sábado, 17 de abril de 2010

Marques Rebelo (A Estrela Sobe)


texto de Márcio Renato dos Santos, extrato de dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná

Publicado em 1939, A Estrela Sobe se passa em grande parte “no pequeno mundo das estações de rádio", contando as peripécias e sofrimentos de Leniza Maier, moça suburbana que, no Rio de Janeiro da década de 1930, sonha com o sucesso como cantora. Sua jornada rumo ao estrelato é marcada por percalços e dilemas morais: quer cortar os laços com todos os que possam atrapalhar sua ascensão, mas a nostalgia pela vida pregressa a domina. No fim, engravida e aborta, chegando à beira do delírio e da morte. Salva-se, mas sua crise está longe de terminar. Antes de dar um fecho convencional à história, porém, o autor prefere deixá-la em aberto. Diz o narrador: “... aqui termino a história de Leniza. Não a abandonei, mas, como romancista perdi-a".

Como já citado, a personagem central se chama Leniza. De origem humilde, fica órfã de pai ainda pequena. A mãe passa a trabalhar fora. Leniza trabalha para ajudar nas despesas. Moça atraente, namora muito, e variadamente, e é muito assediada pelas ruas do Rio de Janeiro. Muda de emprego. Trabalhava em um laboratório quando conheceu e se apaixonou por um médico, o Oliveira. Leniza fica ora com Oliveira, ora com Mário Alves — este, dono de um estabelecimento que comercializa aparelhos eletrônicos, entre os quais, rádios. Ela sonha se tornar uma cantora do rádio. Abandona o emprego no laboratório. O patrão adverte que vida de artista não é fácil. A mãe fica com medo. Mário Alves a leva para fazer o teste em uma emissora. Leniza não conta para Oliveira que está cantando no rádio: alega estar em férias. Ela passa a se chamar Leniza Máier. Suas fotos são publicadas em revistas. Oliveira reprova a opção de Leniza. Ela se relaciona com Mário Alves mas pensa em Oliveira.

O mês passa e ela não recebe nenhum centavo na emissora de rádio. Entra em pânico: está difícil sobreviver, mas crê estar em ascensão:

Sentia-se miserável, imunda, escória humana, campo de todos os pecados, lama, pura lama. Mas subira. Dois ou três degraus na escada do mundo. Via que já estava num plano bem acima, algumas figuras já ficavam menores, a miséria escondia-se já numa bruma longínqua. Mas precisava subir mais, sempre mais, custasse o que custasse.

Leniza consegue algum dinheiro. Muda-se da casa do subúrbio para um apartamento na zona sul carioca. A mãe vai junto. Leniza rompe com Mário Alves. Oliveira não a quer mais. Ela, então, passa a namorar Dulce, uma colega da rádio. Dulce ensina: as cantoras não ganham dinheiro na rádio, é preciso ter um amante. Leniza abandona Dulce e se oferece para ser amante de Porto, homem forte na rádio. A mãe de Leniza fica doente. Leniza dá um fora em Porto e passa a ser amante de Amaro, um homem rico. Ela vai cantar em outra emissora de rádio. Sente-se infeliz. E toda vez que encontra com Oliveira, casualmente, na rua, imagina que ele, e somente ele, poderia tirá-la do mundo infeliz em que ela se encontra.

A personagem fica grávida. Amaro, o “pai da criança”, se afasta. Ela quer fazer aborto. Procura Oliveira. Ele se nega a participar da operação. Leniza aborta. Fica vários dias entre a vida e a morte, agonizando em seu quarto. A mãe, que recebeu cartas anônimas, se afasta da filha. A protagonista do romance A estrela sobe tem uma idéia: ela precisa ir até uma igreja, onde acredita que irá encontrar a solução para seus problemas. No desfecho da obra, uma sexta-feira 13, Leniza acorda decidida. E sai do apartamento:

Andava, andava, esbarrando nos homens, nas mulheres, como se estivesse embriagada. Andava, andava. Veio-lhe claro como um clarim o desejo de humilhação. Queria se arrastar, pedir perdão, implorar. Lembrou-se da mãe, que fora buscar no recolhimento o consolo para a sua miséria humana. Lembrou-se da igreja do Rosário onde fora batizada, tão redonda, tão pequena, tão linda e dourada. Tinha ido qual fumaça o delírio místico da primeira comunhão aos doze anos... Caiu na realidade — estava perto da igreja. Caminhou contente, depressa, ansiosa por chegar. Sentia já nas narinas o ar confinado da igreja, morno e azedo, nos ouvidos o eco côncavo das naves desertas, nos olhos a obscuridade em que as almas se ajoelham ansiosas de luz. Não, não saberia rezar! Um vento ímpio, que soprou por anos, levara-lhe da memória as confortadoras, mecânicas orações. Mas comporia, inventaria, deixaria sair sem freio do coração as palavras mais espontâneas e humildes, os cantos mais sinceros de fé e de contrição. Deixar-se-ia arrastar pelo... Ah!, e estacou — a igreja estava fechada. [...] O céu não me quer! — e novamente mergulhou na onda humana, caudal de sofrimentos, inquietudes, aflições, incertezas, pecados.

Ela pensou encontrar na igreja uma solução para seus problemas, mas a porta da igreja estava fechada. A simbologia é clara: a igreja não daria o que ela buscava.

Leniza Máier é uma jovem pobre em busca de sucesso na grande fábrica de sonhos da época: o rádio. E, como visto, para conseguir seus objetivos utiliza de todos os meios – a ponto de recusar o amor verdadeiro e aceitar outros, menos sinceros. A personagem é uma alegoria da cidade do Rio de Janeiro. Os conflitos, as perplexidades, as angústias, as alegrias da personagem, na verdade, são os conflitos, as perplexidades, as angústias e as alegrias da cidade. Sua voz se confunde com a voz do rádio; sua ascensão como cantora representa a modernização da sociedade. Embora protagonista da estória, Leniza não é a sua personagem principal. A fama, antiga deusa grega que significa voz pública, essa sim, é a voz principal do romance. Leniza, mais do que uma voz, é porta-voz, sua voz é uma metáfora da vox populi.

A prosa urbana moderna. Esse é o lugar literário da obra do escritor Marques Rebelo, que, deste modo, se insere na linha de Manuel Antônio de Almeida, de Machado de Assis e de Lima Barreto. Como seus predecessores, Rebelo aprendeu as armas do distanciamento e da ironia, que usa nos melhores momentos de sua ficção. O crítico Alfredo Bosi o classifica como um neo-realista que, contudo, não perde sua veia lírica, empregada comedidamente. Seu mundo é o de gente simples, mocinhas aventureiras, pequenos funcionários, caixeiros-viajantes, donas-de-casa, estudantes, malandros, marinheiros, boêmios, sambistas, cujos pequenos dramas são focados numa prosa “tensa e lírica", cuja naturalidade resulta de sutil estilização dos valores da linguagem coloquial, sobretudo nos diálogos.

Para o escritor Mário de Andrade, o final inacabado confirma a modernidade do romance, pois privilegia mais o fluir da vida do que a elaboração de um entrecho bem-acabado, atrevendo-se até a apor um final arbitrário. O fator decisivo para a vitalidade da obra é a capacidade de representar as tensões do quadro social, sem que o romancista ceda a dogmatismos ideológicos. Leniza não se arrepende ou se converte, salvando o romance de um possível esquematismo tardiamente romântico.

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