domingo, 28 de fevereiro de 2010

Belmiro Braga (100 Trovas)


1
As almas de muita gente
são como o rio profundo:
- a face tão transparente,
e quanto Iodo no fundol ...
2
Em ti, minha Mãe, se encerra
todo o meu maior troféu:
- guardas num corpo de terra
uma alma feita de céu.
3
Fiz na vida o meu escudo
desta verdade sagrada -
o nada com Deus é tudo
e tudo sem Deus é nada.
4
Quem, mesmo nas alegrias,
de lastimar não se furta
de ver tão longos os dias,
para uma vida tão curta?
5
Pobre de mim! Por desgraça
meu coração é um coador:
nele, o riso escorre e passa,
e fica tudo o que é dor.
6
A beleza não te atrai?
Só te casas por dinheiro?
Tu pensas como teu pai,
que morreu velho e ... solteiro.
7
Saudade... palavra linda,
de sete letras... Saudade
é noite que tem ainda
lampejos de claridade.
8
Casa em março Ester Macedo
e em julho é mãe... Ora, o alarde!
O filho não veio cedo,
o esposo é que veio tarde...
9
Só mesmo Nossa Senhora
pode dar paz e conforto
à desgraçada que chora
a ausência de um filho morto.
10
Muitas vezes imagino,
nos meus dias desolados,
que o meu coração é um sino
dobrando sempre a finados.
11
Eu não lamento o revés
do morto que se fez pó;
do vivo, que espera a vez,
desse sim, eu tenho dó.
12
Quantos mortos trago vivos
no fundo do coração,
e dentro em mim quantos vivos
há muito mortos estão! ...
13
Olhaste Jesus na Igreja
demais. E tanto o tens visto ...
Fazes-me assim ter inveja
da própria imagem de Çristo.
14
Não devo guardar ressábios
da nossa extinta afeição:
morto me trazes nos lábios
e, vivo, no coração,
15
Eu morro por Filomena,
Filomena por Joaquim,
o Joaquim por Madalena
e Madalena por mim.
16
A vida, pelo que vejo,
hoje é vale e amanhã cimo:
- A quantos pobres invejo
e a quantos ricos lastimo!
17
Vivo, encheu (a História o prova)
com suas glórias o mundo,
e, morto, não enche a cova
de quatro palmos de fundo.
18
Teu coração é morada
que não atrai, felizmente:
- Quem nele arranja pousada
encontra a cama ainda quente.
19
Meu coração é uma ermida
toda enfeitada de flores,
onde conservo escondida,
Nossa Senhora das, Dores.
20
Uma princesa parece
pelos trajos do alto preço,
mas quanta gente conhece
seus vestidos pelo avesso! ...
21
Os beijos, segundo os sábios,
dados com muita afeição,
não deixam sinal nos lábios,
mas deixam no coração.
22
Num tronco seco, sem vida,
minha mão teu nome abriu
e o tronco seco, em seguida,
reverdeceu e floriu.
23
Desilusões, desenganos,
tudo a velhice nos traz,
mas existe, além dos anos,
a eterna bênção da paz
24
Politiqueiros... Que súcia !
Segundo as leis de Lavater,
o que lhes sobra em astúcia,
é o que lhes falta em caráter.
25
Dizem que a lágrima nasce
do fundo do coração...
Ah! se a lágrima falasse,
que doce consolação!
26
Vi teus braços... que ventura!
teu colo ... as pernas, que gosto!
Agora, tira a pintura,
que eu quero ver o teu rosto.
27
Quis a sorte que eu te visse,
quis o amor, que eu te adorasse,
quis o dever que eu partisse,
quis a paixão que eu ficasse.
28
Mulheres que eu vi no banho,
vejo-as depois num salão!
- Se pelo rosto as estranho,
pelas pernas sei quem são.
29
Por ver-me alegre e contente,
julga-me o mundo feliz:
nem sempre o coração sente
aquilo que a boca diz.
30
Na justiça tem confiança
e verás, depois, surpreso
que, por ter venda e balança,
ela te rouba no peso.
31
Muitos supõem a ventura
ver em meus olhos brilhar,
quando esse brilho é a tortura
de não poderem chorar.
32
A mulher para ser Venus
deve ter cintura fina,
olhos grandes, pés pequenos
e língua bem pequenina.
33
Que grande, triste verdade
me sussurra o coração:
- a dor é uma realidade,
a alegria - uma ilusão...
34
Quanta vez junto a um jazigo
alguém murmura, de leve:
- Adeus para sempre, amigo!
E diz-lhe o morto: - Até breve!
35
Natal! E eu sinto em minha alma
cantando uma ave... Natal!
No dia azul - quanta calmal
Parece a noite um rosal!
36
O que perdemos na vida,
procuramos sem achar,
exceto a mulher perdida,
que achamos sem procurar...
37
Tu não vês que vivo louco
por causa desta afeição?
Coração, sossega um pouco,
coração sem coração!
38
Muito mais desenxabido
que a goiabada sem queijo,
é te abraçar, bem querido,
e não poder dar-te um beijo.
39
(Mãe)
Acima de tudo, acima
do céu, te devemos pôr:
o teu nome não tem rima,
nem limite o teu amor.
40
Coração, bate de leve;
deixa os teus sonhos horríveis,
que um coração nunca deve
sonhar coisas impossíveis.
41
Como juiz, reto e calmo
posso afirmar sem receio:
- Mulher de boca de palmo
tem língua de palmo e meio.
42
Amigos ... E quanta gente
não crê na verdade atroz
que, no mundo, há um somente:
Aquêle que existe em nós.
43
Natal. No céu e na terra
quanta alegria! Natal!
A paz adoçando a guerra,
o bem adoçando o mal.
44
Teus olhos, Risália amada,
me recordam dois ladrões,
sob a pálpebra rosada
tocaiando corações...
45
Olhos pretos, dois acesos
e recendentes carvões:
- Par de algemas que traz presos
corações e corações.
46
Prezado amigo, perdoa
a resposta demorada:
tu sabes, quem vive à toa,
não tem tempo para nada.
47
Não conhecem mesmo os sábios
este caso singular:
- Fala a mente pelos lábios
e o coração pelo olhar.
48
A mulher, além de tema,
faz tudo com perfeição,
que até nos passando a perna,
tem a nossa gratidão...
49
No anel que me deste, pego
e vejo que é falso, crê.
- Se o amor verdadeiro é cego,
também falso é o amor que vê
50
Nossa Senhora Sant'Ana,
permita que possa um dia
mobiliar minha choupana
com as "cadeiras de Maria!"
51
Na vida, maior ventura
nada nos pode causar
do que a tépida ternura
que nos vem de um doce olhar.
52
De Júlia o pesar profundo
parece uma coisa pouca;
- vive na boca do mundo
por ser beijada na boca.
53
Aquele que dá esmola
tem duas vezes a palma:
- Primeiro, ao pobre consola,
depois, consola a sua alma.
54
Deus do amor, Deus da esperança,
conduze por flóreo trilho
os passos dessa criança
- lindo filho do meu filho!
55
Há dois poderes no mundo
que tudo movem. Primeiro:
- Mulher bonita. Segundo:
dinheiro, muito dinheiro.
56
Sobre o triste chão de abrolhos
em que tu vieste ficar,
meus tristes, cansados olhos,
não se cansam de chorar.
57
Dos beijos me lembro, Glória,
mas não do sabor, meu bem.
Por que a fronte tem memória
e a minha boca não tem?
58
Na terra que te consome,
nem uma triste inscrição!
Pudera! Porque teu nome
não me sai do coração.
59
Ouvindo-a falar da vida
dos próprios pais, tive pena
de ver língua tão comprida
numa boca tão pequena.
60
Onde um berço se embalança
há riso, ventura e luz:
- Sobre os berços, doce e mansa,
paira a sombra de Jesus.
61
Do berço à tumba há um caminho
que todos têm de transpor:
de passo a passo - um espinho,
de légua em légua -uma flor.
62
Chegaste, afinal! Chegaste
no instante mais que preciso;
vens trazer a quem mataste
as rosas de um teu sorriso...
63
Noite de núpcias. O Gama
encontra a esposa envolvida
num lindo roupão e exclama:
- Posso, enfim, ver-te vestida!
64
A mãe, que aperta no seio
um filho de seu amor,
tudo enfrenta sem receio:
a calúnia, a injúria e a dor.
65
Minha vida é uma jangada
num mar revolto de escolhos,
baloiçando sossegada
à doce luz dos teus olhos.
66
Tenho um neto e essa ventura
veio florir os meus dias,
que um neto é um sol que fulgura
num céu de nuvens sombrias.
67
Arvore és santa: os teus ramos
baloiçam ninhos de amor;
és abrigo, e em ti achamos
sombra, fruto, aroma e flor.
68
Entre o berço e a sepultura
um relâmpago fugaz,
mas que séculos perdura
pelo que nele se faz!
69
A mãe que a um filho acalenta
- tal o seu amor profundo -
tem a impressão que sustenta
em seus braços todo um mundo.
70
Quem maldiz a vida, prova
não conhecer que ela é vã:
- no espaço do berço à cova
há ontem, hoje, amanhã.
71
Coração de coração
quando quer bem, faz assim:
- põe nas arestas de um não
toda a pelúcia de um sim. . .
72
A caridade... Consola
ao vermos que ela é perfeita,
não por ser grande a esmola,
mas no modo por que é feita.
73
Quem ama, há de conhecer
a triste escala do amor:
- Desejo, ilusão, prazer,
cansaço, fastio e dor.
74
O noivo, da noiva outrora
via o rosto e nada mais;
se o rosto não vê agora,
todo o resto vê demais...
75
Que em vossos risos mais brilho
nas alvoradas não vemos;
nos olhos ternos de um filho
é que nós, Pais, nos revemos.
76
Assim como brotam flores
do triste, empedrado chão,
em rima brotam-me as dores
que trago no coração.
77
Da tua voz a frescura
feita de encanto e de olor,
lembra um veio de água pura
sob roseiras em flor.
78
Para ser feliz, um louco
costuma me aconselhar:
- deverás desejar pouco
e quase nada esperar. . .
79
Para um pai o bem se encerra
num berço - como um troféu,
as alegrias da Terra
e as esperanças do Céu.
80
Vi-a apenas uma vez;
uma só; não mais a vi,
e tal impressão me fez,
que nunca mais a esqueci.
81
Há no livro uma luz calma
que torna o mundo maior:
- quem vê pelos olhos da alma,
vê mais longe e vê melhor.
82
Na minha infância, dezembro,
aos outros meses igual
passava triste... e eu me lembro
de que não tive Natal...
83
- Toda amizade - é fingida,
todo mal - recompensado,
toda injustiça - aplaudida
e todo amor - enganado...
84
(A Maria Teresinha)
Nestes dois nomes se encerra
um rutilante troféu:
- Se Maria é a flor da terra,
Teresinha é a flor do céu.
85
Nosso amor, que ardia em brasa,
foi morrendo de mansinho,
e entre a minha e a tua casa
mal se descobre o caminho ...
86
Filha - o sorriso que encanta,
noiva - é a flor que perfuma,
A esposa - a graça de pluma,
e mãe - a graça da santa.
87
Maio, outrora tão ridente,
como vive triste agora!
Que saudades tem a gente
daqueles maios de outrora!
88
Quantas vezes tenho ouvido:
- Como ele ri de prazer!
Quando esse riso é um gemido
que aos lábios me vem morrer...
89
Fogem-te da alma os pesares,
a treva aos teus olhos brilha,
toda vez que tu beijares
esse amor, que e a tua filha.
90
Teus olhos, lagos risonhos,
de escuras margens em flor,
ah! se eu pudesse os transpor
no bergantim dos meus sonhos! ...
91
Correm-te os dias serenos
e um ano vem e te traz:
uma esperança de menos,
um desengano de mais.
92
Quando a mulher quer, eu acho
que nem Deus a desanima:
- É água de morro abaixo,
ou fogo de morro acima.
93
Um bacharel, meu vizinho,
quer saber por que razão
eu faço um verso "assinzinho"
e o denomino... versão...
94
Risália, naquelas flores
que te dei à despedida,
entre lágrimas e dores,
eu pus toda a minha vida.
95
O maior dos meus desejos
é ver-te, vendo com gosto
eu entupir com meus beijos
as covinhas do teu rosto...
96
Só duas cores havia
de rosas que aqui registo:
a cor dos pés de Maria
e a cor das chagas de Cristo.
97
Se eu fosse uma flor, querida,
queria, cheia de anelos,
morrer ditosa e esquecida
na noite dos teus cabelos ...
98
Se eu fosse uma fonte, nada
me privaria do gesto
de ver-te em mim reclinada,
para em mim veres teu rosto ...
99
Raio de sol ser desejo
para um dia (oh! que ventura!)
depor-vos na fronte um beijo
e vos ver ainda mais pura...
100
Arvore seca, nem flores
nem sombra e frutos dou mais:
mataram-me a seiva as dores
continuas dos vendavais.
___________________

Fonte:
JORGE, J. G. de Araujo e OTÁVIO, Luiz (organizadores). 100 Trovas de Belmiro Braga. RJ: Editora Vecchi, 1959.Coleção Trovadores Brasileiros. volume 1.

Heloisa Buarque de Holanda (26 Poetas Hoje Digital)


"Frente ao bloqueio sistemático das editoras, um circuito paralelo de produção e distribuição independente vai se formando e conquistando um público jovem que não se confunde com o antigo leitor de poesia."

O parágrafo acima poderia se referir ao novo paradigma surgido com a era digital, ou às dezenas de saraus de poesia que surgem hoje na perifeira de São Paulo, mas não. Consta no prefácio escrito por Heloisa Buarque de Hollanda para o livro 26 poetas hoje (Aeroplano, 2007, 6° ed.), em 1975. Naquela época, enquanto no mundo girava a roda de aquários e a geração hippie, inspirada na sua predecessora beat, vivia sua onda, no Brasil corria solta a censura e a repressão militar. Foi o período do chamado vazio cultural, diagnosticado pelo jornalista Zuenir Ventura e decorrente do silenciamento forçado das vozes criativas.

À margem das atenções, pelo seu poder de audiência reduzido, a poesia tornou-se uma área de livre manifestação, abarcando frustrações, fosse da juventude, fosse da esquerda. Proliferavam os volumes de produção independente, vendidos diretamente pelo autor, impressos em mimeógrafos, confeccionados com originalidade e esgotados rapidamente. A poesia, pelo menos no Rio de Janeiro, acontecia e parecia estar em toda parte: em recitais, lançamentos, portas de teatro e bares da moda.

O livro organizado por Heloisa tinha por intenção "reunir num livro 'de editor', e, portanto num livro que se insinuasse num circuito mais amplo, manifestações isoladas ou praticamente isoladas, que eu percebia como importantes no campo da cultura e no campo da literatura", disse a crítica literária à revista José no ano seguinte da publicação do livro. Os poetas escolhidos, de diferentes gerações e motivações, portanto desorganizados como grupo, eram todos praticantes de uma mesma dicção ligada ao cotidiano e donos de uma atitude de desierarquização do espaço nobre da poesia. Uma revisitação mais forte do ideal modernista de 1922. 26 poetas hoje (Aeroplano) foi além do pretendido e virou espécie de retrato oficial do que é considerado o último grande rótulo da poesia brasileira: a poesia marginal.

Logo de cara, o livro obteve enorme repercussão nos jornais e atiçou como nunca o meio acadêmico, impulsionando a carreira de crítica literária da já estabelecida professora universitária Heloisa Buarque. Essa história está contada em Escolhas: uma autobiografia intelectual (Lingua Geral): "Para meu espanto, a antologia teve uma repercussão inexplicável. Sou convidada para conferências, seminários, entrevistas. O pequeno volume da Editora Labor foi resenhado e escrutinado em um sem número de jornais e revistas. Os jornalistas se entusiasmavam com uma 'novidade' para os espaços melancolicamente vazios de seus cadernos e suplementos culturais. Os professores e criticos dividiam-se frente à uma possivel 'agressão' à instituição literária", escreveu Heloisa no seu mais recente livro.

Hoje, 26 poetas hoje (Aeroplano) transformou-se em uma antologia clássica. Os poetas nela presentes, por ironia, se tornaram cânone e temas de teses de mestrado e doutorado, quando antes eram sequer considerados literatura. Alguns já estão mortos, como Torquatto Neto, Ana Critina César e Waly Salomão; outros ainda vivem a poesia, como Roberto Piva e Chico Alves; um, Roberto Schwartz, um dos maiores críticos literários em atividade; outros, como Chacal, Capinam e Geraldo Carneiro, roteiristas e compositores.

Fonte:
http://portalliteral.terra.com.br/blogs/26-poetas-hoje-digital

Aparecido Raimundo de Souza (O Encantador de sonhos)


“Quid scribit, bis legit”

“De médico e de louco todos temos um pouco. E de escritor também”- disse Harold Robbins em 1998 numa de suas entrevistas em Nova Iorque. Naquela época, isso já provava que um número cada vez maior de aspirantes sonhava com o fantástico mundo literário. De fato. Ainda hoje, quase dez anos depois, não são poucas as pessoas que buscam uma porta de editora aberta, de acesso fácil à publicação de sua obra, de um editor que acredite no talento do autor principiante e ofereça, a ele, a oportunidade tão almejada de ver seus trabalhos publicados e, claro, a disposição do respeitável público nas prateleiras das livrarias mais concorridas do país.

Nesta terra onde tanto se fala e se apregoa em propagar o livro e a boa leitura àqueles mais carentes, sabemos que, no fundo, por detrás das coxias, tudo não passa de pura balela, conversa fiada para boi dormir. Na verdade, o governo não está preocupado com a educação dos jovens, em mostrar ao mundo o talento de seus compatriotas. Ele quer que nossas crianças sejam, no amanhã – não o futuro da nação, mas um bando de analfabetos, tipo vaquinhas de presépio – de preferência que não saiba discernir um automóvel de uma bicicleta.

Todavia, apesar dos pesares, nem todos pensam assim. No meio dessa cambada de oportunistas da pior espécie, encontramos alguém que ainda pensa em estar do outro lado da porta, de braços abertos, à espera, para dar as boas vindas ao escrevinhador desconhecido. É o caso de Albert Paul Dahoui que, no intuito de “facilitar a vida de quem sonha em fazer livros e conquistar leitores”, abriu uma editora, no Rio de Janeiro, a Corifeu, que vem publicando, com regularidade, uma gama de novos talentos, como Dilson César Devides - 30 anos de Rock: Raul Seixas e a cultura brasileira de 1970 à contemporaneidade; Mário Alvim - Via Láctea; Gabriel Torres - Conspiração; Jurandir Araguaia - O Homem que não bebia cerveja; José Eduardo Stamato- Tempo de transformação; Angélica Borges - O Monge; Dy Lugon - Momentos; José Cornetta - A Construçao do ser; Julio Silva - Sonhos&Desejos; Antonio Valter Kuntz - Original Dewey; Diogo Santana - Fé e anarquia, Orlando J.D. Corrêa - Urrando no trecho e tantos outros.

Além de editor, Albert é também escritor. Acabou de lançar “O Sucesso de Escrever”, uma obra excelente que “coloca nos trilhos o potencial literário de cada pessoa”. Nesse opúsculo são abordados assuntos que vão desde a criação dos personagens, a estrutura de uma trama em todas as suas nuances, passando pela lógica da construção do começo, meio e fim, culminando com a consecução do trabalho como um todo.

O livro não trás fórmulas matemáticas como “O Homem que calculava, de Malba Tahan, nem se compara a manuais de especialistas que ensinam como se deve ou não escrever. Acima de tudo, o autor busca, de maneira simples, mostrar aos novatos que os “eventos iniciais precisam ser dinâmicos, a ponto de impactar o leitor, de cara, a ponto que, em nenhum momento, ele venha a se desinteressar pela leitura”. Esclarece que o meio do livro deverá alternar passagens de ritmo rápido para passagens mais lentas, dando tempo, ao leitor, para que saboreie e se deleite melhor com os aspectos íntimos de cada personagem ou situações e, sobretudo, a maneira como elas são apresentadas.

“O sucesso de Escrever” fala, ainda, das resoluções que devem ser objetivas, das frases longas, cheias de vírgulas, dos parágrafos extensos demais e cansativos. Discorre sobre as descrições longas, dos personagens, de palavras pouco usadas, ou daquelas muito rebuscadas, nas quais o cidadão leigo e menos desatento, precise, de um dicionário ao alcance das mãos.

Dahoui é, acima de tudo, um inventor de assombros e, mais que isso, ajuda o sonhador a construir suas fantasias mais estrambóticas, a sonhar com os pés no chão, a encontrar seu caminho sem se distanciar da realidade em que vive. Excelente, pois, para quem carrega, no sangue, o espírito aventureiro de um Veríssimo, ou de um Fernando Sabino. Recomendável para todos que se aventuram nessa senda quase intransponível de se tornar alguém reconhecido dentro de um universo cada vez mais fechado. Ser escritor, neste país, é como andar de mãos dadas com as ilusões que nascem da alma, mas igualmente com os pés atados e, pior, ladeado por um cotidiano invariavelmente bloqueado e desestimulante. O livro de Dahoui nos leva a acreditar piamente que não estamos ilhados no meio de outros escritores famosos e de renome, nem somos um Robinson perdido entre os demais semelhantes.

Fontes:
http://www.paralerepensar.com.br (6 agosto 2007)
Imagem =
http://dry-martini.blogspot.com

Mário Bortolotto (Poesias Escolhidas)


O CAMINHO MAIS CURTO PRO INFERNO

Ah, os dramaturgos
com seus textos suplicantes
que são a extensão doentia de seu criador.
Tem um que sempre participa de concursos de dramaturgia
dia desses ganhou uma menção honrosa
e começou a acreditar que agora sim, vai chegar lá.
Ele me disse exatamente assim:
Marião, agora é a minha vez!!
Confesso que fiquei assustado com tanta determinação.
Tem outro que trabalha em jornal e está pensando em escrever um romance.
Eu dou a mó força.
Tem outro que só está dando um tempo na dramaturgia,
porque sabe que o seu negócio mesmo é cinema.
Tem outro que escreve novela de tv.
E tem aquele que quer escrever novela de tv.
Tem um deles que se acha especial porque escreve minissérie.
Tem aquele que namora a atriz que vai produzir seu texto.
E tem um outro que namora o ator.
Tem um outro que comeu a produtora.
O problema é que ele comeu mal
e a mulher não quis mais saber do texto dele.
Tem outro que só escreve comédias
porque disseram pra ele que é mais comercial.
Tem o dramaturgo maldito
e o darling da mídia.
E tem aquele de grandes aspirações que nunca consegue terminar seu texto.
Tem aquele que está há três anos escrevendo sua grande peça
e tem aquele que só conseguiu escrever uma peça na vida
e vive falando sobre ela, e acha todos os atores burros
por não terem ainda encenado o seu texto.
Tem o que enlouqueceu
e o que ficou parado em alguma curva dos anos 60.
Tem o dramaturgo da moda
e aquele que está sempre por fora.
Tem o muito encenado
e o eterno gênio inédito.
Tem aquele que não suporta outros dramaturgos.
O que acha tudo uma bosta.
E tem aquele que vai a todas as estréias de seus companheiros.
Tem um que faz um bico de ator em comerciais
pra pagar a produção do seu texto de vanguarda.
E tem outro que tirou foto pruma revista gay segundo ele pelas mesmas razões.
Tem um que diz que é performer.
E outro que vive de ministrar workshops de dramaturgia.
Tem outro que é jurado de concursos de dramaturgia.
E tem ainda aquele que escreve peças pra teatro empresa
mas que garante que é por pouco tempo.
Tem o dramaturgo publicitário cheio de tiradas geniais.
E tem o dramaturgo crítico de teatro.
E tem aquele que almoça sempre com o crítico
e diz que tem prazer em almoçar com o crítico.
Tem aquele que implora pro crítico vir assistir a sua peça
e aquele que proíbe a entrada do crítico.
Tem um que não desgruda do telefone
sempre a um passo de uma grande montagem.
E tem o que desistiu.
E tem os que continuam insistindo.
Tem o velho dramaturgo que acha que a dramaturgia morreu
e o novo dramaturgo que quer matar a velha dramaturgia.
Pobres inocentes.
Vocês não fazem idéia da encrenca em que se meteram!
G G G G G G G G G G G G

O FRACASSO COMO RECOMPENSA

prometo e não tomo providências
meu evangelho renegado por todas as manhãs
minha fuga dos restaurantes coreanos e dos suspiros forjados
tenho pensado insistentemente em constrangimentos noturnos
mas ainda acredito no que se convencionou chamar de suplicio
até fracassados tem códigos de ética
minha fé inabalável em possíveis viagens pra bem longe daqui
entre palmeiras e a brisa fria do fim de tarde
eu devo me deitar na solenidade da memória perdida
num quarto de hotel com nome exótico e reverente
a majestade de quem se deu por esquecido
de quem jogou fora todas as fichas
de quem sempre esteve fadado à derrota
mesmo sentado no topo do mundo
mesmo que ela dance semi nua na minha frente
que me ofereça sua nuca em sacrifício
e que derrame vinho em meu peito e deslize sua língua suave
ainda assim vou pensar que é sempre tarde demais
meu orgulho abençoado de perdedor
deixo o testamento de um loser
com duvidosa compaixão pela raça humana
como recompensa, tenho o sol abrasador
e a crença vil num evangelho porcamente escrito
só levo comigo minha inadequação e alguns poemas de Dylan Thomas
não tem mais pra ninguém

Daqui a 20 minutos, vai ser eu e Deus.
G G G G G G G G G G G G

ENQUANTO ELA RANGE OS DENTES
EU ESPERO OS FANTASMAS

Os fantasmas bebem comigo quando a lua vem
Eu abro a minha porta todas as noites
Eles aparecem e se apropriam das poltronas
coçam meus pés e bebem meu vinho
Não falam da vida os fantasmas
nem comentam as fotos que guardei
Eu me sinto bem com os fantasmas
Eles apenas gostam de ficar por ali
assoprando nas orelhas do cachorro
o cachorro se acostumou com os fantasmas
já não tira os chinelos das poltronas
percebeu o quanto os fantasmas são
importantes pra mim e o cachorro também
não quer me ver triste e eu sei que de
uns tempos pra cá o cachorro também ficou
dependente deles pois uiva de dia enquanto
eu leio Frost no telhado
o dia passou a ter 72 horas
o dia passou a ter grossos livros de poesia
o dia passou a ter Whitman, Thoreau e Bashô
o dia agora é um osso esquecido no assoalho
o dia agora é uma longa espera da noite
que é quando os fantasmas aparecem
Eu espero já sem muita paciência
não há nenhuma suavidade ou delicadeza em meus gestos
os fantasmas são a melhor companhia pra
quem descobriu que está realmente sozinho.
G G G G G G G G G G G G

ÓPERA DOS POMBOS SEM DESTINO

Eu moro no sótão onde os pombos morrem
Eu deixo a janela aberta
e deixo que eles venham morrer a meus pés
Eles entram voando e me olham
com seus olhos tristes de pombo
Como eu posso ser feliz com todos esses pombos mortos
abandonados por Deus
Gostava quando eles se chocavam contra o pára-brisa
Pombos desgovernados sempre me fascinaram
Esses pombos com destino certo
eles me deixam com os olhos cheios de lágrimas
vez ou outra um avião passa no céu
e os pombos sonham com lugares nunca visitados
Um dia os pombos desaparecerão
terão voado para algum lugar inatingível
não haverá mais pombos
e alguém irá contar histórias sobre pombos
os seus cadáveres espalhados no chão do meu sótão
receberão visitas apaixonadas
mas pra mim o que vai ficar
será a lembrança dos pombos na minha caixa de correio
pombos que se recusaram saber o caminho
pombos que Deus há de acolher
pombos dos quais sempre vou me lembrar
ouvindo ópera no sótão
meu sótão de pombos sem destino
-------------------

Fontes:
Confraria do Vento
Maquina do Mundo. Revista de Poesia.

VIANNA, Christine (organização). Antologia de Poetas Londrinenses v.12. Londrina, PR, 2000.

Cândido Rolim (Ronald Augusto e as Fissuras de Linguagem)


Até que enfim uma poesia me comunica que não quer comunicar. Que sua função é outra: cair fora do “sistema unívoco de linguagem” (Adorno), significar a esmo, jamais atingir uma margem, nem o ambíguo conforto da forma. Enfim uma escritura que, após o front da linguagem, os secretos escrutínios, funda outros desafiadores sentidos.

Topo com a poesia de Ronald Augusto (Rio Grande, RS, 1961), cuja obra, herdeira do concretismo e das conquistas da poesia visual, crítica por excelência, dispensa as falsas visitações da verve e da aura diletante.

O texto de RA roda por aí há cerca de 20 anos (Homem ao Rubro-1983, Puya-1987, Kânhamo-1987 e Vá de Valha-1992) hibernando nos subdiretórios “poesia gaúcha moderna”, “poesia negra” ou “poesia concreta e visual”. Seja como for, uma poesia universal e difícil, desagradável a quem reverencia um certo “modo de dizer sentimentalmente raro”. Com efeito, em seus livros breves e magros não encontramos “páginas de sentimento em que o verso exalte a delicadeza de esteta que se deve sempre encontrar em um poeta”, nem aquela amena sintaxe atrelada a plangências e demais falácias ab imo pectore, e sim um verbo giratório contra poesias e poetas de tardio pastoreio, a água crespa contra a água moribunda.

Noto, sem fechar questão, que a poesia de hoje, contrariando em parte a imagem/idéia de que “a palavra tem canto e plumagem” (G. Rosa) tem sido mais de sintaxe que de palavra, rumo à abstração.

Em RA encontramos palavras sempre em vias de, prestes a, em busca do gaboso trejeito, a ironia, o maldizer. Palavras-arestas cegadas pelas farpas de uma sintaxe cotó roçam a mensagem e de forma elíptica (às vezes em excesso) caem à beira do dito. Revoltada contra a função (e acho aí uma atitude que já qualifica demasiado seus escritos), a poesia de RA é outra que vira o rosto à pertinência abusiva, à subserviência da língua a um propósito (estatal ou estético) demasiado poético-competente ou politicamente correto. Observo em algumas passagens do seu último livro (CONFISSÕES APLICADAS, Ameop, 2004), vários indícios dessa atividade anti-poética, construída desde “aparas de linguagem” (p. 27), “fissuras de linguagem” (p. 62) e “fendas de linguagem” (p. 77). De fato esse comportamento intersticial de sua expressão é bastante recorrente, revelador de um escamoteio verbal tinhoso e de um desatrelamento daquela poesia-boa de poetas recompensados por um consenso suspeito. Ora, quando uma maneira de dizer se revoga (e bem poucos ousam abandonar o barco) no seio desse mesmo código gasto e, melhor, das suas fendas, é possível e até salutar o manuseio de novos sentidos.

Ácido, o artista, além de não estar a fim de nenhuma fidedignidade, põe tudo em xeque, inclusive as vanguardas de que é filho:

diz
trair a tradição
inventar a
(Vá de Valha)

Ou mais enfático:

leitor ulisses
homero (
e) m
pessoa

ninguém
está de posse do
pós
(Vá de Valha)

O texto de Ronald, que opera a fundo o lema work in progress, à medida que nunca se completa, vai quebrando simetrias e sentidos, promovendo um enxame de possibilidades sintáticas e sintéticas ao redor, aptas a receberem a associação latente do leitor. Afinal, questionamos: o poema buscará um fim, uma solidez, um estágio estético de onde não se vislumbre mais o mais?

Alguém dirá, comiserado: e o leitor? E a consideração com o pobre leitor? E a comunicação? Admitamos, portanto, que há o risco de o dileto leitor não entrar no texto, não captar a “mensagem” (cito aqui alguns encontradiços questionamentos acerca de). Ora, mas não reside aí o problema milenar de toda poesia e, afinal, de todo dizer? Se a questão é esta, maior desrespeito com a assistência está em oferecer-lhe um texto edulcorado onde, em nome de falaciosas inerências e votos de pundonor, permaneça indiferente ou, pior, sorria no final, agradecida ao bom poeta por este não ter sugerido nada além do que ela aprendera a apreciar.

Ronald Augusto experimenta quase todas as possibilidades da síntese, através de um surrealismo sincopado, minimal. Dançando esse ritmo truncado, de signos devidamente frustrados de qualquer pretensão de uniformidade, eleva o significante a um ponto onde o significado se rarefaz (logo, multiplica-se), proliferante, polissêmico. Contra o alvo, a revoada. A ver:

regaço pedra o
régua quadril
(Vá de Valha)

O módulo pedra o/quadril projeta no leitor um feixe de imagem, e o o (artigo?) após a pedra sugere um sutil “motivo” hispânico. Pois bem, a função da poesia não é dizer o indizível, quando muito aproximar o incompatível (regaço – quadril = régua – pedra). O quadril torna a pedra dúctil, enquanto o regaço dribla, distrai, compatibiliza, corporifica e nega a fatalidade retilínea da régua. Faça-se, para melhor percepção, uma leitura linear e outra transversa dessa mesma “estrofe”, em quiasmo.

Aquela suspensão de sintaxe e vocábulos de que falávamos antes, a par de permitir sempre um discurso incidental irônico, capcioso, deixa as palavras como que à espera de algo, prestes à bifurcação. Poesia véspera de constelação:

poema a
moenda
arroio
mexendo moedinhas
na algibeira
(Vá de Valha)

Noutro momento, percebe-se a ausência de hierarquia entre os significantes – adjetivo – substantivo – verbo (onde um e outro?). E veja-se que, mesmo de ascendências diversas e até incompatíveis, os signos não se livram de um contágio recíproco entre eles. O poeta coloca tudo ao rés do nome e parece dizer: - palavra, signifique fora de si! Signifique-se! Prolifere!. Exemplifiquemos:

o vindouro
uva o
veio

Ou

músculo ou
crespos
musseque a favela
cestos
(Vá de Valha
)

Enquanto isso, o ritmo corre a favor do rito. É quando o mito do discurso encontra o discurso do mito, palustre e pobre locus da infância:

que
favo mangue
bessanga
o
moleque
(Vá de Valha)

Impossível não associar tais textos com alguns momentos da poesia de matiz africana (vide, por exemplo, Arlindo Barbeitos, em Nzoji), quando as palavras vicejam rente ao chão, no ar seco, de coivaras. Poesia casulo de vivência vária. Sumo de língua nova: por polpa a// arquipenumbra.

Contra a poesia de RA conspira, a meu ver, o que noutro momento a absolve, isto é, a elipcisação excessiva. Escondido atrás de um vácuo significante (estanco um vazio com outro, CA, pág. 35) pensa-se que o poeta se esquiva, não quer correr o risco da respiração completa ou de uma eventual explicitude. Ora, mas não há as mil formas de ver o poema? Afinal, o homem (portanto, o texto) não é poroso ao tempo? À tendência centrífuga/constelante das palavras tem que se dar um instante de perenidade, um provisório vetor rumo à plasticidade, seja para o presente, seja para o não-tempo. Há também a poesia dos conceitos! Quer dizer, o poeta pode até querer “estancar um vazio com outro”, ou pretender um arranjo de abstrações que lhe oculte o rastro. O problema - e isto a poesia de RA mostra a todo instante e os poetas-se-achantes insistem em negar – é que tudo isso se dá inapelavelmente no campo da linguagem. E é essa maldita linguagem que irá denunciar todo o entorno do homem, inclusive suas insuspeitas filiações e encostos.

Em O HOMEM AO RUBRO (Porto Alegre, 1983), porém, esse impasse se supera e o autor nos fornece desde lá uma senha para o seu último livro CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004). Manejando sem receio sua assumida “oralidade atravessada”, utiliza-a se não para resolver o texto em imagem (e saquei para mim uma felpa // bífida // de onda), também para ex/trair outros módulos de alta voltagem poética, adequando o como se diz com o que se diz. Citemos:

minha capoeira
assopro ela para além de duas
quadras
com imediateza e
antepassadas lâminas
um linguajar
de músculos paisanos
(O Homem ao Rubro)


Coincidência ou não, parece que o poeta hoje se dá conta disso, por exemplo, nos poemas do seu CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004), onde o artífice assume, com maestria, outra sintaxe, dando uma pausa no mínimo de retórica para um máximo de significação. Uma retomada, a um só tempo, da cantiga de escárnio e dos racontos dantescos, oxidados pela raiva moderna. Dessa obra, transcrevemos a indiscutível qualidade, p. 55:

cera de operárias em orelhas de remeiros
os mesmos mesmo topando com o cu do mundo
porque o mandachuva deles fechará sua
rosácea de rotas
transtornadas feito chama enunciante
nenhum dos seus comerá de outro pão
hera operária nos buracos dos eunucos

Em CONFISSÕES APLICADAS o poeta nos apresenta um livro recheado de périplos odisseicos com os clássicos, não de forma reverente mas dialogante, com ironia e vocábulos sem mofo. A respeito da mudança de ritmo operada na poesia de Ronald Augusto, talvez de maneira inconsciente o poeta nos revelou os passos dessa transposição, dessa mudança de batida, no poema contrafragmento, p. 57, nestes termos:

já agora me parece justo
não dissimular mais coisa nenhuma
dou-lhe conta dos transes que mordo
não com intento de pedir ajuda
nem com a idéia de forçá-lo

Na poesia contemporânea – da qual o texto de RA é um feliz exemplo – a consciência do artista participa da obra como uma anti-escritura. O poema, sob o pastoreio feroz de outro espírito, se escreve desfazendo-se. E aquela consciência ilustrada do artífice, tensionada a n vigílias não o empurra para o silêncio, tampouco para a palavra. Não o coloca em situação de fala ou de diálogo; estimula-o a um não-dizer, fixa-o numa zona plástica entre silêncio e voz. Imerso naquela ramagem de perguntas de que falava René Char, o poeta parece tomado pelo medo moderno de nomear.

Num mundo esvaziado de “guerreiros e celebrantes” e “um presente onde as sereias viraram sirenes” (H. Campos) o poeta adquiriu uma garganta crítica. Também por isso a escritura de RA é incômoda, inconclusa, incôngrua, como se lhe repugnasse ou inquietasse aquele toque edênico do objetivo (Idem). Agarrando-se ao fragmento, aparas da linguagem, transformando o texto em uma instância plástica de urgência e sugestão, revela-nos que o fim de um texto não é centrar o leitor na tirania de suas linhas, mas abrir sua (dele leitor) vontade para outros mundos (verbais ou não). Que a linguagem não nasceu para ser fidedigna, nem para corresponder a um dizer estanque e perpétuo, muito menos para servir às hegemonias sustentadas e retroalimentadas pelo arcano da pertinência.

Bom saber que existe por aí uma poesia in motum, que está na ordem do fazer e não de um estar ou ser, à ilharga da palavra estatal e da sintaxe recrutada para os bons propósitos da in/formação ou do pensamento político (e poético) logicamente correto.

De resto, contra a eternidade distraída que volta e segue, sob o rumor de sempre, efêmera, a poesia, com a linguagem, morre. Mas algumas vezes, felizmente, deixa um grande rastro.
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José George Cândido Rolim nasceu em Várzea Alegre, CE. Morou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente exerce a advocacia em Fortaleza. Tem publicados os livros Rios de Mim (Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1982); Arauto (Sabará: Edições Dubolso, 1988); Exemplos Alados (Fortaleza: Letra & Música, 1997), Pedra Habitada (Porto Alegre: AGE, 2002) e Camisa Qual (Porto Alegre: Editora Éblis, 2008).

Fontes:
http://www.msmidia.com/ameopoema/aut_ronald.htm
Imagem = http://ouirapuru.blogspot.com/

Maurício Chamarelli (Os Últimos Anos de Sibila)

Pintura de Salvador Dali
Segundo me foi dado coletar de uma fonte
infimamente confiável, Sibila,
sacerdotisa de Apolo, a quem o deus concedera
o poder da profecia, pedira-lhe,
a certa altura da vida, o dom da longevidade.
O deus concedeu-lhe o número de anos igual ao
de grãos de areia que pudesse segurar, o que
não impediu que seu corpo não acompanhasse
esta longevidade e perecesse mesmo antes dela.
E mais: antes de sua voz.


I

Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não sei se me vem primeiro a perda de consciência dos movimentos, ou sua incessante repetição. Quando jovem, em cada curva, um dilema vital, em cada questão, uma resposta absoluta. Mas a maturidade antecipa a leveza de todas as coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo à minha frente, ou se escorrego cada vez mais rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.

II

O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A princípio falava consigo. Depois, resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde as palavras não chegam. A mesma casa, mas já não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra tempo. O mundo não – mundo – .

III

Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam. Quase como se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem os aplausos. Como se, curvada em reverência, me fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-me. E comigo o mundo.

IV

A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante: comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A total automatização de cada ato: a inconsciência. A mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até que se removesse toda a distância entre azulejo e vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – . Até que não mais se impusesse, entre a mão e o cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a palavra mão, ou mesmo madeira.

V

Olho pela janela. A cidade, profusão incessante de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem? Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A vida exalta a si mesma com a música e exala seu silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua afasia em nomes.

VI

Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras retornaram. Mas não todas. Algumas levaram anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas palavras não voltaram. Não voltaram nunca – inomináveis? Mas mesmo as que retornaram, ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo, traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um certo frescor de novas.

VII

Me observava. Cada movimento. Como se pronto a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia e aparentava calma. Levou umas duas linhas no livro da vida para que se tornasse um gato. Sim, algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor. Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara momentos antes. Não. Não há nada mesmo de engraçado. O braço ainda não braço a transpirar as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já foi um dia mão. E eu, entre soluços, engasgos. Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez. Imaginar eu, dizer – eu – .

VIII

Algumas palavras não voltaram. Algumas coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez precisassem destes. Como por exemplo o ato de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece. A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a envergadura da alma para suportar o peso dos anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de transpirar sílabas: sibilar.

IX

O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome a rostos que nunca nascerão. À minha volta dançam palavras sem qualquer significado. Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis. – O que virá e o que passou se encontram no compasso oracular da minha música: no raso verbo da voz só há tempo para dizer o que passa. Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos parágrafos. E recomeçar.

X

O entorno transpira – parede – . O embaixo soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas – gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não voltam mais a ter nomes. Os nomes voltam.

XI

Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei o mundo, desci às profundezas do pensamento e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta – garganta qualquer – a vontade de cantar! Não, não virão mais injúrias! A vida também chora quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice não é a fatal negação aos mortais, é a vida a dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se concilia. E mesmo assim em nenhum momento o mundo se entristece.

XII

Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía. Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi somente voz. E quando o proprietário adentrou o apartamento com a moção de despejo, ainda soava um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.


À minha bisavó Angelina
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.

Fontes:
Confraria do Vento. http://www.confrariadovento.com/revista/numero6/conto02.htm

Maurício Chamarelli (1984)


Maurício Chamarelli Gutierrez é carioca, nascido em 1984, estudante de literatura na UFRJ e de música na Escola de Música Villa-Lobos. Toca saxofone nas horas vagas. Participou do projeto Arranjos para Assobio, da UFRJ, até 2004.

Uma girafa por entre outros animais, Maurício Chamarelli é daqueles cuja presença se ergue por sobre a grande maioria das outras. Entre os pés ágeis batendo firmes no chão enquanto recebem a força da terra e a cabeça que acolhe o mais tênue das alturas, o pensamento, neste livro, é do corpo, articulado pela intensidade destes dois vetores. Seja no ensaísmo, inédito, seja, como agora, na poesia, que se edita, este jovem de 21 anos começa traçando sua trajetória para que a vida fale publicamente em passos de gigante. Como se isto, com folga, não bastasse, ainda surpreendente é a intensidade tão precocemente aliada a uma rara maturidade; ou talvez seja justamente por tal aliança que, aqui, vida, de fato, fale em passos de gigante. Pela grandeza do que aqui se mostra, e do que, fora daqui, também conheço, a poesia e o pensamento brasileiros recebem um reforço de peso, daqueles que já chegam para vestir a camisa 9 ou 10 da seleção. Fosse a poesia futebol, não tenho dúvidas de que, com esta estréia, Maurício Chamarelli seria logo cobiçado pelos gramados europeus... mas, felizmente, não é este o caso.

Se, no princípio, era o corpo, e se todo corpo é tênue (não apenas o do poeta, mas o do leitor e de qualquer um ou outro que nunca teve um livro nas mãos), e se trata-se de uma voz – como é, explicitamente, o caso –, qual a voz, corporal, que concilia o corpo, que sempre principia, com o verbo que lhe é decorrente? Aqui, a voz poética é grito, sopro, rugido, tudo o que, imerso no sentido, sem denegá-lo, criando-o, o antecipa em puras exclamações, em sons de palavras rubras, rudes ou, mesmo, cansadas. A poesia de Maurício Chamarelli é da voz que antecipa o verbo, da voz que, no sentido, pronuncia o berro de nascimento de todo e qualquer sentido. De peito aberto e pés descalços, este corpo tênue mora em farpas da voz. E esta voz, tênue e corporal, esta voz encorpada da vida em passos de gigante, é uma farpa entre o nome e a morte, entre a morte e o nome. Ser esta farpa, eis a excelência do desafio poético proposto por Maurício Chamarelli. No princípio corporal e vocal, ser, portanto, tênue, só uma tonalidade, apenas uma veia, um mínimo vibrátil que alimente a interminável procura de um nome melhor para isto. Para isto que é vida (em passos de gigante), para isto que é poesia (também em passos de gigante).

A imagem, sim, a imagem incontornável, mas, em Corpo Tênue, sobretudo a música, que, mesmo na visão, é anterior à própria visão, a música do pensamento, da poesia, a música da voz. A música do grito, do sopro, do rugido. A música do corpo e, no corpo, a música do tênue. A música, como o mais tênue corpóreo, para quando a aflição do incorpóreo me estiver afogando. A música da celebração da poesia, afirmadora de todo um complexo de forças que, não se tornando perceptível, deixaria o mundo muito pior. A música... Diz o livro: É tudo música. Desde a abertura deste livro, a música se faz presente tanto como modo de realização quanto como tema. Assim, bem de acordo com o John Coltrane homenageado, o que se mostra ao longo do livro, entremeados ou não por títulos, são acontecimentos poemáticos espiralados feito o rodamoinho de um furacão, cujas células, menores (um verso qualquer que temos pela frente) ou maiores (todo o conjunto do livro), nos trazem – sempre – o poético em sua melhor maneira, o poético que mostra a vida em passos de gigante. Pegue este livro, portanto, como uma primavera nos dentes, porque, mesmo que escrito na primeira floração, ele se anuncia como outubro: Mas outubro,/ Outubro se anuncia entre esses dentes.// Não sei se de dentro/ - como vômito/ Ou se de fora/ - como soco// Mas outubro, outubro se anuncia. Maurício Chamarelli assim se anuncia: com passos de gigante.

(Prefácio do Livro Corpo Tênue, por Alberto Pucheu)

Fontes:
Confraria do Vento.
As Escolhas Afectivas.
http://www.oficinaraquel.com/mauricio.html

Everardo Norões (Mais Poemas)

Pintura de Dulce Maria Assunção
LAVADOR DE PRATOS

Sussurram,
na superfície da louça,
os duendes da faiança
e o piano de Satie.
Enxáguo
desejos inconfessos
e, entre talheres,
me despeço
da Gymnopédie.
Há sempre um ar de água
nas frases que me dizem
quando a manhã acaba.
E, no brilho dos pratos,
a mesma cor
da mágoa.
G G G G G G G G G

SERTÃO

As nuvens são baixas,
mas alto é o céu.
O que parece passar,
permanece.

O verde, no cinza
se descobre.
A luz,
da escuridão se tece.

O verbo afia,
a faca desafia:
no oculto de mim,
tudo é Sertão.
G G G G G G G G G
DOMINGO DE RAMOS

Vejo teu corpo
e penso num Domingo de Ramos:
um aceno de palmeiras
um halo de estrelas:
frestas de luz em que se somem
um cristal de lembranças,
um jumentinho,
a cruz das tuas ancas.
Penso num Domingo de Ramos
como aquele, sempre festa:
do vinho, da água, da poeira,
do rebrilhar de peixes sobre pedras.
Vejo teu corpo
e soam litanias:
há espadas de folhas e um abrigo
sob o branco marfim do teu vestido.
Penso num Domingo de Ramos,
no teu horto, no vermelho da boca,
na Paixão,
no mistério que desce das colinas,
olivas espalhadas pelo chão.
Cálice despejando em minha língua
um fel de histórias esquecidas:
a hóstia consagrada do perdão.

Vejo teu corpo e penso
num Domingo de Ramos.
Como aquele,
em que me acenas
o sangue de um cordeiro degolado,
brilhando sobre a luz das açucenas.
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Aprendendo sobre Poesia (Parte III – final)

Pintura Studying, de Iman Maleki


GÊNEROS LITERÁRIOS

A conceituação dos gêneros literários tem levantado problemas até o momento insolúveis, tendo também dado azo a que aparecessem várias teorias, havendo inclusive aqueles que negam sua existência.

Dá-se o nome de gênero literário a "famílias de obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes" (Massaud Moisés). Note-se que a palavra "gênero" vem do latim generu -, e significa família, raça, ou seja, agrupamento de indivíduos ou seres que têm características comuns.

O primeiro autor a se preocupar com os gêneros literários foi Platão que, em sua República, classifica as obras literárias em três gêneros, a saber:

- a tragédia e a comédia, ou seja, o teatro;
- o ditirambo, ou poesia lírica;
- a poesia épica

Na antigüidade clássica greco-romana e no Renascimento - época em que se revalorizou a produção de Grécia e Roma antigas - adotava-se o pensamento de Platão, e acreditava-se que os gêneros preexistiam aos autores, tendo cada um deles regras fixas que deviam ser obedecidas rigorosamente, sendo ainda cada gênero considerado como um compartimento estanque, absolutamente impermeável às influências dos outros, não podendo haver, por isso, mistura entre eles nem entre as espécies.

Muitas das normas que regiam a criação literária só deixarão de ser aceitas com o Romantismo, no século XIX, que adotou a idéia dos gêneros comunicantes, o que deu origem inclusive a gêneros novos, como o drama, desaparecendo também a idéia clássica de que o número de gêneros literários seria limitado e imutável.

Tradicionalmente, e segundo o pensamento de Platão, consideram-se três gêneros literários fundamentais: o lírico, o épico e o dramático.

A cada gênero correspondem, geralmente, determinadas espécies materiais de forma, determinadas "formas" literárias, em prosa ou em verso, adequadas àquilo que se deseja exprimir. Assim, o gênero épico, narrativo e grandioso, requer forma adequada, ou seja, um poema mais longo, com versos maiores e mais solenes. Do mesmo modo, o lírico, às vezes tranqüilo, às vezes intempestivo, procura a forma (ou "forma" ) adequada ao que se deseja exprimir, aparecendo ora sob a forma de poemas maiores e mais densos, como a ode, ora sob a forma de poemas pequenos e graciosos, como o madrigal. A essas "formas" literárias costuma-se dar o nome de espécies.

Esquematizando, são os seguintes os gêneros literários:

Gênero
Espécie
Lírico (geralmente em verso)
soneto, ode, elegia, madrigal, etc.

Épico
(em verso)
epopéia
poema
poemeto

(em prosa)

Dramático (em prosa ou em verso)
tragédia
comédia
drama

1. Gênero Lírico

A palavra lírico vem do latim lira, instrumento musical. Na antigüidade grega, os poetas cantavam suas composições ao som de liras. Na Idade Média, durante o período provençal a poesia voltou a ser contada, depois de ter sido declamada na Roma antiga.

Pode-se dizer que o gênero lírico é aquele que expressa um sentimento pessoal. Seu conteúdo "é a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo" (Hegel). De fato, ao poeta lírico interassam apenas suas sensações, seus estados de alma, seus sentimentos, É, a bem dizer, um ser isolado, um indivíduo voltado para dentro de si mesmo, embebido em eterna autocontemplação. A paisagem exterior, a Natureza ou os homens só lhe interessam na medida em que se projetam nele, ou na medida em que o exterior é passível de ser interiorizado. Veja-se, como excelente exemplo, o poema de Fernando Pessoa, Contemplo o Lago Mudo, já focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Normalmente o gênero lírico se apresenta sob a forma de verso, o que não impede que apareça também em prosa, muito embora alguns autores prefiram chamar "lirismo" ao transbordamento da alma do autor em obras em prosa, como, por exemplo, os dois primeiros parágrafos de texto de Jorge Amado, também focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Poesia lírica seria, por exemplo, o trecho abaixo. de Gonçalves Dias:

"Enfim te vejo! - enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei. Cruas âncias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!

Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da espr'ança,
Tu me vieste à lembrança,
Quis viver mais e vivi!
(Gonçalves Dias, Ainda uma vez - Adeus! In "Poesias", Agir, pág. 61)

2.Gênero Épico

A palavra épico vem do grego épos, narrativa, recitação. A poesia épica nasceu, no Ocidente, com Homero, poeta grego que viveu entre os séculos IX e VIII a.C. e escreveu dois poemas que constituíram os primeiros modelos épicos: a Ilíada e a Odisséia.

Depois de Homero, a poesia épica, seguindo certas normas tradicionais que se baseavam na obra do poeta grego, foi cultivada até o Romantismo.

Na antiguidade romana, a epopéia mais conhecida é a Eneida, de Virgílio. Na Idade Média, aparecem vários poemas narrativos, especialmente nos séculos XII, XIII e XIV, que se afastam dos padrões clássicos (Homero e Virgílio) pelos assuntos abordados e pela técnica narrativa. São inspirados, geralmente, em façanhas guerreiras da época da cavalaria andante. São mais conhecidos: a Canção de Rolando, o Romance de Alexandre, os romances da Távola Redonda, o Cantar de Mio Cid.

No Renascimento, com a revalorização da antiguidade greco-romana e a conseqüente imitação de sua literatura, aparecem novos poemas épicos que tomam como modelo as grandes epopéias dos gregos e romanos, especialmente a dos dois poetas já citados. Datam desse período o Orlando Furioso, de Ariosto, Jerusalém Libertada, de Tasso, ambos na Itália; em Portugal, Camões escreve Os Lusíadas, o maior poema da língua.

Ainda no Romantismo - século XIX - cultivou-se a poesia épica, embora dentro de nova visão, diferente da dos clássicos e renascentistas.

Na antiguidade clássica e no Renascimento, o gênero épico deveria obedecer a certas regras, a certas normas que o caracterizavam:

1. O poema épico deveria ser dividido em cinco partes, a saber:

a- Preposição: em que o autor resumiria o assunto da obra.
b- Invocação: na qual o autor pedia a uma divindade que o inspirasse em sua criação.
c- Oferecimento: parte em que o autor dedicava seu poema a alguém. (O oferecimento não era obrigatório.)
d- Narrativa: o corpo do poema propriamente dito.
e- Epílogo: fecho do poema. (Também não obrigatório.)

2. A narrativa não deveria obedecer à ordem cronológica dos fatos. Ao contrário, deveria iniciar-se o mais próximo possível do fim do acontecimento que deu origem ao poema, retornando aos fatos anteriores através de narrações dos personagens, de sonhos e visões fantásticas.

3. A poesia épica deveria conter o chamado "maravilhoso", isto é, a intervenção direta de seres sobrenaturais, quase sempre deuses da mitologia greco-romana, na vida humana. Ao lado desse maravilhoso pagão, no cristianismo surge também o maravilhoso cristão, ou seja, a intervenção de personagens bíblicos (do Antigo ao Novo Testamento).

O gênero épico em verso apresenta três espécies:

1. Epopéia: obra épica de largo fôlego, envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal. Por exemplo, Os Lusíadas, de Camões.

2. Poema Épico: trata, também de episódio histórico, mas menos importante e que não ultrapassa os limites do nacional ou mesmo do regional, embora o poema épico seja tão extenso quanto a epopéia. Exemplo: Caramuru, de Santa Rita Durão.

3. Poemeto: mais curto que as duas espécies anteriores, trata de assunto de importância ainda menor que o do poema épico. Exemplo: O Uruguai, de Basílio da Gama.

Note-se bem que as diferenças apontadas entre as três espécies da épica clássica tradicional subordinam-se à importância do assunto tratado e às dimensões da obra, e não à valoração ou valor literário dela. Se, normalmente, a epopéia é superior em qualidade ao poema e ao poemeto, pode haver exemplos destas duas últimas espécies com valor literário superior à primeira. Entre os exemplos dados, cumpre observar que o poemeto de Basílio da Gama, O Uruguai, é muito superior, literalmente, ao poema épico de Santa Rita Durão, Caramuru.

Foi dito que desapareceram, com o Romantismo, as espécies épicas conhecidas como epopéia, poema e poemeto. É claro, entretanto, que o espírito épico não desapareceu, nem desaparecerá, podendo ser identificado, nos nossos dias, naqueles poemas em que a preocupação do autor não se volta exclusivamente para si mesmo, como na poesia lírica, nos poemas em que o autor não aparece apenas como indivíduo, como um ser isolado, preocupado apenas consigo mesmo, mas como um representante do gênero humano integrado no todo da humanidade. Nesse caso, conta para o autor não mais o "eu" - ou apenas o "eu" - mas o "nós", já que ele se identifica com todos o homens, identifica-se com sua angústia, com sua dor, com seu sofrimento, situando-se entre os que sofrem e se angustiam, integrado que está ao conjunto, à humanidade.

Da primitiva epopéia clássica, o poema épico moderno conserva não apenas o que foi dito acima, ou seja, a identificação do autor com a humanidade, mas também a mesma grandiosidade do verso, o mesmo tom solene, mas próprio à importância e solenidade do assunto.

Massaud Moisés (A Criação Literária) aponta-nos como exemplo de poema épico moderno a Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, de que transcrevemos o trecho abaixo:

" E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregoso,
e no fecho da tarde um sino rouco.

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

pausadamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensando se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

palas pupilas gastas na inspecção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em clama pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas

assim me disse, embora em voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimentos da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.


Fonte:
Colégio Terra Nova.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Trova 119 - Jorge Murad (Rio de Janeiro/RJ)


Belmiro Braga (1872 – 1937)



por J. G. de Araujo Jorge, abril de 1959, in prefácio do livro 100 Trovas de Belmiro Braga.

Estranha essa velha e sempre novíssima Minas Gerais. Dá Belmiro Braga e Carlos Drumond de Andrade. Montanhas de ferro, vermelhas, enferrujando-se no ar, pastagens e campos verdes, de águas claras e brancos leites.

Escrevi certa vez: "Inglaterra do Brasil' ao mesmo tempo liberal e conservadora, desconfiada e expansiva, na alta clausura de suas montanhas, fabrica tudo: místicos, satíricos, ironistas, tímidos, aventureiros. Fechada em seus limites, se abre para o alto, voltando-se para o céu, - a sua imensa janela; para baixo olhando de cima e de longe, como de camarote.

De extremos: revolucionária e tradicional. Na política, na poesia, na arquitetura, em tudo. Tiradentes e Bernardo de Vasconcelos, Ouro Preto e Pampulha, Belmiro e Carlos Drummond. Nela os extremos se tocam, se combinam. Vai vivendo assim com sua dupla face, sua alma bifronte.

Terra de poetas, de grandes é a "grande ilha da poesia" brasileira. Não sobrevive só: faz parte de um arquipélago. Mas é a ilha maior, a principal; ontem, hoje. Ilha montanhosa, de altos cumes.

Aqui vamos falar de um de seus filhos, de um de seus poetas: Belmiro Braga.

Aparentemente, pouco mineiro: expansivo, jovial, exuberante, transbordando-se em versos pela vida. Voltado pra fora; ao contrário da maioria: de costas pro mar.

Belmiro era um temperamento simples, sem complicações. Por isto sua poesia escorreu das montanhas como um curso dágua transparente, córrego alegre, tirando música de cada obstáculo, de cada acontecimento.

Nasceu o poeta na Fazenda da Reserva, antigo Distrito de Vargem Grande (hoje Município com o seu nome), perto de Juiz de Fora, a 7 de janeiro de 1872, e morreu em Juiz de Fora, a 31 de março de 1937. Herdou possivelmente a veia poética do avô materno, Francisco Lourenço de Barros, "versejador mordaz" no dizer de Alves Cerqueira.

Filho de José Ferreira Braga, comerciante português, e de Da. Francisca de Paula Braga, brasileira, Belmiro estudou as primeiras letras no "Ateneu Mineiro", em Juiz de Fora, de onde voltou a Vargem Grande com a morte da mãe, ajudando o pai nos negócios.

Esteve depois em Muriaé, em Carangola, e em 1901 era comerciante na Estação de Cotegipe, onde o foi encontrar o poeta nortista Antônio Sales, que passava tempos numa fazenda próxima.

Foi Antônio Sales quem o apresentou depois, em artigo na imprensa carioca, como o "João de Deus Mineiro". Na mesma ocasião conhece Belmiro Braga a Fernandes Figueira, médico, que colaborava em revistas da capital do país, com o pseudônimo de Alcides Flávio. Tornando-se seu companheiro de tertúlias literárias, Fernandes Figueira o orientou, de certa forma, em sua formação intelectual e conseguiu que os primeiros versos de Belmiro fossem publicados no Rio.

Com a divulgação de seus trabalhos Belmiro Braga granjeou em pouco tempo popularidade. E de seu conhecimento em Minas com Antônio Figueirinhas, editor português que andava em viagem de negócios pelo Brasil, surgiu o lançamento do seu primeiro livro. "Montesinas" saiu prefaciado por Batista Martins, um amigo de Carangola, quando ele era comerciante, e Martins, estudante de Direito e jornalista.

Lançado o primeiro livro em 1902, Belmiro publicou depois: "Cantos e Contos", em 1906; "Rosas", em 1911; "Contas do Meu Rosário", em 1918; "Tarde Florida", em 1925, e finalmente, "Redondilhas", em 1934. Escreveu também para o Teatro.

Hoje há em Minas dezenas e dezenas de academias e grêmios literários com o nome do poeta. E Juiz de Fora, muito particularmente, reverencia e cultua a memória de Belmiro Braga que dedicou à "sua cidade", e ao lar paterno, um amor extremoso. Antônio Sales, seu grande amigo, no livro "Retratos e Lembranças" traça, num dos capítulos, um perfil completo do poeta, seu temperamento, caráter e formação. Diz ele:

"O lar paterno era uma obsessão sentimental de Belmiro. O sitio Reserva, onde nasceu e passou a primeira fase da infância, depois tão dolorosa, tão brutalízada pelos maus tratos da vida, esse sítio era a Meca para onde seu espírito se voltava num culto perene".
Um de seus mais tocantes poemas, redigido em forma impessoal, foi este que ele escreveu, depois de uma visita à casa paterna:

"Foi aqui, neste plácido retiro
ouvindo a voz amiga dos teus pais,
que a infância alegre te correu, Belmiro,
a alegre infância que não volta mais.. . "

Num outro poema, dirigindo-se a amigos, exalta a alegria de rever o torrão natal:

"Meus amigos da cidade,
morrei de inveja!
Eis-me aqui na ridente
soledade onde nasci.

"Belmiro era fundamentalmente um homem simples, um homem bom. Tinha direito de se reconhecer como tal no Prólogo que escreveu para o livro "Contas do Meu Rosário":

"Sendo minha alma simples, compreendida por outras almas simples, que prazer! Tudo que a gente faz melhor na vida é aquilo que se faz sem aprender."

E, modesto:

"Que este livro não é uma obra de arte,
mostram suas estrofes sem lavor:
- do triste coração meu verso parte
como o aroma do cálice da flor."

Enganava-se entretanto. Seu livro era uma beleza. Uma verdadeira obra de arte. Sem artificialismos estéticos, fazendo sua poesia como andava, como respirava, ele dava-se todo, de alma e coração, às palavras em que se traduzia. E por isto, as palavras ganhavam essa música simples de cantigas, traduzindo em versos e rimas sentimentos e pensamentos de toda gente. Ele tinha razão, a poesia estava nele, como o perfume na flor, como o pássaro no céu, como a água na terra.

De Belmiro se poderia dizer que ele quase falava em versos. E se não falava, escrevia. Eis o testemunho de seu amigo Alves Cerqueira:

"Comerciante em Cotegipe, Belmiro costumava dirigir-se aos fregueses em versos", porque sentia mais facilidade em se expressar desta forma do que em prosa.

Os amigos de Juiz de Fora, de tanto vê-lo versejar com a facilidade que lhe era característica, acabaram por lhe solicitar versos em todas as oportunidades. O caso de Irineu Rocha é por demais conhecido. Chefe de Oficinas do "Jornal do Comércio" de Juiz de Fora, Irineu lhe pedia quadrinhas a propósito de qualquer acontecimento, do mais alegre ao mais triste, de um batizado a um falecimento.

Um dia, passando pelo jornal, Belmiro soube da morte do Irineu. E como se atendesse a uma solicitação póstuma, homenageou o velho gráfico com estas três quadrinhas:

"Se um seu amigo morria,
êle vinha ter comigo
e umas quadras me pedia
para a morte dêsse amigo.

Hoje, lembrando esse fato,
eu pensei, em mágoa imerso,
que talvez lhe seja grato
ser também chorado em verso.

E assim nestas quatro linhas
venho aqui dizer-lhe, triste:
- Irineu, toma as quadrinhas
que tu nunca me pediste."

Trovador, no velho e no novo sentido da palavra, estava em permanente dueto lírico com a vida. Tudo lhe era assunto para uma quadra, um soneto, uma redondilha. A gente vai lendo e se admirando de que as palavras casem tão bem no fim dos versos, como se tudo já estivesse feito, e o poeta fosse apenas o "Instrumento" que as cantava e divulgava. Foi um grande, um extraordinário versejador.

Com a subversão dos modernos conceitos de poesia, como definir esta poesia discursiva, descritiva, profundamente extrovertida, sem mistérios, limpa e transparente, de Belmiro Braga? E quando falo em Belmiro, me refiro a um sem número de outros grandes poetas que continuam versejando, com tônicas bem postas, métrica, rima, todos os chamados artifícios formais da poesia tradicional.

Que há beleza, emoção, comunicabilidade no que escrevem, não há dúvida. Que realizam autênticas obras de arte, só sectários podem negar. E então teremos que rebatizar o gênero literário de que se servem, já que as correntes modernas se apoderaram da palavra poesia - e erígiram novos tabus de conceituação.

Para os estetas das novas correntes, os cristais teriam de subverter as leis da cristalografia se quisessem permanecer como símbolos de beleza, nos tempos atuais.
Belmiro é um autor que está, de corpo inteiro, em sua obra. Lírico e satírico, mas de uma sátira jocosa, sem maldade, era fundamentalmente um grande emotivo, um sentimental incorrigível. Amigo dos amigos, tomando a própria família como tema permanente de seus versos, êle viveu em versos. Era uma espécie de "ópera" viva, ambulante! Sua vida, sua infância, a vida dos seus, seus negócios, suas pretensões políticas, tudo para ele era verso, era poesia. Até seu próprio testamento, antecipadamente redigiu, numa auto-sátira bem humorada. Nomeado tabelião em Juiz de Fora, em 1903, aproveitou-se logo da sugestão do cargo:

Morto não quero o belengar dos sinos
enchendo de tristeza o espaço imenso,
nem esses tristes, merencórios hinos
da charanga do bairro a que pertenço.

Cante-me o padre alguns textos latinos
por entre nuvens de cheiroso incenso,
mas desde já previno-o: pequeninos,
que os longos textos com prazer dispenso.

No cemitério, nada de discursos!
Acautelem-me ali dessa estopada
os bons amigos dos amigos ursos,

pois, em casa, o orador, à sobremesa,
dirá pensando em mim: "Não somos nada!
Lá se foi o Belmiro... Que limpeza!"

É muito citado o soneto que dirigiu como carta, ao pai da moça, quando seu filho queria se casar:

Artur Fernandes de Oliveira - abraços.
Tens, amigo, uma filha e eu tenho um filho
que desejam da vida o mesmo trilho
palmilhar, a sorrir, contando os passos.

Se o amor os tem prendido nos seus laços,
se entre os dois não existe um empecilho,
tu te envaideces, eu me maravilho,
por vê-los, um ao outro abrindo os braços.

Se dela o coração é manso e puro,
tem ele garantido hoje o futuro
servindo à Pátria com amor e fé.

Mas vamos nestas linhas por um ponto;
o que eu quero de ti, aqui te conto:
- é de Cordélia a mão para o José.

E não satisfeito, na véspera do casamento, mandou ao filho a sua bênção e as congratulações pelo acontecimento:

"Meus parabéns, José, porque suponho
que a vida que a Cordélia te assegura
há de ser de carinho e de ventura
sob a tranqüila paz de um céu risonho.

Dos teus sonhos de moço o melhor sonho
foi, meu filho, essa jovem de alma pura
em cujos dons de afeto e de ternura
todas as minhas esperanças ponho.

Abençoado seja, pois, o laço
que prende para sempre num abraço
os vossos corações de ouro de lei.

Em nossa vida a mesma estrela brilha,
que a mulher que amanhã me dás por filha
é igual àquela que por mãe te dei..."

Depois foram os netos. Abrindo o volume "Tarde Florida" está o poemeto "Versos do Coração", que começa assim:

"Cláudio e Jorge... A minha vida
de amor, carinhos, afetos,
tenho-a toa resumida
nestes dois netos!"

Candidato a deputado estadual, contando com o apoio político de seu amigo, o Coronel Martins Ferreira, de Leopoldina, este lhe escreveu, querendo mexer com Belmiro, que só ia lhe dar a metade da votação, porque a resposta à sua carta lhe chegara em prosa. Belmiro não se fez de rogado. E conquistou a votação inteira com este soneto:

"Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extra-chapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira,
vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes.. . que ficar calado...

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal representante
agora aspiro ser como escrivão:

e eleito, espero, mas que maravilha!
- ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não!

Um outro amigo seu, Abílio Barreto, reclamou de certa feita contra o silêncio do poeta. Já escrevera três cartas e nada de resposta. Belmiro, apanhado em esquecimento, apressou-se em penitenciar-se. E compõe às pressas uma resposta ao amigo Abílio, na própria Agência do Correio:

"Prezado Abílio, perdoa
a resposta demorada:
tu sabes, quem vive à toa
não tem tempo para nada."

Filósofo do povo, ele, com graça e inteligência, ia fixando a alma de sua gente. Estava nele, - ele próprio não sabia que encarnava e simbolizava, em sua poesia, ao fixar a vida, - a alma do nosso homem do interior.

As duas faces da poesia de Belmiro foram sempre estas. Um profundo amor pelos amigos, pelos parentes, aos quais dedicava um sentimento de grande ternura; e o tom chistoso, alegre, com que brindava àqueles a quem não podia dedicar apenas carinho. No fundo, um humor sadio, às vezes irreverente, mas nunca agressivo ou ferino. Era terna e alegre a sua Musa. E acima de tudo, humana.

De certa feita um jornalzinho da terra, chamado "Justiça" pediu-lhe uns versos para um número de aniversário. O trabalho foi feito, pequena obra-prima, mas não foi publicado. Leiam-no e compreenderão:

"Quanto é bela a Justiça! Aplaina escolhos e os interesses vela
do grande e do pequeno.. . E ela, depois,
fechando os olhos e abrindo a goela,
engole os dois...

Reta, ao dirimir uma contenda
ajusta as artes, e, num gesto nobre,
em vez de pôr a venda, põe à venda
os bens do pobre..."

Este espírito crítico de Belmiro, que nascia da bondade de seu coração, se manifestou até em relação aos próprios problemas estéticos. Belmiro, sem mais delongas, não aceitava o modernismo na poesia. Intimamente havia de achar que estes poetas modernos faziam complexa uma coisa que nêle nascia sem nenhuma dificuldade. Mas se o negócio era esse, ele também era capaz de fazer "modernismo". No prefácio de seu livro "Redondilhas", chamando aos futuristas de "um aluvião de turcos que invadiram a praça obrigando-o a cerrar as portas e a recolher, como alcaides e refugos, os seus pobres sonetos, quadras e sextilhas", ele, incoerentemente, publica seu livro, e ainda perpetra poemas desalinhavados, para provar que pode fazer versos iguais.

Floriano de Lemos, em belo artigo que lhe dedicou no "Correio da Manhã", do dia 18 de abril de 1954, cita este outro fato; e comenta:

"A obra de Belmiro Braga é um monumento de naturalidade, graça e delicadeza. Não há em toda ela um verso forçado ou uma idéia nascida sem inspiração. Sabendo fazer poesias rigorosamente parnasianas, não desculpava, entretanto, a mania das rimas difíceis que certos autores tinham. O estilo afetado foi por ele duramente criticado em uma série de quadrinhas que começa por estas duas:

"Recebi de um jovem bardo
uns versos nefelíbatas
de quatro pés, que não tardo
chamá-los... de quatro patas!

Ao lê-los a gente fica
pensando, e afinal descobre
que é sempre uma rima rica
que veste uma idéia pobre."

Realmente, da poesia de Belmiro Braga se pode dizer que, se há rimas e versos pobres, estes são ricos de emoção, de ternura, de beleza.

Em gênero nenhum Belmiro Parece tão à vontade como na trova. Poeta popular por excelência, espontâneo, ele usava a trova com uma facilidade espantosa. E assim como os críticos têm lembrado que Bilac já trazia um perfeito verso alexandrino no nome (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac), Belmiro Braga trazia uma redondilha menor, um verso de 7 sílabas: Belmiro (Ferreira) Braga. Dele, eu poderia dizer:

"Fez trovas como quem ri
chora, canta, ou roga praga.
Troveiro igual nunca vi:
- Belmiro Ferreira Braga."

Foi ela o seu Universo
cantou-a, sem querer paga,
e ao nascer, trazia um verso:
- Belmiro Ferreira Braga.

Trovador, troveiro ou trovista nato, a trova era uma medida ideal para a sua inspiração, quer desabafando mágoas e alegrias, quer "desopilando" suas inofensivas maldades satíricas. Humorista de fina sensibilidade, servia-se dos versos para fixar coisas, pessoas e fatos, em rápidas caricaturas poéticas.

Neste volume que apresentamos iniciando a "Coleção Trovadores Brasileiros", Belmiro Braga aparece com 100 trovas, líricas e humorísticas. Numa e noutra realizações, foi perfeito. Vamos citar um exemplo de cada face de seu trabalho. De certa feita, Belmiro Braga satirizou um advogado juiz-de-forano, que falava, como diz o povo, "Pelas tripas do judas", mas cacete que nem êle só:

"Um certo orador maçante,
das margens do Paraibuna
ao falar, de instante a instante
vai esmurrando a tribuna.

E quem o conhece, sente
por mais ingênuo ou simplório,
que os murros são simplesmente
para acordar o auditório."

E agora, o Belmiro sentimental, lírico, autor de verdadeiras obras-primas, cujo coração era uma misteriosa e insondável concha univalva a fabricar e expelir pérolas e mais pérolas. Aqui está uma destas "pérolas", dedicada justamente àquela que o deixou órfão, tão cedo:

"Acima de tudo, acima
do céu te devemos pôr,
pois teu nome não tem rima
nem limite o teu amor."

Mas suas trovas não são apenas sentimento. Eram também pensamento.

Despreocupadamente, - com beleza e sinceridade - Belmiro aconselha a dois noivos, no dia das bodas:

"À notícia bato palmas
e mando um conselho aos dois:
- primeiro, casem as almas,
casem os corpos depois."

"Que eu tenho os olhos cansados
de ver (umas mil talvez),
dentro de corpos casados,
almas em plena viuvez."

A verdade em relação a Belmiro Braga é uma só. Um poeta, com tal força de expressão e com tão profundo sentimento de humanidade, não precisa de escolas. É um Poeta.

Sobreviverá a qualquer tempo. Será sempre ouvido. E isto basta. Está cumprida a sua missão.
–––––––––––––––-
Continua – As 100 Trovas de Belmiro Braga
___________________
Fonte:
JORGE, J. G. de Araujo e OTÁVIO, Luiz (organizadores). Belmiro Braga. 100 Trovas. 1959.

Instituto Memória de Curitiba (Eventos)


* 27/02/2010 - 19h - CASA CECY- PARANAGUÁ - PARANÁ:
Lançamento do livro sobre a vida de OSWALDO LOPES da profa. Marilu Cordeiro

* 01/03/2010 - 19h - LIVRARIA CULTURA CONJUNTO NACIONAL - SÃO PAULO:
Lançamento da 2a. Edição do livro NINGUÉM SOFRE PORQUE QUER de Adauto Suannes

* 12/03/2010 - 19h - PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL:
Lançamento do livro DOMINGOS JOSÉ DE ALMEIDA - O ESTADISTA E O HOMEM DE LETRAS DA REPÚBLICA RIOGRANDENSE de Carla Menegat

* 15/03/2010 - 19h - PALACETE DOS LEÕES - CURITIBA - PARANÁ:
Lançamento do livro de Ficção A VERDADE ORIGINAL REVELADA de Luiz Afonso Erbano
& Lançamento do livro MEMÓRIAS DE UM CAIXA DA CAIXA de Neyd Maria Montingelli

* 31/03/2010 - 19h
INAUGURAÇÃO DA NOVA SEDE DO INSTITUTO MEMÓRIA Curitiba - Paraná:

Lançamento do livro CURITIBA 317 ANOS em homenagem ao aniversário de Curitiba e em memória de Túlio Vargas, com a participação de membros do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná e da Academia Paranaense de Letras.

Lançamento do livro DICIONÁRIO DE CURITIBANÊS,com direito a Leite Quente - Trubisko - Cetra - Inhapa - Jococa - Bidê - Foco - etc. Afinal, sejamos universais por cantar a nossa aldeia.

Lançamento da Terceira Edição da REVISTA RAÍZES REGIONAIS, que tem distribuição nacional gratuita e dirigida às Academias de Letras, Institutos Históricos, Instituições Culturais e Universidades.

Eliza Augusta Gouveia Gregio (Lançamento do Livro Sentimentos da Alma)

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Fabio M. Said (Lançamento de “O clã Almeida de Caravelas e Alcobaça”)


Toda família tem uma história para contar. Este livro é a história não de uma família, mas de muitas, todas ligadas entre si por laços genéticos indissolúveis. São as famílias que compõem o clã dos Almeida de Caravelas e Alcobaça, com origem em Lisboa (Portugal) e ramificações sobretudo na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.

Pertenceram ao clã Almeida diversos prefeitos de Caravelas (BA), como Ernesto Caetano de Almeida e Achiles de Jesus Siquara, o prefeito de Prado (BA) Orlando Sulz de Almeida, o prefeito de Itabuna (BA) José de Alcântara Almeida, o prefeito de Curitiba (PR) Cyro Persiano de Almeida Vellozo e o prefeito de Santos (SP), deputado e senador João Galeão Carvalhal.

Este livro, fruto de dez anos de pesquisas, contém centenas de minibiografias de doze gerações do clã, álbuns de família, árvores genealógicas, crônicas e testamentos. Contém ainda um estudo sobre a genealogia da família do jurista Ruy Barbosa, que tinha provável parentesco com o clã Almeida. Com rigor documental e entretenimento, é uma obra voltada não só para membros do clã, como também para estudiosos de genealogia e história e para qualquer pessoa em busca de uma saga familiar recheada de elementos políticos e pitorescos, que revelam um pouco sobre o desenvolvimento da família brasileira.

Fonte:
Colaboração do autor.
http://clubedeautores.com.br/book/13482--O_cla_Almeida_de_Caravelas_e_Alcobaca