terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carlos Eduardo Leal (O Escritor, sua memória e seu ofício)

"O escritor", escultura do italiano Giancarlo Néri
É sempre marcado pelo passado que se escreve. O ato de escrever é, de alguma maneira, uma tentativa de reconciliação com nossas memórias. Ora, a memória é também composta por restos fragmentários que ficaram inconclusos na vida cotidiana. Muitas vezes são restos que nos assombram, noutras nos deterioram pela fragilidade à qual eles nos expõem.

Freud, dizia que uma das funções de uma análise era preencher as lacunas da memória e, assim, livrar o sujeito de seus traumas e medos infantis que ficaram soterrados sem a menor possibilidade de dar um sentido claro ou uma significação coerente. Então, uma análise também é resignificar os fatos adormecidos, as histórias submersas, verdadeiros tesouros arqueológicos da nossa infância vivida ou devaneada. Numa análise, o sujeito ao recontar sua vida acaba recriando ficções para sua verdade. Se os sintomas são metáforas de uma verdade recalcada, então a palavra ficcional do analisante poderia reconstruir a fantasia que havia servido de tela para o real? Qual é a diferença entre o viver e o devanear? Para o psicanalista, o que importa é a realidade psíquica e, não propriamente, a realidade vivida, pois é desta realidade que o sujeito reconstrói sua vida no presente e a relança para o futuro. É desta realidade que ele sofre.

Shakespeare, escreveu uma peça que se chama As you like it, ou, 'assim é se lhe parece'. A vida é como você a enxerga. Igualmente para o escritor, não há uma separação tão nítida entre a realidade e a ficção. Aliás, é melhor que não haja mesmo, pois ele vai construir realidades ficcionais para que o leitor 'viva' a vida de seus personagens como se ele também fizesse parte da história. Entrar dentro de um livro é como entrar em uma enorme caverna com seus labirintos em busca de uma aventura, de um romance ou de uma caçada policial sem passar pelos perigos que os personagens vivem. O bom romance diminui ao máximo a distância entre a ficção e a realidade ao ponto do leitor quase não conseguir mais diferenciá-la, ou melhor, de torná-la crível como se ele também pudesse ser o protagonista da história. A travessia de uma análise deve igualmente permitir que o sujeito possa transmitir a sua história para outro sujeito a partir de seu inconsciente e, assim, dizer de um estilo que é só seu.

Existem cinéfilos que acham que a sétima arte é insubstituível. Eu adoro cinema, mas como escritor, percebo que a "oitava maravilha do mundo" é a capacidade fantasística do leitor. Um bom romance consegue fazer despertar no leitor um grande diretor de filme e rodar cenas inimagináveis através da realidade psíquica sem que para isso ele precise levantar do sofá. Por isso se diz com frequência que "o livro era melhor do que o filme", porque o leitor já havia feito o seu filme dentro da sua própria mente. A tela do cinema não é a tela da fantasia, mas ambas podem ter o intuito de re-velar algo mais-além do dito. Quando o autor põe um ponto final no romance, cabe ao leitor tornar-se co-autor daquele e dar continuidade através de sua imaginação à ficção criada.

Assim, o leitor se torna co-autor do autor passando magicamente a fazer parte da 'memória' vivida deste. Memória vivida ou memória inventada, pouco importa. O que importa, tal como Freud escreveu, é que a realidade a ser tratada seja a realidade psíquica. O repetir ficcional (tanto na insistência da criação literária como na sucessão das sessões de análise) faz com que a memória recorde do esquecido (Aqui os exemplos são inúmeros na literatura ou filosofia: Proust e la Recherche du Temps Perdu , santo Agostinho em suas Confissões, Platão em Mênon, etc) e, assim fazendo, possa elaborar os pontos cegos, os hieróglifos do passado. Repetir, recordar e elaborar são em última instância, o que o poeta Manoel de Barros escreveu: “repetir, repetir, repetir, até fazer diferente.”

Recentemente, uma leitora comentou acerca do meu livro A última palavra, dizendo que "só quem amou apaixonadamente pode viver tal ira dos personagens". E ela tem razão. No plano ficcional ou na vida real, é preciso que tenha havido um grande amor para que um grande ódio surja como contraponto. Mas, pergunto novamente: qual é a diferença entre a realidade e a ficção? O limite é extremamente tênue. Também ouvi de outra pessoa: "no início tive muita raiva dele, mas depois entendi a minha raiva e passei a prestar mais atenção ao discurso tão feminino dela". Sem querer arriscar aqui uma interpretação, poderia dizer que a leitora já havia se identificado com ela ao ter muita raiva dele.

São memórias afetivas que estimulam nossas identificações. São atavismos perdidos que um livro pode recuperar. Um livro diz respeito à memória do seu autor, mas produz do lado do leitor, a possibilidade de recuperar imagens perdidas, tal como num filme musical remasterizado. Porém, o que é mesmo memória e o que é memória inventada em relação ao próprio leitor? O déjà vu é algo que o sujeito viveu, ou foi 'fabricado' pelo autor confundindo de vez as lembranças perdidas?

O ofício do escritor é inventar memórias: as suas e a dos outros. Lá onde não havia nada, você coloca uma ação, um romance no qual o sujeito no próximo encontro com sua amada vai dizer as palavras que o protagonista disse e que parece que saíram de sua boca.

É comum lermos trechos inteiros de um livro, ou uma poesia, e acrescentarmos que "era exatamente isso que eu pensava, mas não sabia como falar". O escritor fala, então, ao coração do leitor. Empresta sua voz e, claro, dos seus personagens àquele que o lê. Lá onde isso fala, deve o eu advir.

Muitas vezes, o escritor se torna uma espécie de ghost writer para o leitor. Mas, isso acontece também dentro do próprio romance como é o caso de Cyrano de Bergerac no qual o personagem, que se achava muito feio, escreve para que outro o interprete. A palavra do escritor tem por função fazer ponte entre os abismos que existem na vida das pessoas e, assim, possibilitar a crença de que o leitor possa tocar com suas próprias mãos regiões antes inalcançáveis. Trilhar por caminhos nunca antes navegados é estar não-todo na possibilidade do evento. Esta radical posição diante da vida permite um certo ‘iluminismo’ diante das crenças obscurantistas que fizeram da infância do sujeito um canteiro fértil para o unheimlich freudiano. A palavra, escrita ou falada, joga luz onde havia tropeço desde os pés inchados de Oedipus, aquele que anda mal, que manca ou claudica. A palavra ao se banhar nas margens da linguagem abre uma nuvem de significantes que correm ligeiras ao sabor do vento das enunciações do sujeito. A palavra, no correr das lufadas do desejo, vai mais além do que ela gostaria de dizer e, assim, revela ao mesmo tempo em que desconstrói as cercas que aprisionavam as possibilidades e liberdades de escolha do sujeito diante da linguagem. Por isso não há maior liberdade do que a liberdade de escolha. Um autor pode escolher que destino ele vai dar à sua trama. Há aí uma responsabilidade do escritor diante do seu desejo de transmissão. A conformidade entre o que ele pensa e o que ele escreve dá ao autor o poder de convencimento ou persuasão da veracidade da sua história. Para o analisante, a trilha ou o desfiladeiro de significantes em suas associações livres, também revelam caminhos (muitas vezes de irrupção de pontos de angústia) que o leva a se descortinar com as franjas da verdade.

Há enormes paralelos entre o escritor e um psicanalista. Um deles diz respeito a que ambos possibilitem ao leitor ou ao paciente interpretar seus próprios textos. O texto do escritor é interpretado pelo leitor através de suas experiências pessoais e outras leituras. O psicanalista leva o paciente a formular também seus próprios textos, a escutá-los, dando a cada palavra proferida a devida dimensão de sua paternidade e autoria. Não é à toa que alguns analisandos terminem suas análises e vão escrever livros relatando sobre o percurso transcorrido. Vão ficcionalizar sobre a realidade inventada, a memória perdida e a redução inesgotável de suas dores. Escrever sobre o resgate da memória perdida é refazer a parábola do filho pródigo ou do pastor que tendo cem ovelhas e perdido uma, largou as noventa e nove e foi atrás da que se perdeu. Certos pequenos restos perdidos do passado são mais incômodos e contundentes (possuem a força de um tsunâmi) do que toda uma biblioteca de Alexandria de pura e boa memória.

O escritor é um sujeito que sofre. Também possui suas humanidades, poderiam vocês contra-argumentarem. Mas, não só. O escritor sofre, padece da palavra. Sofre dela, por
ela e através dela. Sofre e se regozija pelo encontro. Sofre pelo desencontro tal como no fim de um baile de máscaras; 'não era ele, não era ela'. No fundo, não dá para esquecer que um autor é antes de tudo um leitor, assim como um psicanalista terá sido um analisante.

A memória do escritor é atualizada na palavra construída, inventada por ele e, portanto, resignificada sobre o tempo perdido. Quem escreve, não perde tempo. Quem escreve, não se perde do seu tempo. Quem escreve, não se perde no tempo. No tempo das memórias inventadas.
–––––––––––––––-
Sobre o Autor
Psicanalista e Escritor. Autor de Fragmenta (poesia); A sede da mulher e de um homem (poesia); O nó górdio (romance/ficção) pela editora Cia de Freud; e, A última palavra (romance/ficção) pela editora Rocco. Este ensaio foi publicado originalmente no blog do autor Veredas: Literatura e Psicanálise: http://veredaspulsionais.blogspot.com/

Fonte:
Revista Psicanálise & Barroco em revista v.7, n.2: 173-178, dez.2009 173

Nenhum comentário: