sábado, 29 de agosto de 2009

Lucilene Machado (Sequência de Sonho)



Por hoje, bastava-me uma garrafa de vinho para embriagar-me. Espírito dionísico para beber um sonho. Mas o cálice da realidade impede-me conquistar a eternidade do céu de uma boca ou de qualquer paraíso feito de suspiros e palavras. A razão não compreende a emoção. Embates e embustes. A paixão vale pelo silêncio que engloba. Vale por tudo que não conseguimos dizer, por tudo que não conseguimos perguntar, porque muitas vezes as perguntas não são possíveis.

Debruço-me sobre o parapeito de uma janela que não me pertence. Nada me pertence. Poucas pessoas no mundo são tão despidas quanto eu. Tenho uma nudez que fere. Uma nudez que quer ser dividida. É sublime doar um pedaço de si. Uma mutilação que constrói sonhos. Quantos sonhos seriam necessários para desvendar o mistério de um homem? Talvez nenhum. Pode-se desintegrar os átomos de um homem com atitudes. Com algum impulso de sangue latino pode-se brindar belas descobertas. Mas amor é outra coisa. Amor é o nome que eu persigo e pelo qual me perdi algumas vezes. Fui infeliz em todas as felicidades. Minha alma é uma capela vazia esperando por um anjo. Um anjo cheio de pecados a fazer-me confissões.

A lua rasteja o futuro por caminhos inexplorados. Quero estar suficientemente viva para trafegar com meus sonhos por esses desígnios. Já não estarei confinada num canto do mundo com essa sobrecarga de imagens. Já não estarei precisando pensar, precisando concentrar-me na amarração do texto que toma corpo de crônica. Isso estica minha angustia. Queria pensar sem formas, mas já não posso. Tudo acaba padronizado. O medo de decepcionar, o medo de não ter medo... Toda palavra tem seu preço. Sou vítima de um sistema coletivo de encadeamento de idéias. Até o amor tem suas terminologias. Até o amor tem suas ciências. Mas hoje estou incurável. Quero um amor de botequim. Amor sem pressa e sem causa. É porque é, porque tem de ser. Um amor sem história, acontecendo ao acaso, como se eu nunca tivesse sonhado isso.

De verdade, quando se vive milhares de noites, já não se pode precisar em que noite antiga, muito antiga, se plantou o sonho. Deve ser quando raspei as pernas pela primeira vez, calcei sapatos de salto e todo mundo percebeu, "Essa menina cresceu, tá virando mulher". Estava concluído um ciclo. Nunca mais voltei ao sótão para brincar de bonecas. Voltei sim, para ver das alturas o destino que subia da terra. O destino tinha corpo e cheiro de homem. Senti vergonha do meu sentimento sem pudor. Vergonha dos meus pensamentos ousados. Meu corpo era um mar que precisava de muitos rios para satisfazê-lo. Era assim mesmo? Puberdade, ouvi na aula de ciências. Só não falaram da necessidade de simbiose de espírito. Mas, instintivamente iniciei a busca pelo amor real. Raramente o vivi por inteiro. Queria alcançar com a mão aquilo que está à altura da inteligência.

Mas essa memória afetiva me cansa! Poderia dizer que hoje estou pronta para o desafio, mas o amor tem viés que desconheço. Mal posso falar da anatomia. Tanta beleza em uma só. Tanto pecado num mesmo pecado. Resgate, remissão... Eros, Ágape, Fileu... gravitar em torno do outro... melhor mergulhar numa taça de vinho e lamber a emoção altruística (ou seria egoística?) de ter escrito esta página.

Fontes:
http://www.lunaeamigos.com.br/lucilene/indice.htm

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