sexta-feira, 26 de março de 2010

João Felinto Neto (Antologia Poética)


CABAZ

Um cesto envernizado
no qual eu guardo os frutos do meu delírio.
Um livro anunciado
e nunca editado,
intitulado de cabaz.
Um sonho engavetado e esquecido.
A cada dia acrescido de uma página,
uma a uma,
em poemas despertos pela inspiração.
Depois de escritos,
adormecidos no escuro de uma gaveta,
iluminados pela luz da imaginação.
Quem sabe ao amanhecer
possa me surpreender,
e agradar-me o resultado.
As páginas que eram antes separadas,
estejam editadas
em um livro encapado.

AUTO-RETRATO

Sou de nascimento,
humano.
De substância,
eterno.
Na poesia,
anônimo.
No comportar-se,
lépido.
De índole,
excessivo.
De convivência,
sentimental.
Na multidão,
passivo.
No aspecto,
normal.
De opinião,
inverso.
De ambição,
um pouco.
Na devoção,
incrédulo.
No pensamento,
um louco.

GRAMATICAL

Só em letras imprimo minha alma.
Mais do que texto
sou contexto indecifrável.
Meu sinônimo é antônimo de si mesmo.
Um sujeito indefinido
que é objeto de um erro
gramatical.
Entre modos e tempos,
triste verbo
que ecoa na forma nominal.
Orações que são subordinadas
aos meus vícios de linguagem.
Um início em letras ordenadas
e um fim
numa expressão oral.

AFLORA UM POETA

Assim se fez um poeta.
Como talhe na madeira
esculpi minha poesia.
De uma maneira fria
infundi minha alma no papel.
Nas costas de um corcel
cavalguei por entre versos;
muitas vezes sem regresso,
o poema, me tornei.
De um sono despertei
enquanto escrevia,
da caneta então flua
as idéias que sonhei.
Quem sabe se eu errei?
Foram mais de trinta anos,
foram tantos desenganos
que poeta, me tornei.

ABSTRAÇÃO

Meu paradeiro,
não me pergunte,
é ermo.
Meu erro,
um desengano.
Meu abstrato querer
é verdadeiro.
O meu agora,
é quando.
Por ser em parte,
não sou inteiro.
O meu tinteiro
é preto e branco.
Apenas passo pelo primeiro,
mas sou o último plano.

IMAGINAÇÃO

A metade de mim
é sonho.
Do que sonho,
metade sou.
Eu não sou
metade do sonho
da metade
que não sonhou.

SOU EU

Estou eu no mundo
em um lugar em que ninguém me entende.
Movo os lábios e parece
que ninguém me escuta,
somente um louco que para mim sorri
parece entender o que eu digo.
Ao reconhecer que o único que me entende
é um louco,
aproximo-me um pouco,
maior é meu espanto
ao descobrir que o louco
agora em pranto
sou eu.

VIVO

Viver
é para mim
distanciar-me
dos que são como eu
distantes.
É não procurar ombro.
É simplesmente chorar
por alguns instantes,
por não ficar.
É querer então estar
em mim presente,
para ver em seus olhos
que não estou ausente
da eterna ilusão
de que vivo.
Viver
é para mim,
seu riso.

EU POETA

Eu, poeta, choro agora,
as lágrimas de outrora,
de hoje e de amanhã.

Eu, poeta, sou inteiro.
Sou último e primeiro
em minha poesia vã.

Eu, poeta, sou reverso.
Sou verso do anverso
de ilimitadas versões.

Eu, poeta, sou um homem.
Minhas ambições somem
quando perco as ilusões.

Eu, poeta, não existo.
Sou um ato fictício
de minha própria criação.

INGÊNITO

Seguir os passos
a um lugar perdido na distância;
entrar na dança
de um ritual de acasalamento;
sentir nas mãos
o instintivo dom
que vem de dentro;
ouvir o som
de vozes ecoadas;
e nas entonações
das poesias declamadas,
revelar-se poeta.

DIMENSIONAL

No meu olhar
está o meu desfecho.
Sendo eu meu próprio eixo,
não consigo me deter
no movimento circular
do ser.
Volto a me ver
numa rua sem fim,
numa curva enfim,
volto ao mesmo lugar.
Olho as paredes sólidas,
diviso uma janela,
vejo-me nela
numa visão secular
como figura temporal
traçada no esboço do anormal.
Sou assim,
em mim,
dimensional.

DOR DE CABEÇA

Não consigo decifrar-me no enigma da vida.
Desconheço a mim
no escuro sono inconsciente da noite.
Talvez meus sonhos
tentem revelar-me ao meu próprio eu.
Estou sempre questionando
se são minhas as verdades ou as mentiras.
Descobrir-me
é meu eterno problema,
é minha dor de cabeça.
Serei culpa de um mundo avesso
no qual devemos todos ser direitos.
Posso até estar do lado errado.
Mas qual seria o certo
se errado não houvesse?
Sou uma língua estranha.
Não consigo traduzir-me.

VERSÃO DE MIM

Falo de mim,
ao mesmo tempo
diante de mim,
eu me calo.
Meus olhos me vigiam com vagar,
e devagar,
a divagar sobre um princípio
chego ao meu fim.
Começo a me despir de mim,
sem embaraço,
falando que enfim
eu me pareço
com o que eu mesmo sou,
antagonicamente pessoal.

AMPLIDÃO

Meu rosto já não cabe em minhas mãos
por ser meu pranto
bem maior que minha face.
Eu sou em parte,
parte de mim
que em mim não cabe;
sou amplidão.
Ponho na mão
o mundo que nela não cabe.
Peço perdão
à parte que ainda cabe em mim,
por meu sorriso,
é por saber que nada sabe.

ATRAVÉS DOS OLHOS

Inquieto,
meu pensamento
movimenta-se por trás dos olhos fixos.
Compenetrado,
absorto em uma ampla sala,
guarda minhas recordações.
Volta
no piscar dos olhos castanhos claros
e percebe o mundo à sua volta,
desordenado
pela ordem natural do caos.
E torna-se real
no obscuro mundo das idéias,
a síntese de tudo
que sou.

APELOS

O que desejo,
acaba sempre em lágrimas.
Meus beijos,
em despedida.
Ainda não vejo
para minhas mágoas
uma saída.
Os meus apelos,
que o mundo não saiba.
Nunca deixei de amar
por um só dia.
Já que a voz
no tempo em mim se cala,
que minha dor
não dure a minha vida.

ILUSÃO

Não abdico de quem sou,
não por que sou,
mas por me acostumar a ser.
Esta é a forma que o mundo me ver,
não a maneira de saber quem sou.

Sou por extenso e rubricado.
Sou um grande número cadastrado
em um pequeno pedaço de papel.
Sou uma foto três por quatro
resguardada por um véu
de plástico.

Uma imagem revelada
do negativo de um sobrenome.
Uma figura desbotada
com o passar dos anos.

Sobre as linhas de minhas digitais,
rabisquei demais
meu nome.

Sendo assim,
tornei-me enfim,
a ilusão de acreditar
quem sou.

FRACOS, FORTES E LOUCOS

Os fracos se suportam
por serem fracos,
os fortes se sufocam
tentando superar
uns aos outros,
e os loucos
toleram a ambos.
Pois os loucos sabem
que na solidão
a saudade é companhia lúgubre,
as horas se intensificam,
e os amores se distanciam.
Sou um fraco na dor,
sufocar-me-ia sem amor,
sou um louco.

CORES

Foram pedaços de lápis
que pintaram minha vida.
Em preto,
em branco,
pintaram meu pranto.
Em vermelho,
minha ideologia.
Em verde,
o interesse pelo campo.
Em amarelo,
um sol que brilha.
Em azul,
um mundo em céu
com um arco-íris
de utopia.

Em cores vivas,
em cores mortas,
são minhas dores.

Não há borracha
de tempo
que apague
minhas cores.

EXPOSTO

Eu pedi
que meu sorriso
fosse exposto,
mesmo a contra-gosto,
no caderno de tristeza.

Que servissem à mesa
com o meu cardápio,
mesmo que meu gosto
fosse amargo.

Que meus lábios
fossem lidos
pelos ouvidos
que não me escutam.

E que tudo que pedi
me fosse negado.

INCOMPREENSÃO

Pensei encontrar uma brecha,
um buraco,
uma fresta
no lençol de estrelas,
e espiar para fora
dessa redoma de cor.
Rasgar o céu
como uma folha de papel
azul.
Rasgar o véu
para ver a forma
de seu corpo nu,
num branco virginal
de flor.
Iluminando caminhos,
hei-me facho de luz.
Na dor,
sacrificar-me-ei por nós.
Suas datas
são minhas lições de casa.
Suas falas
são meus verbos perdidos.
Na ausência do ser,
não sou.
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Fonte:
João Felinto Neto. Cabaz.

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