sábado, 20 de março de 2010

Heitor Saldanha (Poesias Escolhidas)


O ACIDENTE DE ONTEM

O menino levava um buquê de flores
e um cartão com endereço.
O bonde matou o menino.
Um horizontes de olhos
reuniu o sofrido instante.
Dentro da manhã de abril
alada em altas bandeiras,
o sangue escorria puro, simples,
sobre os trilhos de ferro
sobre as pedras da rua.
Ninguém leu o endereço do cartão.

ESTRUTURA DAS ÁGUAS
a Moacyr Félix

O mar é um cenário aberto
que derrapou no espaço,
e ancorou-se
de bruços
à espera de si mesmo.
Quando sonha se rascunha
lenta metamorfose.
Às vezes
vem,
é um galgo
com seu arco de triunfo,
Chega,
flue,
e dissuade
sua breve estrutura.
Outras vezes vem armado
duma carranca bovina,
Chega,
muge
e se estira
desarmado,
lascivo
Mas quando se recompõe
em placitude de espera,
é o campo do boi mugindo.



Hoje enquanto tiver dinheiro
beberei
Depois
entregarei ao garçom
meu relógio de pulso
meus carpins de nylon
meus óculos de tartaruga (que nome bonito)
minha caneta tinteiro
e continuarei bebendo
bebendo
sem literatura
sem poema
sem nada.
Só.
Como se o mundo começasse agora.
Estou nesses conscientes estados de alma
em que não posso me salvar
e nem salvá-la.

ANDAMENTO

De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
despedida.
Mas não devo saber,
nem é preciso saber.
Creio que vim
pra dizer um dia
na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
Hoje sou mais criança do que nunca.
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Fontes:
A Hora Evarista, Instituto Estadual do Livro, Editora Movimento, Porto Alegre, 1974.
Antonio Hohlfeldt (seleção). Antologia da Literatura Rio-Grandense Contemporânea. vol. 2. Cronica e poesia. RS: L&PM, 1979.

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