domingo, 16 de maio de 2010

Artur de Azevedo (De Cima para Baixo)



Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria. Este, como se movido por uma pilha elétrica, poucos instantes depois estava em presença de Sua Excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

— Estou furioso! — exclamou o conselheiro; — por sua causa passei por uma vergonha diante de Sua Majestade o Imperador!

— Por minha causa? — perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo no peito.

— O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!

— Que me está dizendo, Excelentíssimo?...

E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

— É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...

— É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de Sua Majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o seu oficial-de-gabinete!

Dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

— Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial. Ouvi palavras tão desagradáveis, proferidas pelos augustos lábios de Sua Majestade, que dei a minha demissão...

— Oh!...

— Sua Majestade não a aceitou...

— Naturalmente! Fez Sua Majestade muito bem.

— Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.

— Peço mil perdões a Vossa Excelência — protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. — O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a Vossa Excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que não se reproduzam fatos desta natureza.

O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

— Bom! mande reformar essa porcaria!

* * *

O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras. Chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção, que o encontrou fulo de cólera.

— Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. Ministro!

— Por minha causa?

— O senhor mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado! — E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.

O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito. Depois de se certificar do erro, balbuciou:

— Queira Vossa Senhoria desculpar-me, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e tudo tão urgente!...

— O Sr. Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!

— Não era caso para tanto.

— Não era caso para tanto? Pois olhe, Sua Excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta!

— Eu... Vossa Senhoria...

— Não o suspendo. Limito-me a fazer-lhe uma advertência, de acordo com o regulamento.

— Eu... Vossa Senhoria...

— Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

* * *

O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:

— Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral!

— Por minha causa?

— O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!

E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

— Eu devia propor a sua suspensão por 15 dias ou um mês. Limito-me a repreendê-lo, na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral me não tratasse com tanto respeito e consideração!

— O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...

— Ainda o confessa!

— Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...

— Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...

— Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...

— Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

* * *

O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha e apareceu um contínuo.

— Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!

— Por minha causa?

— Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa, o que me levou a omitir o nome do nomeado.

— Foi porque...

— Não se desculpe! Você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estaria suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!

— Mas...

— Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz. Eu poderia queixar-me de você!...

* * *

O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da Secretaria.

— Estou furioso! Por sua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!

— Por minha causa?

— Sim. Quando te mandei ontem buscar na portaria aquele papel imperial, por que te demoraste tanto?

— Porque...

— Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua. Serventes não faltam!...

O preto não redargüiu.

* * *

O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois do jantar, sem vontade, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremento pontapé no seu cão.

O mísero animal, que vinha alegre dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe da seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...

Fonte:
Maravilhas do conto humorístico. SP: Cultrix, 1961.

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