos ares),
vigiar, encantada,
a harmonia célica?

Ligéia, por onde
surgir tua imagem,
que magia pode
soltá-la da música?
Prendeste os olhares
num sono de sonhos,
mas erguem-se sempre
cantos protetores
de tua vigília:
o ruído da chuva
que salta nas flores
e volta dançando
no ritmo das gotas;
e o rumor que brota
da relva crescendo,
música das coisas,
não passam de cópias.
Corre, então, querida,
às fontes mais claras
que jazem ao luar...
ao lago ermo, rindo
num sonho de morte,
às ilhas de estrelas
que o seio lhe adornam,
e onde as flores toscas
misturam as sombras,
lá dorme, nas margens,
multidão de virgens.
Algumas, deixando
a fria clareira,
repousam com a abelha.
Desperta-as, ó virgem,
na várzea e no prado.
Sussurra, em seu sonho,
de leve, no ouvido,
o ritmo cantante
que esperam, dormindo.
Pois nada desperta
mais rápido os anjos,
que assim adormecem,
sob a luz fria,
do que o doce encanto
nunca superado
do ritmo cantante
que embala o repouso."

Anjos vieram, e espíritos alados,
mil serafins cortaram os espaços,
sonhos jovens aspirando em vôos estonteados...
Seres que sabem tudo, exceto a Ciência, aquela
luz que, ó Morte, caiu, refratada em teus laços,
longe, do olhar de Deus, sobre a distante estrela.
Doce era essa ignorância; e essa morte, mais doce.
Doce era essa ignorância: em NÓS, o próprio alento
da Ciência embaça o espelho da alegria.
para eles, um simum arrasador seria.
Que lhes adiantaria o atroz conhecimento
de que a Verdade é Engano e a Ventura é Má Sorte?
Era doce sua morte e, para eles, morrer
de um vida saciada era o enlevo final;
para além dessa morte inexiste o imortal,
mas o sono que pesa é do "Não-Ser".
Possa minha alma, exausta, ali habitar do eterno
Céu distante, e também tão distante do Inferno.
Que espírito culpado, em seu bosque trevoso,
não ouviu, daquele hino, o apelo clamoroso?
Dois só; caíram, pois o céu não dá perdão
a quem só ouve o bater do próprio coração.
A angélica donzela e o seráfico amado...
Mas onde estava o Amor, o cego amor
sempre fiel ao Dever austero? (Esforço vão
e buscá-lo na célica amplidão.)
Sem guia, o amor, caiu, desnorteado,
por entre "prantos de perfeita dor".

Tombou: que belo espírito era esse!
Vagueava pelas fontes que a hera veste
a contemplar a luz da abóbada celeste,
junto de seu amor, sonhando ao luar.
Cada estrela não é qual doce olhar
que sobre as tranças da Beleza desce?
E elas, e as fontes, tudo era sagrado
para seu coração, de amor povoado
e de melancolia. A noite foi achar
Ângelo, o jovem (noite de pesar)
junto a escarpado monte, numa penha
erguida sob o céu solene a que desdenha
os mundos estelares a seus pés.
Sentou-se com sua amada, o negro olhar,
qual de águia, o firmamento a pesquisar.
Para ela se voltou depois e, novamente,
até a Terra desceu, tremulamente.

"Que débil luz, não vês, querida Iante?
Como é delicioso olhar tão longe assim!
Bem diversa, naqueles outono, para mim
era ela, quando à tarde abandonei,
sem lastimar, seu paço fulgurante,
ó tarde que jamais esquecerei!
Beijava o sol morrente, em Lemnos, com magia
o arabesco salão dourado em que jazia,
os tapetes sem conta, os meus olhos fechados,
sob o peso da luz na noite mergulhados,
e antes cheios de amor, das flores, da neblina,
que no seu Gulistan evoca o persa Saadi.
Mas essa luz!... Dormi... E a Morte invade
os meus sentidos, na ilha peregrina,
tão de leve, que nem sequer pressente
o adormecido, que ela está presente.

"O último ponto então por mim pisado
foi Parthenon, o templo sublimado.
Suas colunas são de maior maravilha
do que a beleza que em teu seio brilha;
e quando o Velho Templo soltar veio
minhas asas, alcei meu vôo, alcei-o
como águia que da torre se alcandora,
vendo fugirem séculos numa hora.
Enquanto assim nos ares me embalava,
metade do jardim terreno se mostrava
a meus olhos, tal como um mapa aberto,
com sua ermas cidades do deserto.
E tanta era a beleza, Iante, ali presente,
que quase desejei ser homem novamente."

"- Meu Ângelo! E por que a eles voltar,
se aqui possuis mais luminoso lar,
campos mais verdes que nesse mundo afastado,
carinhos feminis... e amor apaixonado?

"- Mas ouve, Iante! Quando o ar me faltou,
tão suave, e a alma às alturas se lançou,
talvez numa vertigem, cuidei ver
o mundo, que eu deixara, a abismar-me num caos,
turbilhonando, ao léu de ventos maus,
rolando em chamas no ígneo firmamento.
Querida, então julguei que, em lugar de ascender,
eu caía, num lento movimento
oscilante, através de luminosa estrada,
até pousar em áurea estrela: nesta!
Mas foi rápido o tempo da descida,
pois era a tua estrela a menos distanciada...
Terrível astro! a vir, numa noite de festa,
como um Dédalo rubro, à Terra comovida."

"-Viemos... Só os da terra... mas não nós...
da deusa podem discutir a voz:
viemos de toda parte, meu amor,
pirilampos alegres, em revoada,
não indagues por quê; basta que o visse impor,
num gesto angelical, ELA, por Deus mandada.
Jamais o velho tempo, Ângelo, se deteve,
sobre mundo mais velo a abrir a asa de neve!
O olhar dos anjos, do pequeno e baço
globo não via mais que o fantasma, no espaço,
quando Al Aaraaf lançou-se a atravessar,
para alcança-lo, o mar que se constela!
Mas quando sua glória aos céus veio pompear,
como a Beleza, exposta a olhar terreno, brilha,
detivemo-nos, ante a humana maravilha,
e, tal como a Beleza, estremeceu a estrela."

Os amantes assim falavam e escorria
a noite, a declinar, sem que trouxesse o dia.
Caíram: porque os Céus esperanças não dão
a quem só ouve o bater do próprio coração.
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