domingo, 18 de abril de 2010

Carlos Felipe Moisés (O Escritor em Xeque)



Carlos Felipe Moisés concede entrevista a Álvaro Alves de Faria

À clássica pergunta “a poesia morreu?”, Carlos Felipe Moisés costuma dizer que a poesia morreu muitas vezes e sempre renasceu. Não é à toa que já imaginou escrever um livro com o título Poesia: crônica de uma morte anunciada. Desistiu. Como diz, seria insistir no óbvio:

– A morte da poesia vem sendo periodicamente propalada, e desmentida (diz Carlos Felipe), pelo menos desde a segunda metade do século XIX. É que, desde então, a poesia tem estado permanentemente em crise de transformação e evolução, determinada pela falência dos padrões clássicos, ou de qualquer padrão fixo e definitivo. A poesia passou a ser, a partir de Baudelaire, digamos, o reduto privilegiado da mudança. Daí a “crise”, interpretada por muitos como indício de esgotamento ou morte. Nada disso. Com a poesia acontece um pouco do que Marshall Berman (Tudo o que é sólido desmancha no ar) detectou na sociedade burguesa: “Afirmar que está caindo aos pedaços é dizer que está viva e em boa forma”.

Mas, afinal, para que serve a poesia num mundo mutilado, sem valores definidos, e mergulhado numa violência incompatível com a vida? Carlos Felipe Moisés assegura que a poesia serve para que nos tornemos melhores do que somos, enquanto indivíduos, não enquanto poetas. Serve para nos ajudar a extrair, desta breve passagem pela superfície do planeta, o melhor proveito espiritual possível.

– É uma visão romântica? – pergunta o poeta Carlos Felipe Moisés. E ele mesmo responde: – Sem dúvida. Mas é preciso entender que o romantismo não é apenas uma “escola” literária ultrapassada, circunscrita a determinado momento histórico, mas um estado de espírito que continua em curso, incorporando em sucessivas metamorfoses o que veio depois, atualizando-se. Cabe dizer, também, que servir, propriamente, a poesia não serve para nada: é a mais perfeita das inutilidades em que o homo ludens que somos pode empenhar-se. Mas por isso mesmo a poesia tem sido, vem sendo uma forma de resistência ao utilitarismo mesquinho.

Carlos Felipe não acredita que a poesia deva ser levada a sério. Acha que a poesia deve ser encarada como divertissement, jogo lúdico, despremeditado, com as palavras e com a essência da vida. O poeta se aborrece com a possibilidade de a poesia ser levada a sério, como algo que exigisse uma atitude mais formal, diferente daquela assumida no trivial da existência:

– Acho que a poesia deve fazer parte do nosso dia-a-dia – afirma Carlos Felipe. – A sério ou não, isso vai depender do temperamento de cada um. Para o meu, não. Para mim, poesia é sinônimo de divertimento. A sério. Mas sei que quando alguém indaga se a poesia deve ser levada a sério, a pergunta tem outro endereço: aquela mentalidade rigidamente utilitarista, para a qual poesia é bobagem, ocupação de desocupados e inadaptados. Ainda assim, minaha resposta continua sendo a mesma: a poesia não deve ser levada a sério.

Em que o poeta difere de outros poetas?

– Sem pensar muito, eu diria que não difere. Pensando um pouco, acrescentaria o óbvio: ninguém confunde um livro de poemas com um romance. E isso tem a ver com a preocupação classificatória de críticos e professores. É a questão dos gêneros, que sem dúvida diferem entre si, mas, neste século, muitas vezes manifestam-se sob formas híbridas, indiferenciadas. Há muitos textos modernos, dentre os mais marcantes e significativos, diante dos quais hesitamos. Poesia? Prosa? Prosa poética? E por aí vai. Então, insisto na resposta irrefletida: o poeta não se distingue de outros escritores.

Carlos Felipe Moisés observa que a poesia brasileira, hoje, felizmente, está em crise: “a poesia está morta mas juro que não fui eu”, como declarou José Paulo Paes. O poeta esclarece que essa crise significa pujança, dinamismo e, sobretudo, diversidade:

– Nossos grandes poetas se foram: Bandeira, Cecília, Drummond, Vinícius, Murilo... João Cabral silenciou, há tempos. Mas suas vozes continuam vivas e atuantes, muito mais do que a de muitos jovens recém-guindados ao panteão lírico da Pátria. A poesia brasileira hoje (um “hoje” que se arrasta há três ou quatro décadas) se caracteriza pela variedade dos ingredientes e caminhos em que aposta – da prolixidade à concisão, da ousadia experimentalista ao tradicionalismo conservador. E todos esses caminhos são válidos e legítimos, para desespero desta ou daquela minoria que insiste em nos impingir seu sectarismo.

E a crítica literária?

– Os arautos da morte da poesia diriam que nossa crítica, há décadas, vai bem melhor. Nos últimos 30 anos, a imprensa perdeu o charme dos grandes suplementos literários (noto, nos anos recentes, um tímido esboço no sentido de ressuscitá-los), o charme dos rodapés semanais. Perdeu-se com isso o critério subentendido da “autoridade” tacitamente atribuída a uns e outros. No mesmo período, cresceu o prestígio da chamada crítica universitária, modalidade que levou a “autoridade” a migrar das mãos do amador para as do especialista e a se divorciar do grande público. A crítica literária carece hoje de autoridade referendada. Eu diria que, entre o referendum da mídia e o prestígio da academia, nossa crítica procura cumprir com sua finalidade primordial, qual seja assinalar a maturidade da literatura em que se insere. Uma literatura amadurecida não se limita a existir, nem se restringe a alguns autores “de nível internacional”, como se costuma dizer, mas deve mostrar-se também capaz de discorrer sobre a consciência de sua própria existência. Acredito que aí resida a função maior da crítica literária. E acredito que a nossa caminha nessa direção.

Carlos Felipe Moisés pertence à Geração 60 de poetas de São Paulo. Mas ele não acredita na existência da geração. Ele observa que, se afirmar que acredita, dirão que é suspeito, pois se trata da sua geração; se negá-la, dirão que é mais suspeito ainda:

– Em nome da geração à qual pertenço (pertencemos, não é mesmo, Álvaro?), peço permissão para afirmar que a Geração 60 não existe, nem deixa de existir. Em primeiro lugar, quem somos, meu caro e fraterno Álvaro Alves de Faria? Resposta: Roberto Piva, Cláudio Willer, Lindolf Bell, Eduardo Alves da Costa, Celso Luís Paulini, Eunice Arruda, Rubens Rodrigues Torres Filho, Sérgio Lima, Neide Archanjo, Carlos Soulié do Amaral, você, eu próprio, e vários outros poetas que se reuniram, adolescentes, no início dos anos 60, em torno da editora Massao Ohno, em São Paulo. Nós erguemos nosso ideário ou nossa plataforma de combate? Produzimos nosso ismo? Transmitimos a alguém, como diria Brás Cubas, o legado da nossa miséria? Fomos e continuamos até hoje a geração da dispersão. E é isso, exatamente, que afirma a nossa existência e a nossa inexistência. Por outro lado, estamos falando de alguma coisa muito local, muito regional, quando poderíamos (deveríamos?) buscar um âmbito mais abrangente. Pedro Lyra – que é da mesma geração, em termos cronológicos, mas só viemos a nos cruzar muitos anos depois – nos ajuda a ver a coisa de outro prisma, com sua recolha ecumênica Sincretismo: a poesia da Geração 60. Naqueles idos de 60, no mesmo instante em que nos agrupávamos, circunstancialmente, em São Paulo, dezenas de outros jovens poetas faziam mais ou menos o mesmo, em vários pontos do país. Somos todos da mesma Geração, com G maiúsculo? Sugiro confiar essa pergunta à argúcia dos historiadores, que um dia saberão colocar esses e outros nomes em seu devido lugar.

Fonte:
Opção Cultural, Goiânia, 28 de junho de 1997, ano III, no 144.

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