quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte VI



SEGUNDA PARTE

ESTUDO DAS LENDAS

CAPÍTULO I

FAUSTO ou o homem que vende sua alma aos poderes do mal

Esse personagem imortal de Goethe — às vezes de Marlowe — soube, depois de velho, reconquistar a juventude, acumular bens, governar seu espírito com uma compreensão, quase divina.

O homem contrai desta forma uma aliança sobrenatural a fim de se alçar a um nível superior e, abandonando seu arcabouço original, projeta-se num outro ente espiritual.

Este conhecimento é tributário da dualidade da alma humana; e Mefistófeles endossa nossa dívida e nossos defeitos. Satanás se incumbe de nossos crimes e de nossas baixezas; é a válvula que permite ao homem, se libertar. Mas, depois de haver vendido seu bem mais precioso, o homem tenta zombar do Espírito do mal e almeja finalmente o espírito supremo da Bondade.

1. — A presença do diabo

Desde a criação do Mundo o diabo tenta nos corromper; ele é a origem da maldição celeste; evoca o assassínio de Abel, provoca o dilúvio e a destruição de Sodoma. Se quer tentar Jesus incita tempestades e violenta as virgens.

As concepções demonológicas encontram-se entre os povos mais diversos: árabes, babilônios, assírios, bem como no pensamento hebraico, na religião persa, na doutrina cristã, na filosofia grega. Tiveram lugar dominante na vida e nos escritos.

Mas o cristianismo, com o fito de despertar a atenção do público cansado de dissertações filosóficas de mistérios, criou o personagem literário do diabo. Não é mais uma divindade inatingível mas apenas um ser ridicularizado, válvula indispensável para o rigor do catolicismo e da justiça divina. É assim que aparece em Le jeu des Vierges sages et des Vierges folles (O jogo das virgens ajuizadas e das virgens loucas) em La premiere joie de Marie (A primeira alegria de Maria) etc. Cohen busca esse rasto maravilhoso no seu Théâtre français au Moyen Age (O teatro francês na Idade Média).

2. — As duas formas de lenda

Fausto reflete a geração em que evolui; a conclusão difere conforme o gosto do autor ou o interesse da religião. Esse homem que vendeu sua alma morre amaldiçoado, abandonado pelo céu: é o drama de Marlowe e dos protestantes. Em compensação, esse homem orgulhoso que se perverteu para satisfazer sua curiosidade natural e que logo em seguida se revoltou contra Satanás receberá o perdão. Surge então o drama cristão de Goethe.

3. — Origem da lenda

A primeira forma da lenda parece ser oriunda da Ásia, com La légende de Théophile (A lenda de Teófilo), de que Eutiquiano, sacristão da igreja de Adana, teria sido testemunha ocular.

Teófilo, vidama — administrador — muito estimado, é injustamente destituído de seu cargo. A fim de reencontrar seu posto, pediu auxílio a um mágico. Satanás concluiu o pacto. Apesar do êxito, Teófilo, arrependido, reza durante quarenta dias e quarenta noites implorando à Virgem Maria a restituição do ato satânico. Teófilo confessa publicamente o seu ato e morre. Essa lenda foi muito apreciada na Idade Média: Saint-Bernard, Voragine, Rutebeuf utilizaram-na. No tímpano do portal norte da Igreja de Notre-Dame de Paris acha-se representado esse milagre; na mesma ocasião, Viollet-le-Duc põe em cena o artista Biscornet assinando um pacto com o demônio a fim de completar sua obra (Serralheria das portas de Notre-Dame de Paris).

4. — Outras formas da lenda

Em 1220, Cesário d’Heisterbach escreveu Histoire de Militarius (História de Militarius) que, depois de uma vida de deboche, vende-se ao diabo e, finalmente, obtém o perdão da Virgem. Com a Légende du chevalier qui donna sa femme au diable (Lenda do cavaleiro que deu a mulher ao diabo) de origem picarda (século XIV), a virgem, tomando o lugar da mulher caluniada, põe em fuga Satanás.

Mais próximo de La légende de Théophile está o texto brabantês La légende du chevalier voué au démon et sauvé par sainte Gertrude (1612) (Lenda do cavaleiro ao demônio e salvo por Santa Gertrude) (G. de Rébreviett) e La farse de Munyer (A farsa de Munyer).

Dessa forma, nessa espécie de imaginaria popular — assaz rica em textos semelhantes — a Virgem intercede em favor de homens orgulhosos, perdulários e jogadores.

5. — A lenda de Cipriano

Santa Justina, virgem de Antioquia, é atormentada por Cipriano que se dá à magia; mas Cipriano constata que “o crucificado é maior do que todos os diabos” converte-se e torna-se bispo. Voragine acentua dessa forma o poder esotérico do sinal da cruz. Calderón recolhe a lenda para seu Magicien predigieux (1637) (O mágico prodigioso). O pacto foi também suprimido em São Cristóvão ou Santa Teodora.

Em Saint Basile, évêque (São Basilio, bispo), Voragine confunde o amor com o desejo de se elevar; Urádio, um jovem escravo, que se vende ao demônio para poder esposar a filha do seu patrão, São Basilio conseguirá recuperar a célula demoníaca. Achille Jubinal, depois de Jehan de Saint-Quentin, narra em seus Contes, dits et fabliaux, várias lendas semelhantes (Le dit du chevalier et de l’escuier - Os ditos do cavaleiro e do escudeiro), Le dit du pauvre chevalier (O dito do pobre cavaleiro), Le dit des II chevaliers (O dito dos II cavaleiros). Mira de Amescua: L’esclave du démon (Escravo do demônio) associa D. Juan e Fausto. O eremita D. Gil sucumbe à tentação; dá sua alma a Satanás para poder abraçar uma freira que não passa de um esqueleto. O pavor restitui seu pensamento a Deus e São Miguel triunfará sobre Satanás.

Moreto: Tomber pour se relever (Cair para se reerguer), Calderón: Joseph des Femmes (José das Mulheres), Molina: Le damné pour manque de confiance (O maldito por falta de confiança), pensam ainda na doutrina luterana. Thomas Mann, no Doutor Fausto narra vários contos semelhantes (capítulo XIII).

6. — O ensinamento da lenda

Assim sendo, para atingir um fim ardentemente desejado um infeliz vende sua alma ao diabo, seja por intermédio de um judeu, seja por evocação direta graças a fórmulas mágicas. O pacto é escrito com sangue, marca indelével que o torna indissolúvel por um período de sete anos. A vítima arrependida é arrancada a Satanás por meio de uma intervenção celeste. Esta luta é de quarenta dias — prazo da redenção. Substitui-se a Virgem pela santa da região para que a autenticidade seja incontestável. Teófilo busca a dignidade e as honrarias; os cavaleiros se ocupam de riquezas; Urádio pensa no amor; e Fausto, na juventude e no gênio.

A Igreja reformada serve-se da lenda de Fausto para combater o ensinamento do catolicismo.

O inferno triunfa nas literaturas alemã, inglesa, escandinava e holandesa.

7. — O pacto satânico e a crendice popular

Fortemente instrumentada, a crença popular é de que toda inteligência superior é alimentada por um trato desonesto. Procura-se solapar o poder da Igreja católica. O poder temporal do Papa Silvestre II é oriundo da colaboração do diabo que fez com que um pastor de Auvergne fosse elevado às mais altas dignidades: é o “homem dos três R” por ter assumido postos em Reims, Ravenne e Roma. Abelardo, precursor do racionalismo moderno, tem a exigência de Fausto; esse herói da crítica e da independência é derrotado por São Bernardo, conservador da ordem. Apolônio de Tiano, Sião, o Mágico e os papas desde João XIII até Paulo II período ativo da Reforma — são assim caluniados por espíritos invejosos do seu poder. Alfred Neumann, ao escrever O diabo, sob o nome de Necker, servidor de Luís XI, mostra claramente a opinião do povo que pretende ver no êxito de um homem surpreendente um poder oculto.

8. — O personagem histórico

Fausto, nascido nos últimos anos do século XV, talvez em Kundling, perto de Bretten, teria morrido em 1543 ou, conforme o médico Bégardi, em 1539. E. Faligan na sua Histoire de la légende de Faust (História da lenda de Fausto) cita escritos históricos que provam a sua existência; Fausto, em 1507, era professor, em 1509, bacharel em teologia e recebido na Faculdade de Heidelberg. Esse indivíduo preguiçoso, ladrão e dado à embriaguez, discípulo de Lutero, tem uma vida movimentada. Toma como cunhado o próprio Diabo e chama o seu cão de Prestigiar. Prematuramente envelhecido pelos excessos, sua morte impressiona a imaginação popular. Sua vida estranha e sua morte cruel — talvez crapulosa — deram origem a uma lenda.

9. — Nascimento da lenda

Em 4 de setembro de 1587, Johan Spies publica em Francforte L’histoire du docteur Faust (História do doutor Fausto) (autor anônimo). Depois da evolução psicológica dessa alma transviada, as suas aventuras extraordinárias são relegadas, desordenadamente, para o fim do livro.

A edição de Widmann em 1599, acentua o caráter teológico: é a contribuição protestante. L’histoire de Wagner (A história de Wagner) é a repetição da de Fausto. Fredericus Scotus Tolet publica em 1593 uma vida de Fausto na qual ele viaja como sendo Cristóvão Colombo. Marlowe escreve uma farsa trágica, violenta e sem igual, a Tragique histoire du docteur Faust (A trágica história do doutor Fausto) (Londres, 1604). É uma obra profundamente humana na qual o autor conclui que o inferno está em nós mesmos. Com o teatro de fantoches — os “puppenspiele” — Fausto perde seu conteúdo ideológico para tornar-se o impostor; o elemento trágico passa a residir apenas no destino do herói, ficando a parte cômica com Hanswurst ou Kasperle, Polichinelo alemão.

Essas numerosas representações inspiram Dreher e Schütz e depois, Geisselbrecht.

10. — O drama de Goethe

Em 1773 Goethe inspira-se no teatro de fantoches. Devolve a essa lenda protestante sua nobreza primitiva: Fausto tornar-se-á um Abelardo alemão. Símbolo da vida humana, esse drama é o do saber, o da paixão. Mas Fausto aspira a uma verdade superior: será salvo apesar de seus erros. Mefistófeles é a antítese das boas qualidades do sábio. Esse desdobramento de personalidade é mais notável em L’étrange cas du docteur Jeckyll (O estranho caso do doutor Jeckyll) com Stevenson que identificou o vício e a virtude. Essa cumplicidade demoníaca reteve a atenção de Goethe, e o mal — força consciente — seria o reativo do bem. Satanás torna-se então o servidor de Deus. “O diabo é um companheiro que, provocando o homem, fá-lo também agir.” Aliás, o prólogo de Fausto assemelha-se à conversação entre Deus e Satanás (Job, I, 6; II, 3) que é encontrada no ensaio de Abraão (Job, 17, 1812).

Não será esse o licor da imortalidade que foi apresentado pelo médico dos Deuses ao Vichnu por ocasião de um dos seus avatares?

Além do valor esotérico desse drama, eis que aparece a heroína Margarida, uma das mais belas almas humanas. Mas nessa luta de amor pueril, sem escrúpulos e sem remorsos, a lei da fatalidade esmaga a inocência. Se Fausto não houvesse soçobrado na desvairada noite de Walpurgis, teria representado o amor imortal.

Goethe, entre setenta e seis e oitenta e dois anos escreveu o segundo Fausto, soma de saber e conhecimento. Nesse poema metafísico, de simbolismo muitas vezes obscuro, Fausto — a ciência — casa-se com Helena, mulher perfeita, de beleza antiga e plástica, símbolo da iniciação. Euforion é a alma no último grau da encarnação, libertada de suas correntes materiais.

Dois grandes filmes foram inspirados nesses temas equivalentes, um de Marcel Carné, Les visiteurs du soir (Os visitantes da noite) e o outro de René Clair, La Beauté du diable (A beleza do diabo).

11. Sucessão literária

Fausto enamorado, faz lembrar D. Juan, e Grabbe desenvolve essa comparação analisada por Micheline Sauvage: Le cas de Don Juan (O caso de D. Juan) (Le Seuil, 1953). Mas Fausto, romântico. como Chamisso e Lenau, suicida-se. Intelectual puro para Lessing, é um orgulhoso revoltado para Lenz, Muller, Klinger. O Fausto de Heine desapareceu; sua ação é muito confusa conforme Soden, Klingemann e Stolte.

Herói de todas as dúvidas e de todos os conflitos humanos, o Fausto de Turguenief é alvo do amor culpável. Mac Orlan o faz viver entre rufiões e raparigas e uma prostituta endossa essa terrível dívida (Margarida da noite). Em compensação, Mon Faust (Meu Fausto) de Paul Valéry, é uma criatura que esgotou tudo o que a vida pode dar. Mefistófeles é desviado pelas transformações do mundo moderno. Essa fresca sensualidade aparece na comédia satírica, Lust; depois de La demoiselle de Cristal (A jovem de Cristal), vem Le Solitaire (O solitário) que é o drama da negação de nossa civilização; sonho intelectual de M. Teste ou de Leonardo da Vinci, cada homem integrou-se de uma parcela diabólica. As duas peças estão inacabadas; se Lust deixa supor o triunfo do amor, observamos o pensamento trágico já assinalado por Rhumbs (Rumbas), Variétés (Variedades), Analectas (Analetos).

Thomas Mann escreveu a tragédia de um músico obcecado: O doutor Fausto. Livro de uma extraordinária densidade e anotações perturbadoras, o Diabo aparece durante a Idade Média. Lembramo-nos de Paganini cuja virtude era classificada entre a dos personagens diabólicos e que não pode ser enterrado religiosamente (as tribulações de seu cadáver duraram cinquenta e sete anos). Ferchault observa, porém, os músicos inspirados por esse tema. São eles, Schumann, Berlioz, Gounod, Liszt, Wagner e outros. Stravinsky orquestrou L’histoire du soldat (A história do soldado) de Ramuz — na qual um desertor vende a sua alma — num verdadeiro milagre de realização instrumental sonora. Bellaigue se filia aos pintores: Étude artistique et littéraire sur Faust (1883) (Estudo artístico e literário sobre Fausto). Depois de Ary Scheffer haver pintado Margaridas, as melodias de Berlioz transpareceram em Delacroix.

Não poderíamos deixar passar em silêncio La merveilleuse histoire de Pierre Schlemihl (A maravilhosa história de Pierre Schlemihl) na qual Chamisso aponta um pacto particular; um homem vende a sua sombra pela bolsa de Fortunato. A tentação é feita em dois estágios; o diabo, humilde como nos tempos medievais, compra apenas a sombra na esperança de recuperar a alma quando a desgraça se consumar. As sombras aparecem também na obra de Mac Orlan (Père Barbançon) na qual a sombra de Encolpe instiga uma luta sorrateira; se bem que o pacto não apareça, a atmosfera diabólica é a mesma.

12. — Conclusão

Esta lenda de origem satânica nasceu com L’histoire de Théophile. Pelo poder da prece, o homem foge ao jugo do mal. O protestantismo consagra o triunfo do inferno. Fausto denuncia uma crise literária e moral, é um universo resumido. O drama de Fausto continua a ser, assim, o drama humano por excelência.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

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