sábado, 31 de julho de 2010

Trova 166 - José Feldman (PR)


À minha esposa, Alba Krishna

Ruth Rocha (O Direito das Crianças)


Toda criança no mundo
Deve ser bem protegida
Contra os rigores do tempo
Contra os rigores da vida.

Criança tem que ter nome
Criança tem que ter lar
Ter saúde e não ter fome
Ter segurança e estudar.

Não é questão de querer
Nem questão de concordar
Os diretos das crianças
Todos tem de respeitar.

Tem direito à atenção
Direito de não ter medos
Direito a livros e a pão
Direito de ter brinquedos.

Mas criança também tem
O direito de sorrir.
Correr na beira do mar,
Ter lápis de colorir...

Ver uma estrela cadente,
Filme que tenha robô,
Ganhar um lindo presente,
Ouvir histórias do avô.

Descer do escorregador,
Fazer bolha de sabão,
Sorvete, se faz calor,
Brincar de adivinhação.

Morango com chantilly,
Ver mágico de cartola,
O canto do bem-te-vi,
Bola, bola,bola, bola!

Lamber fundo da panela
Ser tratada com afeição
Ser alegre e tagarela
Poder também dizer não!

Carrinho, jogos, bonecas,
Montar um jogo de armar,
Amarelinha, petecas,
E uma corda de pular.

Um passeio de canoa,
Pão lambuzado de mel,
Ficar um pouquinho à toa...
Contar estrelas no céu...

Ficar lendo revistinha,
Um amigo inteligente,
Pipa na ponta da linha,
Um bom dum cahorro-quente.

Festejar o aniversário,
Com bala, bolo e balão!
Brincar com muitos amigos,
Dar pulos no colchão.

Livros com muita figura,
Fazer viagem de trem,
Um pouquinho de aventura...
Alguém para querer bem...

Festinha de São João,
Com fogueira e com bombinha,
Pé-de-moleque e rojão,
Com quadrilha e bandeirinha.

Andar debaixo da chuva,
Ouvir música e dançar.
Ver carreiro de saúva,
Sentir o cheiro do mar.

Pisar descalça no barro,
Comer frutas no pomar,
Ver casa de joão-de-barro,
Noite de muito luar.

Ter tempo pra fazer nada,
Ter quem penteie os cabelos,
Ficar um tempo calada...
Falar pelos cotovelos.

E quando a noite chegar,
Um bom banho, bem quentinho,
Sensação de bem-estar...
De preferência um colinho.

Embora eu não seja rei,
Decreto, neste país,
Que toda, toda criança
Tem direito de ser feliz!

E quando a noite chegar,
Um bom banho, bem quentinho,
Sensação de bem-estar...
De preferência um colinho.

Uma caminha macia,
Uma canção de ninar,
Uma história bem bonita,
Então, dormir e sonhar...

Embora eu não seja rei,
Decreto, neste país,
Que toda, toda criança
Tem direito a ser feliz!

Fontes:
http://www.uniblog.com.br/poesiasinfantis/

Ruth Rocha (A Menina que Não Era Maluquinha)


Maluquinha, eu?

Eu não! Não sou nenhuma maluquinha!

Quem me pôs esse apelido foi aquele menino de casacão e panela na cabeça.

Ele me botou esse apelido quando eu fui brincar na casa do Mauricinho.

Eu nem queria ir.

Mas a mãe dele telefonou pra minha mãe, ela disse que o Mauricinho era muito tímido e que ela queria que ele brincasse com umas crianças mais... Não sei o que ela disse, acho que ela queria que ele brincasse com umas crianças mais descoladas...

E aí minha mãe me encheu um pouco e eu acabei indo.

A gente chegou na casa do Mauricinho e foi logo almoçar.

E depois do almoço a mãe dele botou a gente pra fazer a lição.

Eu não me incomodo de fazer lição logo depois do almoço, porque eu fico logo livre.

Mas a mãe do Mauricinho começou a fazer uns discursos sobre responsabilidade e coisa e tal, que a gente já era grandinha e tinha que cumprir com os compromissos... Um saco!

Eu tô careca de saber disso!

E então eu fiz minha lição correndo e o Mauricinho ficou lá toda a vida, ele não acabava mais de fazer a lição dele.

Aí eu comecei a rodar pela casa até que encontrei um gato.

Gato não, gata. Chamava Pom-pom. Ou era Fru-fru... Ou era Bom-Bom, sei lá.

E eu peguei a gata e ela estava meio fedida.

Então eu resolvi dar um banho nela. Gato não gosta de banho, vocês sabem.

Mas meu avô tinha me contado que quando ele queria dar banho no gato ele botava o bicho dentro da banheira e ele não conseguia sair e meu avô dava banho à vontade!

Mauricinho tinha um banheiro dentro do quarto dele.

Quando eu fui chegando perto da banheira a gata arrepiou toda e eu joguei ela bem depressa lá dentro e tapei o ralo e enchi de água.

E esfreguei a gata todinha com um shampoo todo perfumado que tinha lá e eu estava achando que todo mundo ia gostar de ver a gata toda limpinha. A gata estava muito infeliz e ela miava miaaauuu... e tentava sair do banho, mas meu avô tinha razão: ela arranhava a parede da banheira, mas não conseguia sair.

Mas acho que aí caiu shampoo no olho da gata, porque ela deu um pulo e agarrou na minha roupa e conseguiu pular fora e saiu correndo, espalhando espuma de shampoo por todo lado e nisso a mãe do Mauricinho vinha chegando e levou o maior susto e caiu sentada e a gata continuou correndo e assustando todo mundo e respingando tudo de espuma.

Eu não sei quem estava mais assustado: se era o Mauricinho, a mãe dele, a gata, ou se era eu.

Eu corri atrás da gata, mas ela pulou pela janela, atravessou o jardim, saiu pela rua e eu atrás.

Só que no meio da rua estava a turma daquele menino, aquele da panela na cabeça, e a gata passou pelo meio deles todos e eu atrás!

E eles levaram o maior susto, cada um correu para um lado, e atrás de mim vinha a mãe do Mauricinho e o Mauricinho e a cozinheira e o jardineiro todos correndo e gritando e eu resolvi correr para a minha casa e me esconder lá.

Mas no dia seguinte... a escola toda já sabia da história e aquele menino, aquele da panela na cabeça começou a me chamar de maluquinha...

Mas eu não sou maluquinha, não! Só se for a vó dele!

Fonte:
http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historias_03_in.htm

Ruth Rocha (1931)



Uma das escritoras infantis mais conhecidas e prestigiadas, Ruth Rocha nasceu na cidade de São Paulo, em 2 de março de 1931. Filha dos cariocas Álvaro de Faria Machado, médico, e Esther de Sampaio Machado, tem quatro irmãos, Rilda, Álvaro, Eliana e Alexandre. Teve uma infância alegre e repleta de livros e gibis. O bairro de Vila Mariana, onde morava, tinha nessa época muitas chácaras por onde Ruth passava, a caminho da escola - estudava no Colégio Bandeirantes. Mais tarde, terminou o Ensino Médio no Colégio Rio Branco.

É graduada em Sociologia e Política pela Universidade de São Paulo e pós-graduada em Orientação Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Casada com Eduardo Rocha, tem uma filha, Mariana e dois netos, Miguel e Pedro.

Durante 15 anos (de 1956 a 1972) foi orientadora educacional do Colégio Rio Branco, onde pôde conviver com os conflitos e as difíceis vivências infantis e com as mudanças do seu tempo. A liberação da mulher, as questões afetivas e de auto-estima foram sedimentando-se em sua formação.

Em 1965 escreve artigos sobre educação para a revista Claudia. Participou da criação da revista Recreio, da Editora Abril, onde teve suas primeiras histórias publicadas a partir de 1969. “Romeu e Julieta”, “Meu Amigo Ventinho”, “Catapimba e Sua Turma”, “O Dono da Bola”, “Teresinha e Gabriela” estão entre seus primeiros textos de ficção.

Deixa a Editora Abril no mesmo ano e inicia prolífera produção literária, inspirada na filha, Mariana. Marcelo, Marmelo, Martelo (1976) vende 1 milhão de exemplares.

Publicou seu primeiro livro, “Palavras Muitas Palavras”, em 1976

De 1973 a 1981, volta a dirigir publicações infantis da Editora Abril, participa das coleções Conte um Conto, Beija-Flor e Histórias de Recreio e lança O Reizinho Mandão (1978). Em 1989 é escolhida pela ONU (Organização das Nações Unidas) para assinar a versão infantil da Declaração Universal dos Direitos Humanos, intitulada Iguais e Livres, publicada em nove línguas.

Monteiro Lobato foi sua grande influência. Em sua obra, essa influência se traduz pelo seu interesse nos problemas sociais e políticos, na sua tendência ao humor e nas suas posições feministas.

Seu livro de forte conteúdo crítico, “Uma História de Rabos Presos”, foi lançado em 1989 no Congresso Nacional em Brasília, com a presença de grande número de parlamentares. Em 1988 e 1990 lançou na sede da Organização das Nações Unidas em Nova York seus livros “Declaração Universal dos Direitos Humanos” para crianças e “Azul e Lindo – Planeta Terra Nossa Casa”.

Participou durante seis anos do programa de televisão Gazeta Meio-Dia como membro fixo da mesa de debates.

Em 1998 foi condecorada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com a Comenda da Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura.

Ganhou os mais importantes prêmios brasileiros destinados à literatura infantil da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, da Câmara Brasileira do Livro, cinco Prêmios “Jabuti”, da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Academia Brasileira de Letras, Prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte, entre outros.

Seu livro mais conhecido é “Marcelo, Marmelo, Martelo”, que já vendeu mais de 1 milhão de cópias.

Em 2002 ganhou o prêmio Moinho Santista de Literatura Infantil, da Fundação Bunge. Também nesse ano foi escolhida como membro do PEN CLUB – Associação Mundial de Escritores no Rio de Janeiro, além de conquistar, neste mesmo ano, o Prêmio Jabuti pelo livro Escrever e Criar.

Atualmente é membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta.

Membro da Academia Paulista de Letras, integrante da cadeira 38 desde 25 de outubro de 2007.

No site oficial da escritora podem ser encontradas mais informações sobre a escritora, livros e histórias, entre outros: http://www2.uol.com.br/ruthrocha/home.htm

Fontes:
http://www.algosobre.com.br/biografias/ruth-rocha.html
http://www2.uol.com.br/ruthrocha/historiadaruth.htm
http://www.infoescola.com/escritores/ruth-rocha/

Poesias na Educação Infantil: A Literatura como Geradora de Experiências Estéticas e Expressivas



Trabalho desenvolvido por Adrianne Ogêda Guedes, Daniela de Oliveira Guimarães, Nuelna da Gama Vieira, Ruani Maceira.
Casa Monte Alegre – Educação Infantil (Cidade do Rio de Janeiro)

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência no campo da linguagem, com crianças de 4 a 6 anos de uma instituição de Educação Infantil na cidade do Rio de Janeiro. Através da abordagem do gênero poesia, a leitura e a escrita foram vividas como práticas expressivas, atravessadas pelas experiências sócio-culturais do grupo. Assim, o contato com a poesia desdobrou-se em possibilidades estéticas: objetos transformaram-se em palavras, palavras geraram movimentos, etc. Ao mesmo tempo que mergulharam no acervo poético brasileiro, as crianças foram sendo mobilizadas por diferentes estilos e modos de produção que passaram a compor seus trabalhos e suas próprias poesias. Enfim, percorrendo caminhos da linguagem plástica à poesia ou do gesto à palavra, experimentamos a linguagem como concretização do pensamento e a produção de significados atravessada pelo afeto e pelas interações sociais.

Contextualizando a experiência: a organização do grupo de crianças, o lugar do professor e alguns princípios pedagógicos.

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência no campo da linguagem desenvolvida com um grupo de 13 crianças de 4 a 6 anos numa instituição de Educação Infantil do Rio de Janeiro, a Casa Monte Alegre. Trata-se de compreender implicações da dimensão expressiva da linguagem para a prática pedagógica.

Alguns aspectos relativos a forma de organização do trabalho com as crianças, tais como as divisões dos grupos e a coordenação dos mesmos, serão aqui explicitadas, possibilitando a contextualização desta experiência. Estaremos também situando o leitor quanto aos princípios teóricos que subsidiam as práticas desenvolvidas na Casa Monte Alegre, dando destaque às idéias sobre a função da Educação Infantil, as práticas de leitura e escrita nesse segmento e as relações de linguagem. Esses aspectos possuem especificidades, mas também estão imbricados, à medida que só podemos pensar nas práticas de leitura e escrita e na relação com diferentes linguagens, por exemplo, a partir do que pensamos ser a função da Educação infantil.

Procuramos abrigar, na forma como organizamos os grupos de crianças, a presença da diferença como mola fundamental para potencializar as trocas de experiências. Sendo assim, os grupos são compostos por crianças de idades variadas, tendo em vista uma faixa de aproximadamente três anos de diferença. O grupo com o qual desenvolvemos a proposta aqui apresentada, possui crianças de 4 anos completos até 6 anos. Essa heterogeneidade marcada pela idade implica, para a prática pedagógica, em levar em conta movimentos, interesses, possibilidades que se diferenciam.

De toda forma, acreditamos que a diferença não é marcada só pela idade. Na verdade, nenhum grupo é homogêneo. Ao olhar a criança sob esta perspectiva, dispomo-nos a acolher respostas variadas para mesmas perguntas, expressões distintas, movimentos diversos. Portanto, o ponto de partida de nosso trabalho sustenta-se no olhar que lançamos à criança, que acolhe a diferença, que não busca a homogeneização, que está aberto às expressões singulares, próprias dos sujeitos envolvidos.

No dia a dia da Casa Monte Alegre, os grupos são identificados por um nome que é escolhido pelas crianças ao longo do primeiro bimestre de atividades. Assim, o nome ganha sentido de identidade, e é escolhido a partir dos interesses infantis, conferindo significado a esse nome. O grupo em questão se chama “Grupo Gelo” e foi criado no início do ano de 2003, quando as curiosidades acerca desse tema estavam avivadas.

Dois educadores assumem a coordenação deste grupo, conjuntamente. O desafio da parceria e da troca entre adultos é também vivido com intensidade nessa disposição. Pensar o trabalho juntos, organizar as ações, desejos e idéias coletivas, fazer-se presente considerando a presença do outro são desafios que deslocam o professor do lugar de centralidade que habitualmente assume. Nessa perspectiva, o professor tem lugar de mediador sim, mas partilha com outro esse lugar, buscando sempre a parceria do grupo na organização do cotidiano. A perspectiva é a da construção da unidade na diversidade.

É importante acrescentar que o diálogo com a experiência italiana (Edwards, Forman e Gandini, 1999) leva-nos a apontar a importância de valorizarmos as cem linguagens da criança na formulação do cotidiano e na perspectiva da construção de uma Pedagogia da Educação Infantil.

Juntamente com Rocha(1999), afirmamos que é fundamental focalizar a especificidade educativa no trabalho com as crianças de 0 a 6 anos, diferenciando-o do ensino fundamental, à medida que neste segmento há lugar privilegiado para o domínio dos conhecimentos básicos. A Educação Infantil define-se pela complementariedade em relação à famíla e, portanto, "tem como objeto as relações educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como sujeito a criança de 0 a 6 anos" (p.62). Isso não significa que os conhecimentos sistematizados e a aprendizagem não pertençam ao universo da Educação Infantil, muito pelo contrário!

"a dimensão que os conhecimentos assumem na educação das crianças pequenas coloca-se numa relação extremamente vinculada aos processos gerais de constituição da criança: a expressão, o afeto, a sexualidade, a socialização, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o imaginário,... as suas cem linguagens" (Rocha, 1999, p.62)

Nosso movimento converge no sentido de sistematizarmos as idéias que particularizam o trabalho com as crianças de 0 a 6 anos. Neste caminho, no dia a dia da Casa Monte Alegre, valorizamos tanto os objetos culturais portadores de escrita (livros, jornais, revistas, etc) e a possibilidade de escrita e leitura por parte das crianças, como outras formas de expressão, tais como a dança, a música, o desenho, a produção plástica, etc. Ler, escrever, desenhar, pintar, dançar são experiências mergulhadas no movimento de comunicação e construção de sentidos possíveis sobre o mundo. Acima de tudo, o trabalho focaliza a constituição da criança, sua auto-estima, autonomia, expressividade, auto-confiança. Os projetos e objetos sobre os quais nos debruçamos como pesquisadores do mundo cultural mais amplo favorecem essa constituição, mola mestra de nosso trabalho.

Princípios como a escuta e o protagonismo das crianças; o reconhecimento de seus desejos, palavras e afetos; a valorização do imprevisto (diferente do improviso); a perspectiva da criança como produtora de cultura; o fortalecimento das relações sociais entrelaçam-se no trabalho da Casa Monte Alegre e nos passos vividos no Projeto com as poesias.

A seguir, iremos expor os nortes teóricos que nos fizeram apostar na poesia como um caminho de abertura de possibilidades junto às crianças, à medida que as características expressivas e estéticas deste gênero literário, aproximam-se do modo de expressão das crianças. A possibilidade de concretizar afetos e pensamentos, a exploração da palavra em suas múltiplas formas e sentidos, a intensidade da dimensão do sentido em cada palavra, a reverberação das poesias no corpo, no desenho e no ritmo das crianças são aspectos fundamentais a serem destacados. Por último, relataremos processos vividos, ressaltando o impacto da leitura e produção de poesias no cotidiano das crianças do grupo Gelo.

A linguagem e a criança: gesto, palavra, desenho, leitura, escrita como formas de expressão

De acordo com Vygotsky (1991), nas crianças pequenas, a fala apresenta-se paralela à ação. As crianças falam enquanto fazem, nomeiam objetos enquanto os exploram, acompanhando de palavras os movimentos. É no mergulho nas interações, participando de conversas e contextos povoados pelas palavras em seus usos sociais diversos, que vai acontecendo e fortalecendo-se a diferenciação entre fala para si (organizadora da experiência, geradora do pensamento) e fala para o outro (comunicativa).

Ao mesmo tempo, o mundo dos significados fixados na cultura vai sendo internalizado e cada palavra cola-se a um conjunto específico de eventos ou objetos. Uma única palavra quer dizer muito para a criança pequena. Uma palavra condensa um mundo de possibilidades. Pouco a pouco, no mergulho nas interações sociais, o acervo de palavras diversifica-se e as possibilidades de significar o mundo especializam-se, multiplicando-se. Novos sentidos vão sendo descobertos, novas possibilidades de expressão, à medida que espaços vão sendo abertos para o confronto com o outro, e consequentemente, a criação, a contraposição entre o antigo e o novo, a realidade e a fantasia.

O significado une pensamento e palavra no desenvolvimento da criança, materializando a comunicação e as possibilidades de interação social. A palavra é concretização do pensamento que nela ganha vida e expressão. Nesta corrente viva da linguagem, a fala e a troca social possibilitam a expansão da criança, ou seja, ir além dos significados convencionais, criando novos sentidos para objetos e eventos cotidianos.

" a criança está sempre pronta para criar outros sentidos para os objetos que possuem significados fixados pela cultura dominante, ultrapassando o sentido único que as coisas novas tendem a adquirir (...) sonhando a vida na ação e na linguagem, descontextualizando espaço e tempo, subvertendo a ordem e desarticulando conexões, a infância problematiza as relações do homem com a cultura e com a sociedade" (Jobim e Souza, 1994, p.160)

Na verdade, é na brincadeira e na linguagem que podemos compreender a apropriação e re-criação do mundo por parte das crianças. De acordo com Vygotsky, no brincar: "sob o impacto do novo significado adquirido, modifica-se a estrutura corriqueira do objeto"(p.124).

É importante ressaltar que a brincadeira transforma-se ao longo do desenvolvimento. No início, os significados dos objetos são subordinados às ações e às suas funções estabelecidas (por exemplo, uma vassoura serve para varrer). Com o desenvolvimento, os significados é que irão gerar ações na relação com os objetos (uma vassoura pode fazer as vezes de um cavalo, ou um trem onde sentam várias crianças, etc). Assim, no brincar, regidas pelo movimento de significar e compreender o mundo, as crianças criam novas relações entre as coisas, subvertem os usos e funções dos objetos cristalizados na cultura dominante. Esse movimento de descontextualização do objeto e reinvenção de papéis sociais, que se opera na brincadeira, provoca a possibilidade das crianças experimentarem-se em lugares variados, diferentes das situações reais e cotidianas que pertencem. Isto favorece o desenvolvimento, entendido como ampliação de perspectivas e diversificação de experiências.

"o menino que cavalga sobre um pau e imagina que monta um cavalo, a menina que joga com sua boneca e se crê mãe, as crianças que brincam de ladrões, soldados, marinheiros, todas elas mostram em suas brincadeiras exemplos da mais autêntica e verdadeira criação. Verdade é que seus jogos reproduzem muito do que vêem (...) mas tais elementos de experiência alheia nunca são levados pela criança nas suas brincadeiras como eram na realidade. Não se limitam em suas brincadeiras a recordar situações vividas, mas sim as elaboram criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas novas realidades de acordo com suas afeições e necessidades" (Vygotsky, 1987, p.12)

Portanto, na compreensão da produção de linguagem pela criança é fundamental levar em conta a centralidade da produção de significado e o implicamento das diferentes formas de expressão. A significação que se opera na relação entre pensamento e fala precisa do corpo para fortalecer-se. Assim também as primeiras grafias, na ordem do desenho e, posteriormente, da escrita, inscrevem expressões que nascem no movimento, no brincar, no deslocamento do corpo no espaço.

É fundamental ressaltar que palavra e gesto conjugam-se na criança pequena, especialmente na produção do novo, da singularidade. Muitas vezes, o movimento nasce junto com a idéia, e de uma expressão do corpo irrompe um personagem, uma história, um enredo . Por outro lado, a fala no grupo social gera pensamento, ampliando as formas de interação e as possibilidades de organizar as experiências partilhadas. Ao mesmo tempo, o nascimento das grafias conjuga-se aos gestos da criança pequena, como primeiros registros dos movimentos. Juntamente com Vygotsky, entendemos que movimento, palavra, desenho e escrita são possibilidades de compreender o mundo e expressar-se na relação com ele. Daí a íntima relação que têm no desenvolvimento da criança.

"o brinquedo de faz-de-conta, o desenho e a escrita devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado de desenvolvimento da linguagem escrita" (Vygotsky, 1989,p.129)

De acordo com o autor, analisando as particularidades da escrita, pode-se afirmar que ela desloca-se do desenho de coisas para o desenho de palavras, ou seja, de um simbolismo de primeira ordem (a denotação de objetos) para um simbolismo de segunda ordem (a denotação da fala). No entanto, a experiência dessa transição não pode ser vista como algo linear e mais evoluído ou bem formado no futuro, ou seja, tendo como campo de performance ideal da criança a representação do som, desligada do objeto. Percebemos que ao desenhar, a criança fala e é como se estivesse organizando no papel o movimento, o fluxo do corpo e do pensamento. Por outro lado, as crianças que usam a escrita como representação da fala, "precisam" do desenho, complementando o que querem dizer com a representação do objeto. A relação íntima entre movimento, objeto e desenho, ou ainda, objeto, desenho e escrita compõe a linguagem da criança.

Ainda, no diálogo com Vygotsky (1989), podemos afirmar que assim como a fala e o brinquedo, a linguagem escrita e a leitura devem ser necessárias à criança, operando no campo da significação do mundo. Portanto, "é necessário que as letras se tornem elementos da vida das crianças, da mesma maneira como, por exemplo, a fala (...) o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita de letras"(p.134).

Benjamin (1993) abre outra perspectiva sobre a linguagem que contribui no entendimento da priorização de sua dimensão expressiva. Nesta perspectiva, a linguagem promove a emergência da capacidade mimética humana, entendida não como ilusão ou engano, para além da cópia ou representação fidedigna do objeto, mas como possibilidade de produzir semelhanças entre o humano e os objetos ou a natureza.. A "aprendizagem mimética" se dá no prazer em desnudar a relação entre objeto e imagem. Ou seja, há prazer, crescimento e deslocamento no movimento de dar sentido que é gerado na brincadeira de transformar-se nas coisas e misturar-se com elas.

" a mímeses designa um processo de aprendizagem específico do homem (e, em particular, das crianças). A aquisição de conhecimento é favorecida pelos aspectos prazerosos do processo(...) o impulso mimético está na raiz do lúdico e do artístico" (Gagnebin, 1987,p.86)

A autonomia da linguagem revela-se na possibilidade de invenção de metáforas, por exemplo, permitindo a descoberta de semelhanças insuspeitas. Assim, a linguagem não só reconhece ou representa o mundo, mas produz semelhanças e possibilita que "aderido" à coisa, o sujeito possa transformar-se no tatear, cheirar, sentir a partir desse lugar. Para Benjamin (apud Gagnebin, 1987), a semelhança independe de uma comparação entre elementos iguais. A atividade mimética sempre é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma cópia.

Na experiência do menino- Benjamin, uma forma de concretizar essas idéias:

"a criança que se posta atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, num espectro. A mesa sob a qual se acocora é transformada no ídolo de madeira do templo, cujas colunas são as quatro pernas talhadas. E, atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se a tivesse vestido como um disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente" (Benjamin, 1994, p.91)

De acordo com Benjamin (1993), a capacidade somente humana de produzir semelhanças foi sendo transformada com a evolução do homem e as mudanças nas formas de comunicação. Assim, a leitura/escrita através das vísceras, dos astros, dos acasos, onde se presentificavam produções de semelhanças no homem primitivo foram sendo substituídas pela linguagem e pela escrita, produzindo um arquivo de semelhanças extra-sensíveis, onde "o contexto significativo contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do relâmpago". (p.132)

Na verdade, a brincadeira da criança, o desenho, a expressão plástica e a escrita são formas de atualização da produção de semelhanças, à medida que destas elaborações brotam possibilidades diversas de significar a realidade vivida.

" pelo movimento de seu corpo inteiro, a criança brinca, representa o nome e assim aprende a falar. O movimento da língua só é um caso particular dessa brincadeira, desse jogo. Para as crianças, as palavras não são signos fixados pela convenção, mas primeiramente, sons a serem explorados. Benjamin diz que a criança entra nas palavras como entra em cavernas entre as quais ela cria caminhos estranhos." (Gagnebin, 1987, p.99)

Dessa forma, entendemos a linguagem como busca de expressão de si e do mundo, busca do semelhante, da compreensão do mundo sem prendê-lo ou oprimi-lo. No caso da escrita e da leitura, para além de ensinar as letras ou fortalecer a dimensão de decodificação de símbolos gráficos, é preciso produzir práticas que possibilitem às crianças mergulharem na dimensão mimética da linguagem, capacidade de produzirem e encontrarem semelhanças entre objetos e representações/apresentações deles, na fala, no desenho, na escrita. Quando as crianças se apropriam da escrita como representação dos sons da fala, o desenho e o corpo continuam como recursos de expressão paralelos e complementares, fundamentais.

Nesta perspectiva, é fundamental o encontro das crianças com textos que as afetem, que provoquem curiosidade, desejo de exploração, enredamento. Ao mesmo tempo, é importante o espaço de expansão e expressão de cada uma, de diferentes formas. Este deve ser um compromisso da Educação Infantil nas experiências de leitura e escrita que propicia .

Poesia como campo de produção expressiva: ampliação das experiências infantis

Podemos afirmar que a linguagem poética guarda semelhança em relação à linguagem da criança pois ambas trazem para o primeiro plano o aspecto material da linguagem, ou seja, suas possibilidades sonoras e imagéticas a serem exploradas.

Por isso, trazer a linguagem poética para o cotidiano da criança significa potencializar o modo de produção inventivo, a capacidade expressiva da linguagem, permitindo o re-encontro da palavra com o movimento, do som com a imagem, muitas vezes enfraquecidos quando tomamos a linguagem puramente como representação, ou a escrita como marca do real, decodificação de som, de modo instrumental.

O poeta infantil José Paulo Paes (1996), colabora na elaboração dessa compreensão, quando afirma que a poesia promove uma intensificação do sentido das palavras, possibilitando:

"mostrar a perene novidade da vida e do mundo, atiçar o poder de imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir mais profundamente o significado dos seres e das coisas, estabelecer entre essas correspondências e parentescos inusitados que apontem para uma misteriosa unidade cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido; o sonho e a realidade como partes igualmente importantes de nossa experiência de vida" (Paes, 1996, p.27)

Percebemos uma grande identidade entre nossa compreensão do brincar, falar, desenhar e escrever da criança com o trabalho do poeta, à medida que ambos comprometem-se acima de tudo com o plano do sentido, a relação entre palavra e imagens, palavra e movimento.

Mais do que a rima, a poesia destaca-se pela repetição de sons semelhantes em palavras próximas, pelo ritmo dos versos, comparações e oposições de sentido, ou seja, recursos que dão vivacidade, sugestividade e poder de sedução à linguagem. Mais do que aproximar-se do cotidiano da criança, promovendo relações com a experiência vivida (o que faz a prosa/narrativa), a poesia tende a chamar a atenção da criança para as surpresas que podem estar escondidas na língua.

Trata-se de descobrir novas possibilidades para palavras já conhecidas, explorar caminhos inusitados entre as cavernas-palavras, tal como sugeria Benjamin. Na poesia, é possível dizer algo ao contrário do que é na realidade, criar efeitos novos para elementos já conhecidos, realizar a produção do "novo" como re-criação do "velho", tal como propõe Vygotsky.

Desta forma, podemos perceber a conexão estreita entre as poesias e a dança, à medida que a leitura de algumas sugere movimentos, e ritmos. Ou, a conexão com produção plástica, à medida que alguns objetos e pinturas sugerem poesias e estas mobilizam produção de imagens.

Enfim,

"quando a criança se apropria da linguagem, revelando seu potencial expressivo e criativo, ela rompe com as formas fossilizadas e cristalizadas de seu uso cotidiano, iniciando um diálogo mais profundo entre os limites do conhecimento e da verdade na compreensão do real" (Jobim e Souza, 1994, p.159)

O diálogo da criança com a poesia possibilita essa aventura estética e criativa, pois provoca uma aproximação do belo e das emoções que ele suscita, à medida que as coisas e acontecimentos comuns aparecem de maneira nova e palavras também comuns associam-se de modo imprevisto para gerar efeitos de surpresa, de beleza e de humor.

No intuito de circunscrever uma possível compreensão da poesia, Morin (2002) surge como interlocutor importante, quando afirma a existência de pelo menos duas linguagens em qualquer cultura: uma racional, prática, técnica e outra, simbólica, mítica, mágica. A primeira constrói definições, precisão, apoiando-se sobre a lógica e a objetivação. A segunda, é caracterizada pela metáfora, analogia, conotação, como aberturas às possíveis significações que circundam cada palavra, cada enunciado, revelando a subjetividade. De acordo com o autor, o segundo estado pode ser denominado, estado poético: "o estado poético pode ser produzido pela dança, pelo canto, (...) e, evidentemente, pelo poema" (p. 36).

É fundamental organizar a experiência da criança nesses dois planos, no sentido de que haja circulação e diálogo entre eles. Nesta perspectiva, trazer a poesia para o primeiro plano no cotidiano implica em valorizar a dimensão subjetiva, expressiva e metafórica da linguagem.

A experiência com as poesias na Casa Monte Alegre

Para mudá-la [a sociedade] são necessários homens criativos que saibam usar sua imaginação... desenvolvam .... a criatividade de todos para mudar o mundo.” (Gianni Rodari, 1920)

Rodari, nesta citação, faz-nos lembrar que a criatividade é algo inerente aos homens e está sempre presente no desenvolvimento humano e social. Homem e mundo são infinitamente grandes, complexos. Como desbravá-los?! Os mundos que estão próximos a nós, aqueles que a nossa imaginação e ação habilitam-se a criar, estes sim, possuem tamanhos e formas que podemos habitar. Estão ao alcance de nossas mãos, sonhos, nossa existência.

No início de 2003, após as folias carnavalescas, investigamos que tipo de texto se aproximava mais das necessidades do Grupo Gelo.

Percebíamos que o movimento do grupo apontava para padronizações. Crianças de quatro a seis anos descobrindo-se meninos e meninas. Pareciam necessitar marcar igualdades e diferenças. Nesse sentido, o ser igual, o fazer igual, o estar igual marcava a identidade de cada um e muitas possibilidades de estarem juntos, de serem reconhecidos. Desejavam ter os mesmos brinquedos, contar histórias parecidas, vestir-se de modo semelhante. O fazer sempre igual ganhava presença nos desenhos das crianças, com muitas bonecas compridas, sol, cores, robôs; também nas falas, onde bastava uma criança responder para que todas as demais dessem a mesma resposta. Verificamos a presença do sentimento de pertencimento, chave mestre das e nas relações sociais , sendo experienciado pelas crianças.

O sentimento de pertencimento funciona como um mecanismo utilizado por pessoas e instituições (máquina social) para referenciarem-se socialmente. Pertencer sugere a possibilidade de ser nomeado – fazer parte. É um movimento presente no processo do desenvolvimento humano e social. Porém, fazer da identificação a única forma para estar no grupo, deslocando-a para uma repetição contínua, favorecia um empobrecer das potencialidades de cada um.

"a questão fundamental é como evitar que as crianças se prendam às semióticas dominantes a ponto de perder, muito cedo, toda e qualquer liberdade de expressão." (Jobim e Souza, 1994, p.22)

O desafio, neste momento, era poder viver as igualdades abrindo espaços para que as crianças pudessem se encontrar nas diferentes possibilidades de expressão de cada uma, visto que vivemos numa sociedade que facilita o processo de massificação e identificação, à medida que “está implicada com o ideário de uma igualdade, empobrecida nas próprias possibilidades de SER e encantada pela riqueza do TER.” (VIEIRA, 2001, p.30).

Compartilhamos com Deleuze e Guatarri (apud Jobim e Souza, 2000) quando apontam a existência de processos heterogêneos no seio do assujeitamento da subjetividade: processos criativos que produzem desvio, diferença na mesquinharia do “sempre igual”.

A partir da necessidade de instigar o grupo a buscar movimentos de diferenciação, abrindo espaço para que a singularidade de cada um fosse fomentada, pensamos na poesia como geradora de possibilidades. Por que a poesia? Pela multiplicidade de imagens que evoca, pelo seu tangenciamento com o universo da sensibilidade, da emoção, tão particulares a cada um, e tão subjetivos! Seria com certeza um convite a que a diferença entrasse em nosso cotidiano.

A poesia é um texto por si, sem explicação. Atua na nossa sensação e emoção. Ela nos leva para outros mundos novos e desconhecidos, encantando-nos. Traz para o primeiro plano a metáfora, a subjetividade, a criação.

Assim, esse gênero parecia garantir, pela sua forma, sonoridade, imagens a possibilidade de um encontro único, com cada corpo, cada criança. Um encontro com os desenhos, com as palavras, com os sons produzidos e sentidos por cada um. Ao ouvirmos uma poesia, compartilhamos risos, sustos, contentamento, movimento, palavras, sonhos, expressões singulares de nossa história de vida.

Desta forma, a diferença ia sendo encontrada na emoção, nos afetos que nos marcavam:

Eu gosto da do cavalo!

Eu acho que é Manuel Bandeira. Eu adoro ele!

Sorrisos. Olhares ao longe. Corpos bailando, trotando, as imagens poéticas convidavam ao movimento e à expressão plástica.

Apostando na diferença, na criatividade e nas paixões evocadas pelas poesias, fomos ao encontro de Cecília Meireles, Carlos Drumond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinício de Moraes, Henriqueta Lisboa, Vicente de Carvalho, e muitos outros.

Com a Cecília “descobrimos” bailarinas e bailarinos. A poesia “A Bailarina” conquistava os olhares, ouvidos, corpos desejantes de movimento e expressão.

Já conhecida por todos, esta poesia permitiu que as meninas viajassem pelo território das bailarinas cada vez que era recitada. Elas iam para o centro da sala, ou onde houvesse espaço e....

“Esta menina
Tão pequenina
Quer ser bailarina
Não conhece nem dó, nem ré,
Mas sabe ficar na ponta do pé...”

Um momento mágico! Meninas entregues aos encantos e leveza de serem bailarinas. Meninos envolvidos pela sutileza dos movimentos das meninas – bailarinas.

Um dia, uma menina que acabara de ser bailarina comenta:

Lembra? Minha mãe veio aqui na escola de bailarina!?

É verdade. Isso aconteceu há uns dois anos atrás, quando sua mãe tinha presenteado o grupo com uma apresentação de bailarina. Deste encontro tínhamos as nossas lembranças, emoções que ficaram, fotos e um CD ( gravação de uma música instrumental editada especialmente para a apresentação).

Colocamos a música ao fundo baixinho e recitamos mais uma vez a poesia de “Cecília”. Esse encontro da poesia com a música levou todas as meninas ao centro. E como num desejo latente.... surgiram dançantes bailarinas. Os meninos não conseguiram impedir seus corpos pulsantes (cheios de regras e saberes masculinizados) de entregarem-se ao encontro.

Música, poesia. Adultos e crianças experimentavam suas sensações e criavam na liberdade e singularidade dos corpos, expressões únicas, inigualáveis, bailando pela sala afora.

Trazer a mãe bailarina que esteve na CMA para o presente, junto com a bailarina da Cecília Meirelles era levar em conta as histórias que tecemos, que nos constituem e potencializar as relações que estabelecemos como geradoras de saberes.

Uma poesia tão querida e experimentada precisou ganhar um novo corpo, um corpo coletivo. Assim, num movimento de registrarmos algo significativo para o grupo, o educador escreveu-a em conjunto com as crianças. Desse modo, as crianças estavam vivendo uma das funções vitais da escrita: registrar e guardar nossas lembranças. Nesse sentido, acreditamos que as funções da escrita não devem ser didatizadas, mas sim, vivenciadas em situações reais de uso, que possam favorecer a que a criança compreenda seu sentido.

Esta escrita coletiva contou com a participação do grupo na reflexão sobre as letras necessárias para escrever a poesia. Assim, todos juntos num mesão, deram início à discussão:

- Qual é o título? (educador)
- A bailarina. (crianças)

A escrita coletiva abrange os diferentes saberes das crianças sobre a mesma. Neste momento, estávamos mais atentas ao reconhecimento das letras e das relações entre sons e letras. Por isso, as perguntas ficavam em torno de: com qual letra começa, termina? Já escrevemos essa palavra, onde ela está? No decorrer do texto algumas palavras, como “bailarina, pé, menina, sorrir”... foram sendo escolhidas pelas crianças para que fizessem desenhos relativos a elas.

Cecília Meireles encanta as crianças com muitas poesias. Uma outra que sobressaiu-se no grupo foi, “Ou isto ou Aquilo”. Ao lermos a poesia, partimos para a experiência de criar o nosso próprio Isto ou Aquilo. Esta poesia nos fazia sonhar, viajar pelos caminhos da imaginação num universo de possibilidades (ou se tem chuva, ou se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva....).

A primeira proposta era brincar com as crianças com esta idéia do Ou isso ou Aquilo. Muitas composições foram surgindo e observamos que, num primeiro momento o "aquilo" surgia como a negação do que fora dito antes (ou como carne ou não como carne, ou vou no parquinho ou não vou no parquinho...). Relemos a poesia outras vezes e cada vez que fazíamos esta releitura, abria-se um espaço para brincarmos de ou isto ou aquilo, que acabou se tornando uma brincadeira no cotidiano das crianças (ou vamos brincar na casinha ou vamos brincar no terraço, ou vamos desenhar ou vamos pintar...).

Propomos então a criação da nossa própria poesia. Tendo o professor como intermediador, fomos pensando em diferentes possibilidades: -Se você não vai ao parquinho, onde você pode ir? Se você não come carne, o que você pode comer? Assim, foi-se construindo a compreensão de uma nova lógica, de uma nova estrutura lingüística que permitia brincar com a idéia da contradição, da possibilidade. Neste momento o professor assume o papel de escriba do grupo, registrando a idéia que cada criança imaginou. Neste instante a poesia ganha um corpo, uma forma.

Ou se come carne, ou se come peixe
Ou vai na praia, ou vai na pracinha
Ou anda de carro, ou anda a pé
...

A articulação da criação poética com outras formas de produção se fazia presente em cada construção do novo. Nesta perspectiva, durante o processo de criação do nosso Ou Isto ou Aquilo, as idéias foram ganhando formas com desenhos que vinham não só dar vida à poesia, mas serviam também como suporte para compreensão desta nova lógica que se estabelecia.

Nos encontramos também com Carlos Drummond de Andrade, que fez todo mundo “tropeçar, cair, pular”, com “Uma pedra no meio do caminho”.

O brincar das palavras desta poesia levou-nos para muitos caminhos. Com ela e seus jogos de palavras, experimentamos o efeito das palavras sobre o imaginário de cada um. Assim, os registros individuais nos cadernos tiveram muita inventividade inspirados na pedra e no caminho.

- Meu caminho é de casas.
- Um caminho de pedras.

Uma pedra preciosa surge no meio de um dos caminhos, cujo nome recebido foi o mesmo de uma das mães das crianças:

- É a Rubi!
- Então Rubi, sua mãe, é pedra preciosa.

Um rock-animal, brinquedo-brinde de uma revista infantil, surge sobre o caderno, ao sair do bolso de uma criança. Este brinquedo tem forma de uma pedra que ao ser montada transforma-se num animal. Brinquedo que caiu no “modismo consumista atual”, sendo adquirida semanalmente por todos os meninos e algumas meninas do grupo.

A possibilidade do encontro de um brinquedo marcado pelas estratégias do mercado de consumo (rock animal) com o universo literário da poesia dá a este objeto um novo lugar. Muitas brincadeiras surgem relacionando esta pedra, do rock-animal, com a pedra do poema do Drumond. Momento de risadas, comentários e deslocamento do objeto. Ele desvia do instituído até então, descontextualizando-se e abrindo um caminho de criação do novo, de reconstrução através de um encontro entre conhecimento, saberes e outras possibilidades.

“E agora José?” Com Carlos Drummond e muitos outros, prosseguimos, percorrendo diversos autores e íamos descobrindo seus nomes, suas poesias, desenhos.

- Vicente de Carvalho! É igual ao meu nome.
- Em homenagem a ele, há um bairro na nossa cidade chamado Vicente de Carvalho.
- Cecília é igual a Cecília. Nome da nossa estagiária.

A presença da leitura de diferentes autores, nomeando-os em nosso cotidiano, permitiu uma familiarização com suas formas e estilos variados.

Com significativos conhecimentos sobre as poesias, os desenhos por elas inspirados foram surgindo com irreverências, diferenças e muita singularidade.

No meio das brincadeiras, as dramatizações das poesias. Com muita maquiagem, panos que se transformavam em saias, enfeites e muito mais que a imaginação pode alcançar.

Estávamos alimentados: dançamos, escutamos, desenhamos, imaginamos, registramos, desbravamos o mundo das poesias. Um novo desafio surgia: criar nossas próprias poesias.

Ser poeta. Poder experimentar as palavras com suas sonoridades, combinações, distorções. À princípio, as construções coletivas aconteceram no entremear de idéias, rimas, risos, sonhos.

Criar coletivamente é garantir que cada criança seja autora de uma única obra, de um momento da nossa história. Foi assim que, inspirados pela sonoridade das poesias com rimas, especialmente a do Cavalo, de Manoel Bandeira, construímos coletivamente a poesia SEREIA.

Depois, mergulhados ainda na onda da criação coletiva, registramos um pouco da nossa intimidade com a poesia dos Nomes Malucos. Uma delícia! Nesta proposta o objetivo central era criar rimas a partir dos nomes das crianças do grupo. O diferencial, nesta produção, foi a relação das crianças com o outro. A escolha das palavras foi feita não apenas tendo em vista a rima, mas, também, buscando palavras cujo sentido falasse do outro, ressaltando algum aspecto peculiar de sua presença/personalidade/história. Para rimar com “Marcos” foram buscar os “barcos” que, como ele, vivem viajando. A palavra foi ganhando assim a dupla função de dizer do outro e ao mesmo tempo, brincar com os sons semelhantes. Não basta rimar, é preciso significar! Saímos da reflexão sobre a forma da língua para alcançar suas possibilidades de expressão, comunicação e mobilização afetiva.

Fizemos também a experiência de propor a produção de poesias a partir das pinturas feitas pelas crianças. Experimentando as cores, as tintas, um papel “branquinho”, nasceram pinturas evocadoras de imagens e sonoridades.

“A chuva colorida", "Branquinho", "O monstro", "O colorido", "O fogo”, produções que emergem dos mundos suscitados pelo material plástico. Transformar pinturas em poesias, com nomes, rimas, contos, imagens, foi desafio vivido com intensidade.

As poesias criadas a partir das pinturas infantis foram a princípio, escritas pelo o adulto, para garantir a produção textual das crianças. O que possibilitou uma atenção única, por parte das crianças, para as idéias, sentimentos, sem que fosse necessário pensar nas letras e suas combinações, necessárias para a escrita. Posteriormente, resolvemos fazer um livro com todas as poesias e desenhos das crianças. Para a realização deste livro, eles reescreveram individualmente seus textos, com o apoio do adulto e com estratégias apropriadas para os conhecimentos que cada um tinha sobre a escrita.

Por exemplo, as crianças que já escrevia alfabeticamente puderam reescrever seus textos a partir da leitura do adulto; para aqueles que estavam descobrindo os espaços entre as palavras, os textos foram escritos de modo a refletir sobre a quantidade de palavras na frase em questão.

Poesias de super-heróis, super-homem, de gente, vento, de saberes vão surgindo no nosso cotidiano, dando formas a muitos desenhos e textos.

A riqueza em produzir poesias diante de brinquedos, pinturas, desejos, imaginação, sons garantiu uma experiência diversificada em sentidos, relações, conhecimentos e muita criatividade. Uma possibilidade de saborearmos novidades nos encontros e desencontros que vivemos, relacionando-as com os nossos próprios mundos.
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atenção: a bibliografia do trabalho não foi incluída propositalmente.
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Fontes:
Associação de Leitura do Brasil = http://www.alb.com.br/portal.html
Imagem = http://www.alobebe.com.br

Joaquim Cardozo (O Relógio)


Quem é que sobe as escadas
Batendo o liso degrau?
Marcando o surdo compasso
Com uma perna de pau?

Quem é que tosse baixinho
Na penumbra da ante-sala?
Por que resmunga sozinho?
Por que não cospe e não fala?

Por que dois vermes sombrios
Passando na face morta?
E o mesmo sopro contínuo
Na frincha daquela porta?

Da velha parede triste
No musgo roçar macio:
São horas leves e tenras
Nascendo do solo frio.

Um punhal feriu o espaço...
E o alvo sangue a gotejar;
Deste sangue os meus cabelos
Pela vida hão de sangrar.

Todos os grilos calaram
Só o silêncio assobia;
Parece que o tempo passa
Com sua capa vazia.

O tempo enfim cristaliza
Em dimensão natural;
Mas há demônios que arpejam
Na aresta do seu cristal.
No tempo pulverizado
Há cinza também da morte:
Estão serrando no escuro
As tábuas da minha sorte.

Fontes:
http://www.joaquimcardozo.com

Antonio Cândido (Letras e Idéias no Período Colonial) Parte 4, final


A geração que fez os estudos em Coimbra, depois da Reforma Pombalina de 1759, encontrou oportunidades novas de formação científica. Os brasileiros as agarraram com notável sofreguidão, sendo proporcionalmente grande o número dos que seguiram cursos de matemática, ciências naturais e medicina. Além disso, começam a ir segui-los em outras universidades européias, como Edimburgo e Montpellier, alargando os horizontes mentais. Não nos esqueçamos que eram médicos formados nesta Jacinto José da Silva, um dos principais acusados no processo da Sociedade Literária, e Manuel de Arruda Câmara, mentor dos liberais pernambucanos, enquanto um dos ideadores da Inconfidência Mineira, José Álvares Maciel, estudara ciências naturais e química, em Coimbra e na Inglaterra.

Ocorre então um fato ainda não bem estudado — o da quantidade de jovens bem dotados e de boa formação que, não obstante, se perdem para a vida científica, ou não tiram dela os frutos possíveis. É que a multiplicidade das tarefas que então se apresentam os solicita para outros rumos, enquanto a pobreza do meio condena a sua atividade ao empirismo, ou ao abafamento pela falta de repercussão. Isto, não só para os que trabalham na pátria, mas ainda para os que servem na metrópole. O motivo se prende em parte à própria estrutura social, pois a inexistência de estratos intermédios entre o homem culto e o homem comum, bem como a falta de preparação dos estratos superiores, os forçava às posições de liderança administrativa ou profissional. Eram por assim dizer aspirados pelos postos de responsabilidade, quaisquer que eles fossem — vendo-se o mesmo homem ser oficial, professor, escritor e político; ou desembargador, químico e administrador. Outros, que logravam ficar nos limites da sua especialidade, viam os seus trabalhos votados ao esquecimento, inéditos por desinteresse do meio ou dispersos pela desídia e desonestidade.

De qualquer modo, representam um triunfo relativo das Luzes, e muitos marcaram o seu tempo. Poucas vezes o Brasil terá produzido, no espaço dum quarto de século, numa população livre que talvez não atingisse dois milhões, na absoluta maioria analfabetos, homens da habilitação científica de Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e Almeida, José Bonifácio de Andrada e Silva, Francisco de Melo Franco, José Vieira Couto, Manuel Ferreira da Câmara de Bittencourt e Sá, seu irmão José de Sá Bittencourt Câmara, José Mariano da Conceição Veloso, Leandro do Sacramento — para citar os de maior porte, deixando fora uma excelente segunda linha de estudiosos e divulgadores, que se contam por dezenas.

Todos, ou quase todos estes homens tinham, como era próprio às concepções do tempo, uma noção muito civil da atividade científica, desejando que ela revertesse imediatamente em benefício da sociedade, como proclamavam tanto um Rodrigues Ferreira no último quartel do século XVIII, quanto o matemático Manuel Ferreira de Araújo Guimarães em 1813, na apresentação da sua revista O Patriota. A eles devemos os primeiros reconhecimentos sistemáticos do território, em larga escala, seja do ponto de vista geodésico (Lacerda e Almeida), seja zoológico e etnográfico (Rodrigues Ferreira), seja botânico (Veloso, Leandro), bem como as primeiras tentativas de exploração e utilização científica das riquezas minerais (Vieira Couto, Câmara). Entre eles se recrutaram alguns dos líderes mais importantes da Independência e do Primeiro Reinado, como o naturalista José Bonifácio, os matemáticos Vilela Barbosa e Ribeiro de Resende, pois muitos deles passaram (consequência natural da filosofia das Luzes, e solicitação de um meio pobre em homens capazes) da ciência à política, da especulação à administração.

Ao seu lado avulta um segundo grupo (a que muitos deles pertencem igualmente), também formado sob o influxo das reformas do grande marquês: são os publicistas, estudiosos da realidade social, doutrinadores dos problemas por ela apresentados, como José da Silva Lisboa (1756-1835), divulgador da economia liberal entre nós, porta-voz dos interesses comerciais da burguesia litorânea; ou Hipólito José da Costa Pereira (1774-1823), o nosso primeiro jornalista, que a partir de 1808 empreendeu no Correio Brasiliense, publicado em Londres, uma esclarecida campanha a favor da modernização da vida brasileira, sugerindo uma série de medidas do maior alcance, como responsabilidade dos governadores, representação provincial, abolição do cativeiro, imigração de artífices e técnicos, fundação da Universidade, transferência da capital para o interior.

Figura de relevo foi a de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1743-1821), que talvez encarne como ninguém as tendências características da nossa Ilustração — ao mesmo tempo religiosa e racional, passadista e progressista, realista e utópica, misturando as influências dos filósofos ao policiamento clerical. A sua obra de educador no famoso Seminário de Olinda é considerada o marco do ensino moderno entre nós, enquanto o Ensaio econômico (1794) entra pelo devaneio e o plano salvador (que tanto nos caracteriza daí por diante), procurando associar o índio ao progresso graças ao aproveitamento das suas aptidões naturais, canalizando-as para a navegação, e esta para o comércio do sal, reputada fonte revolucionadora de riqueza.

Com este bispo ilustre, tocamos num terceiro grupo intelectual que desempenhou papel decisivo nas nossas Luzes e sua aplicação ao plano político: os sacerdotes liberais, diretamente ligados à preparação dos movimentos autonomistas. Núcleo fundamental foi, por exemplo, o que se reuniu em Pernambuco à volta do padre Manuel de Arruda Câmara (1752-1810), provavelmente de caráter maçônico — o chamado Areópago de Itambé — e se prolongou através do proselitismo do padre João Ribeiro Pessoa, seu discípulo, formando OS quadros das rebeliões de 1817 e 1824, a que se ligam outros tonsurados liberais: os padres Roma e Alencar; os frades Miguelinho e Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), este, panfletário e jornalista de extraordinário vigor, teórico do regionalismo pernambucano, fuzilado pelo seu papel na Confederação do Equador.

Os oradores sacros se desenvolveram então em grande relevo, graças à paixão de D. João VI pelos sermões; e muitos deles, além de contribuírem para formar o gosto literário, usaram o púlpito como tribuna de propaganda liberal, sobretudo na preparação final da Independência e no Primeiro Reinado, sendo muitos deles maçons praticantes, como Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), companheiro de Gonçalves Ledo no jornal Revérbero Constitucional. Outros, como os frades Sampaio e Monte Alverne, chegaram a exercer acerbamente o direito de crítica em relação às tendências autoritárias do primeiro imperador. Assim, pela mistura de devoção e liberalismo, o clero brasileiro do primeiro quartel do século XIX — classe culta por excelência — encarnou construtivamente alguns aspectos peculiares da nossa Época das Luzes, ardente e contraditória.

O quarto grupo nos traz de volta aos escritores propriamente ditos, os literatos, que então eram quase exclusivamente poetas. Entre 1750 e 1800 nascem umas duas gerações, unificadas em grande parte por caracteres comuns e, no conjunto, nitidamente inferiores às precedentes. Árcades, eles ainda o são; mas empedernidos, usando fórmulas que muitos deles começam a pôr em dúvida. Como recebem algumas influências diversas, ampliam, por outro lado, as preocupações, ou modificam o rumo com que elas antes se manifestavam. É o caso de certo naturismo didático ou meditativo, que aprendem no inglês Thomson, nos franceses Saint-Lambert e Delille, e ocorre nalguns versos de José Bonifácio (1765-1837) e Francisco Vilela Barbosa (1769-1846). E se este não sai, poeticamente falando, do âmbito setecentista, o primeira chega a interessar-se por Walter Scott e Byron, enquanto sua boa formação de helenista o conduz a traduções e imitações, reveladoras de um Neoclassicismo diferente do que, entre os árcades anteriores, decorria da leitura assídua de autores em língua latina.

Se um Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811) é continuador puro e simples dos aspectos neoquinhentistas da Arcádia, José Elói Ottoni (1764-1851) opta decididamente pelas cadências melodiosas da poética bocagiana, usando o decassílabo sáfico (acentuado na 4a, 8a e 10a sílabas) de um modo bastante próximo ao dos futuros românticos.

Estes costumavam dizer de dois outros poetas — padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814) e frei Francisco de São Carlos (1763-1829) — que haviam sido seus precursores, por se terem aplicado à poesia religiosa em detrimento das sugestões mitológicas. A opinião é superficial, ao menos quanto ao segundo, e se explica pelo desejo de criar uma genealogia literária, pois não apenas os temas religiosos foram largamente versados na tradição portuguesa, como, estética e ideologicamente, o poema Assunção, de São Carlos, é prolongamento do nativismo ornamental de outros poetas nossos (Itaparica, Durão). É aliás uma obra frouxa, sem inspiração, prejudicada pela monotonia fácil dos decassílabos rimados em parelhas. Mas como foi composta no tempo da vinda de D. João VI, manteve muito mais que os anteriores, o senso de integração nacional, abrangendo todo o país na sua louvação ingênua e descosida.

A maior destas figuras literárias é Sousa Caldas, inspirado na intimidade pelas idéias de Rousseau, que o levaram à humilhação dum auto-de-fé penitenciário e à reclusão em convento. Mas o seu liberalismo era acompanhado de fé igualmente viva, que o fez tomar ordens sacras aos trinta anos e destruir quase todas as poesias profanas que compusera. Daí por diante escreveu poemas sagrados, duros, corretos, fastidiosos — e traduziu com mão bem mais inspirada a primeira parte dos Salmos de Davi. Mas permaneceu fiel as idéias, sempre suspeito às autoridades. Por altura de 1812-1813 redigiu uma série de ensaios político-morais sob a forma de cartas, de que infelizmente restam apenas cinco, para amostra do quanto perdemos. Elas manifestam ousadia e penetração, versando a liberdade de pensamento e as relações da Igreja com o Estado, num molde de avançado radicalismo. Já em 1791 escrevera uma admirável carta burlesca, em prosa e verso, alternadamente, sugerindo atitude mais adequada ao homem moderno, inclusive repúdio à imitação servil da antiguidade e à tirania dos clássicos no ensino.

Provavelmente por influência de Sousa Caldas — que admirava e cujo epitáfio redigiu — Elói Ottoni se dedicou a traduzir textos sagrados, publicando os Provérbios (1815) e deixando inédito o Livro de Jó. Note-se a preocupação destes poetas com o Velho Testamento — que seria largamente utilizado no Romantismo — definindo um universo religioso diverso da piedade rotineira que São Carlos representa.
Em 1813, o matemático Araújo Guimarães (1777-1838) fundou no Rio O Patriota, que durou até o ano seguinte e foi a primeira revista de cultura a funcionar regularmente entre nós, estabelecendo inclusive o padrão que regeria as outras pelo século afora: trabalhos de ciência pura e aplicada ao lado de memórias literárias e históricas, traduções, poemas, notícias. Como diretriz, o empenho em difundir a cultura a bem do progresso nacional.

O Patriota publicou versos de Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga. Dentre os colaboradores contemporâneos, sobressaiu, com a inicial B. em oito artigos de ciência aplicada, Domingos Borges de Barros (1779-1855), árcade influenciado pelos franceses, sobretudo Parny e Delille, que encontrou a certa altura uma tonalidade pré-romântica de melancolia e meditação, redimindo a banalidade de uma obra medíocre tanto na parte frívola quanto na patética, esta representada por um poema fúnebre sobre a morte do filho, Os túmulos (1825). Com José da Natividade Saldanha (1795-1830) — tipo curioso de agitador liberal, exilado a partir de 1824, — chegamos ao fim da poesia brasileira anterior ao Romantismo, no que ela tem de aproveitável. É um árcade meticuloso, nas obras líricas e nas patrióticas, mostrando que o civismo incrementava e consolidava a diretriz neoclássica, em virtude do apelo constante aos modelos romanos. Maior agitação interior e claras premonições de Romantismo encontramos nos sermões do referido frei Francisco de Monte Alverne (1784-1857), que sofreu a influência de Chateaubriand e manifestou pela primeira vez, entre nós, aquele sentimento religioso simultaneamente espetacular e langue, típico dos românticos, parecendo menos devoção que ensejo de emoção pessoal. Apesar da pompa convencional e da monotonia nas idéias, muitos dos seus discursos ainda resistem hoje à leitura, permitindo avaliar o fascínio que exerceu sobre os contemporâneos.
* * *
As letras e idéias no Brasil colonial se ordenam, pois, com certa coerência, quando encaradas segundo as grandes diretrizes que as regeram. Em ambas coexistiram a pura pesquisa intelectual e artística, e uma preocupação crescente pela superação do estatuto colonial. Esse pendor, favorecido pela concepção ilustrada da inteligência a partir da segunda metade do século XVIII, permitiu a precipitação rápida da consciência nacional durante a fase joanina, fornecendo bases para o desenvolvimento mental da nação independente.

Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Casa do Poeta de Canoas (Carta aos Sócios)



Carta aos sócios

Canoas, 30/07/2010.

Prezado(a) Senhor(a),

A Casa do Poeta de Canoas, ao longo de seus quase oito anos de trabalho, conquistas e realizações, vem crescendo em importância e prestígio no cenário cultural de nossa cidade e nos mais diversos recantos de âmbito literário. Para firmarmos tal posição é imprescindível que possua regularidade documental e participação efetiva de todos os membros.

Assim, levamos ao conhecimento de Vª. Sª. que a Casa do Poeta de Canoas está procedendo à atualização do cadastro dos associados. Para tanto, solicitamos que os interessados em permanecer no quadro de Associados compareçam às reuniões para inteirar-se do andamento da Entidade, conhecer e opinar sobre questões importantes relacionadas aos assuntos do interesse de todos e participar ativamente dos projetos e das atividades em realização.

Outrossim, enviamos em anexo o formulário de atualização cadastral, (necessário preencher todos os campos com letra legível) anexar cópia de Cédula de Identidade, de CPF e de comprovante de residência no nome do associado (pode ser de correspondência) e uma foto 3x4 atual Assinar no local o proposto. (Caso enviar por e-mail, escanear e enviar a ficha preenchida, com foto e assinatura. Também escanear e enviar comprovante de residência e RG).

Os associados que não devolverem as fichas preenchidas no prazo de 30 dias a contar da data de recebimento, serão considerados automaticamente excluídos, bem como os que, embora devolvam a ficha não regularizem inadimplência de anuidade porventura existente (referente ao exercício de 2009/2010), conforme Direitos e deveres constantes do Estatuto.

Salientamos que as mensalidades pagas até 30 de agosto permanecem com valor de R$ 5,00 (cinco reais), valendo isto também para quitar antecipadamente as mensalidades relativas aos meses subsequentes de 2010; e a partir de 1º de julho a mensalidade passará a ser de R$ 10,00.

Honrados com o seu interesse em permanecer no nosso quadro de associados, firmamo-nos com particular apreço e distinta consideração.

Atenciosamente,

Nelsi Inês Urnau
Secretaria
Maria Santos Rigo
Presidente

A Ficha Cadastral pode ser obtida em http://sites.google.com/site/pavilhaoliterario/Home/Cartaaoss%C3%B3ciosdaCPC.doc?attredirects=0&d=1

Fonte:
Casa do Poeta de Canoas

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Trova 165 - Héron Patrício (SP)

Imagem criada por Silvares

Baú de Trovas


Ando perdido a buscar-te
e busco, em vão, te esquecer…
Tenho temor de alcançar-te,
por medo de te perder!
ALBANO LOPES DE ALMEIDA

Tal como, quando o sol nasce,
somem-se logo as estrelas,
quando surge a tua face,
as outras… quem pode vê-las?
ANTÔNIO SALES

Saudade é coisa que a gente
não explica nem traduz;
faz do passado o presente
e traz sombras, sendo luz.
COLOMBINA

Quem seus segredos revela,
sem pensar, a qualquer um,
é porteira sem tramela,
não tem segredo nenhum.
DURVAL MENDONÇA

Por mais que nos fira e doa,
a saudade um bem nos faz…
É o resto da coisa boa
que o tempo deixou pra trás!
GERALDO GUIMARÃES

Não foste a minha metade,
pois jamais me deste um “sim”…
Mas fizeste que a saudade
fosse a metade de mim.
JOSÉ MARIA M. DE ARAÚJO

Verdes anos são riquezas,
milionária é a mocidade…
A velhice é pobre e vive
das esmolas da saudade!
JOÃO MARTINS DE ALMEIDA

Nesta vida malfadada,
é bem melhor se viver
merecendo sem ter nada
do que ter sem merecer…
JOSUÉ TABIRA DA SILVA

O mar que geme e palpita
no seu tormento profundo
é uma lágrima infinita
que Deus chorou sobre o mundo!
LILINHA FERNANDES

A trova, quando tem alma,
até parece oração:
alivia e traz a calma
às dores do coração…
LINDOURO GOMES

Saudade quase se explica
nesta trova que te dou:
saudade é tudo que fica
daquilo que não ficou.
LUIZ OTÁVIO

Ah se eu pudesse saber
qual a mulher que ele quer…
Que não iria eu fazer
para ser essa mulher?
MAGDALENA LÉA

Ei-lo, de todos os casos,
o mais estranho do mundo:
– como nuns olhos tão rasos
cabe um olhar tão profundo?
PEREIRA DA SILVA

Tudo tão fácil, tão justo,
tão perto o nosso desejo,
e todavia que custo
para a permuta de um beijo!
SERAFIM FRANÇA

Mais trovas na Revista Virtual Mensal Trovia, de Antonio Augusto de Assis, em http://www.academiadeletrasdemaringa.com.br/?page_id=2634

Fonte:
Trovia – Ano 11 – nº. 127 – julho de 2010

Silviah Carvalho (O Poeta)


É aquele que ama um pouco mais,
E nunca ama por amar
E sonha um pouco mais, voa um pouco mais alto
E um pouco mais longe...

Chega onde poucos conseguem chegar
Entra nos labirintos da mente
Conhece o passado e presente
Deduz o futuro com tanta exatidão
Que parece viver um passo a frente

Nele existe um pouco mais de emoção
Um pouco mais de atenção
Um pouco mais de alegria
E um pouco mais de solidão

Um pouco mais de sinceridade
Coisa pouca dentro de muita gente
Um pouco mais da louca igualdade
Que o faz assim, tão diferente

Ele tem um pouco mais de quase tudo
Guardado dentro da mente
De tudo faz um poema, revela tudo que sente

Assim é o poeta
Ama sem ser amado; espera sem ser esperado
E muitas vezes, morre abandonado

Por vezes, só depois da morte
Tem seus poemas lembrados...

Fonte:
Colaboração da Poetisa

Joaquim Cardozo (Os Anjos da Paz)


Aos mortos de Lídice e de Coventry
Aos mortos de Hiroshima e Nagasaki

Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos da noite enorme
– Noite de luto e mortalha. . .

Vestidos de dor, manchados
Da lama de terra e sangue
Que há nos campos de batalha?
Serão os anjos da paz?

Eles vieram da noite
No sopro da tempestade
Trazendo nas vestes negras
Do lado do coração
Uma camélia tão branca
De um branco muito mais branco
Que as asas de uma ave branca
Que as asas de uma ave mansa
Passando na claridade
Num vôo só de esperança
Sem sombra deixar no chão.

Mas eles têm sobre o peito
Têm sobre o peito a couraça
Feita de ferro e marfim. . .
Feita do plasma candente
Que restringe e que amordaça. . .
Feita de fluidos ardentes:
Matéria que cristaliza
Na saliva das serpentes.

Serão os anjos da paz
Estes seres nebulosos
Surgidos na noite enorme?

Porque vieram de longe
Da mais distante paisagem,
Porque solenes chegaram
De além das nuvens, de além
Dos ninhos da ventania,
Não se pense, não se diga
Que trazem de Deus mensagem,
Que são anúncios de aurora,
Que os seus cantos são consolos
São divinos de harmonia.

Porque do rosto arrancaram
A velha e sinistra máscara
De algozes petrificados
E sobre o rosto colaram
A doce e ferida face
De mortos purificados
Não são menos as reservas
De rudes conquistadores
Não são menos as relíquias
Dos injustos, dos impróprios,
Dos de sempre vencedores.

Estes seres nebulosos
Que passam nos ares mortos
Entre o fumo e o sol do incêndio
Como estranhos meteoros
Não são os anjos da paz.

Soldado desconhecido
Cinza de carne e de terra
Duro minério sofrido
Planta do amor e da guerra
Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Agora mostra o teu rosto
Agora limpa os teus olhos
Da seca espuma de sangue
Que toda a face te cobre.

Soldado desconhecido
Escuro soldado pobre
Afasta a nuvem de sono
Com que a morte te humilhou
Desfaz o véu de vertigem
Que o céu das almas nublou
Verás então que estes anjos
Agora os ares rompendo
Em luz de sonho e de amor
São aqueles mesmos fantasmas
As mesmas aves sedentas
Que em longos tempos antigos
Sempre o teu corpo rondaram
Pelo calor do teu sangue
Pelo sal de teu suor.

Soldado desconhecido
Enxuga os vidros do dia
Da névoa azul da distância:
Que se estenda além das cores
Além das ondas impuras
A visão maravilhosa,
Céus mais justos se incorporem
Aos relevos das alturas

Que nos campos se propague
Se renove eternamente
Do teu ser a flor perene,
Nasçam folhas nas ramagens
Em manhãs resplandecentes
Nasçam frutos, madrugadas. . .
E a erva má do desespero
Não ressurja entre as sementes.

Soldado, soldado pobre
Soldado desconhecido
Símbolo dos deserdados
Marca de treva e silêncio
Muda memória encoberta
Força adulta e indefinida
Que a própria dor não consome
Soldado desconhecido
Soldado escuro, soldado
Agora mostra o teu rosto
Agora diz o teu nome.

O soldado:

Embora o corpo repouse
Já livre do meu cansaço
E o nível da luz se estenda
Na ausência do sofrimento,
Uma dor sinto no braço
Profunda como a lembrança,
Dor ainda na perpétua
Cicatriz do movimento.

Pois assim mesmo encerrado
Nestas muralhas de frio,
Daqui, da sombra fechada
Do chão que eu próprio formei,
Eu vejo a chama do dia
Eu vejo a glória do rei,
Vejo a flor, o verde, o gado,
O idílio, a pátria de alguém
Por quem feri e matei.

Aqui no centro isolado
Deste casulo de cinza
Guardo o sopro que me resta,
Ouvindo os surdos gemidos,
As vozes desesperadas,
As palavras proferidas
Pelas bocas soterradas,
Pelos lábios das feridas,
Como a chuva sobre o sono
Dessa eterna madrugada.

Mas a dor de mim reflui,
Dor que exprimo e em que me exalto
Sentindo bater nas lajes,
Como em tambores de asfalto,
A marcha da multidão:
Sentindo as ondas de ferro,
Sentindo as ondas de assalto
Que vêm dos carros de guerra
Até às grades de pedra
Que encerram meu coração.

Um desejo então consagro,
Profiro sobre as memórias;
Desejando que me dessem
Uma terra, um chão mais doce,
Uma terra sem fronteiras,
Sem crateras, sem trincheiras,
Um chão puro e mais feliz
Onde pastassem ovelhas
Ou, bebendo o azul do dia,
Crescessem também roseiras.

Terra fértil, solo ativo,
Chão materno e universal,
Onde o meu corpo voltasse
Ao seu repouso natal;
Onde o meu corpo lavrado,
Perdido em nome e lembrança,
Chegasse enfim à amplitude
Da pureza vegetal.

1947

Fonte:
http://www.joaquimcardozo.com/

Joaquim Cardozo (A Pesca de Lagostim)

Pintura de Imarly Bosetti Martinez,
A noite estava escura, com nuvens pesadas ameaçando chuva, nuvens densas não deixando ver as estrelas, e um vento pequeno soprava; esse ambiente tempestuoso e fusco anunciava a possibilidade de uma boa pesca de lagostim. Por isso resolvemos fazê-la. Estávamos, para isso, preparados na praia; dispostos a partir numa jangada, em demanda de uns recifes de pedras, distantes, no mar àquela hora em maré vazante.

Ótimo! A maré baixa facilitaria descobrir nas pedras as melhores locas desse apreciado crustáceo. Equipados com os utensílios indispensáveis à pescaria – os cestos, as iscas, as forquilhas, os feixes de folhas secas de bananeira que acenderíamos e com eles ofuscaríamos os lagostins –, com tudo isso, ficamos aguardando a vinda da jangada. Éramos quatro: eu e mais três amigos, dois dos quais nunca tinham participado de semelhante proeza.

A maré continuava a descer. Estávamos já impacientes com a espera, um pouco longa; por fim a jangada, com a sua doce pancada, o seu choque uniforme na água levemente intranqüila, chegou bem perto da praia. Entramos n’água e alcançamos aqueles paus flutuantes, que nos levariam aos recifes distantes e, a essa hora, já quase inteiramente descobertos; nos aconchegamos, o melhor que pudemos, no seu dorso, e logo depois o jangadeiro deu sinal de partida.

Atravessamos aquele mar macio, manso, de água parada, contida pelos recifes. Íamos alegres, satisfeitos, esperançosos no bom êxito da nossa atuação como pescadores de lagostim. Era mais uma experiência que realizávamos como pescadores improvisados. De longe ainda avistávamos a praia, e as luzes das casas iam, aos poucos, se envolvendo na bruma que cobria, àquela hora – quase dez horas da noite – o povoado de onde partimos. Por fim, tudo do lado da terra desaparecera. Daquele lado, tudo eram sombras tempestuosas. Navegamos por pouco tempo e chegamos afinal aos recifes. Era um conjunto de pedras eriçadas, surgindo, naquele momento, das águas da maré baixa, e que fica, quase sempre, inteiramente coberto nas marés altas.

Chegamos, derivamos um pouco à procura de um bom lugar para saltarmos sobre as pedras; não foi muito fácil encontrá-lo, no entanto conseguimos desembarcar, e, numa pedra das mais salientes, o jangadeiro amarrou a jangada. Do lado do mar aberto vinham, no sopro de um vento forte, alguns golpes de ressaca.

Saímos depois os cinco, pois o jangadeiro ia conosco – pescador experimentado que era nos ajudaria naquela pesca. Saímos a caminhar sobre os recifes, pisando com precaução para não escorregar nas pedras lisas, úmidas e musgosas. Percorremos, nos afastando do ponto em que desembarcamos, uma grande distância, até que deparamos com um lugar onde, por certo, existiam boas locas de lagostim. Acendemos os feixes de folhas secas de bananeiras; empunhamos o archote, iluminando a região, dirigindo-o para as locas, agora visíveis, dos lagostins, que iam aos poucos saindo dos seus esconderijos, que eram muitos. Atraídos pela luz cegante das tochas, os crustáceos ficavam fascinados e se deixavam facilmente apanhar. Usamos então as forquilhas sobre o dorso de cada um, prendendo-os, um após outro, sem grande dificuldade. Presos nas forquilhas os jogávamos depois dentro dos cestos. Cada um de nós se ocupava de uma loca, fazendo descer a isca na ponta de um pau, como chamariz; fazendo saírem da toca os mais recalcitrantes.

Estávamos tão empenhados naquela distração e tão embevecidos com o sucesso da pescaria que não tínhamos o sentimento de que tudo aquilo devia se passar em poucos momentos, pois era certo que aquelas pedras, dentro de pouco tempo, estariam cobertas totalmente pelas águas. Daqueles recifes, não mais se veria daí a pouco, uma ponta de pedra aflorante. Estávamos dominados realmente por uma verdadeira fascinação, uma espécie de atração que nos provocava aquele exercício de pescar. Era uma obsessão permanente, aquela de querer desvendar e prender os pequenos seres que apareciam à luz dos fachos acesos. Os lagostins se deslumbravam e nós ficávamos enlevados em vê-los evoluir dentro da noite das águas; noite dentro da noite tempestuosa e que se converteria muito em breve no mais escuro e rumoroso aguaceiro.

Pescávamos e nada mais víamos ou pressentíamos, como se toda aquela festa pudesse se prolongar até alta madrugada. Pescamos, de qualquer modo, ainda por algum tempo, e estávamos já com os nossos cestos repletos de crustáceos, mas eram tantos e tão fáceis de apanhar que continuávamos sem o menor receio do surgimento de qualquer imprevisto. De repente, porém, alguém lembrou que a maré tinha virado. Precisávamos bater em retirada quanto antes; precisávamos voltar com urgência ao ponto onde desembarcamos da jangada; foi uma surpresa, e como que um despertar. Com toda a pressa, começamos a juntar os cestos e todos os outros utensílios usados na pesca, e logo procuramos chegar, o mais breve possível, ao local onde tínhamos deixado amarrada a jangada. Estávamos bastante longe do local.

Devíamos caminhar depressa e com maior precaução do que tivemos antes, pois as águas agora cobriam grande parte das pedras, e era difícil manter o equilíbrio sobre elas, dado o jogo de ondas da maré crescente. Conosco, voltava também o jangadeiro, que conhecia bem o local onde tínhamos desembarcado. Saímos como que de um sonho, para, aos poucos, entrarmos num verdadeiro pesadelo. A marcha de volta, que sobre os recifes fazíamos, se realizava com dificuldade crescente. Carregados com os apetrechos da pesca, sobretudo o cesto com os lagostins, enfrentávamos uma situação muito diferente daquela em que nos encontramos em nossa vinda: as pedras, mais do que pensávamos, estavam quase todas levemente cobertas pelas águas da maré. Algumas pontas, entretanto, ainda afloravam; em muitos lugares caminhávamos com os pés já mergulhados e o perigo de escorregar era mais freqüente. Prosseguimos, apesar de tudo, com rapidez, e, quando escorregávamos, tínhamos o cuidado de nos amparar nas pedras mais altas e agudas. As águas do mar, cada vez mais fortes, espadanavam, fazendo mesmo pequenas ressacas, que molhavam a todos nós; íamos, cautelosamente, sobre as pedras alagadas, mantendo acesos os fachos de folhas de bananeiras; restavam, porém, poucos luzeiros desse tipo e, se não alcançássemos em tempo o ponto onde deixamos a jangada, teríamos que ficar no escuro, e enfrentar as trevas daquela noite fechada; de vez em quando, atirávamos na água uma tocha quase inteiramente consumida; acendíamos outra e, aos poucos, chegamos ao ponto onde devíamos ter amarrado a jangada. Digo devíamos ter, porque, no referido local, a situação das pedras, com o crescimento da maré, modificou-se por completo; e a ausência da embarcação em que viéramos nos dava uma incerteza se que era realmente aquele o lugar do nosso desembarque.

Havia dúvida a respeito do local, até que o jangadeiro reconheceu a pedra onde amarrara a jangada, constatando realmente que a mesma se tinha desprendido e devia estar à deriva, perdida na escuridão da noite. O jangadeiro pensava em lançar sobre as pedras o tauaçu, as depois achou que ele não daria uma ancoragem suficiente, e desistira. Aqueles paus flutuantes estariam, agora, à deriva no mar; mas em que direção? A que distância das pedras do recife?

Não se podia saber. Talvez estivesse na direção da praia, talvez se afastando mar adentro. Estávamos perplexos e confusos. E agora, como voltar ao povoado de onde viéramos? Um certo nervosismo se apoderou de nós todos. Ficamos ainda comentando o que tinha acontecido e esquecemos por um momento que a maré subia. A maré subia! De cada vez que a onda vinha, atingia as pedras ainda descobertas num ponto mais alto. De repente, tivemos que fazer as nossas confissões.

Soube então que dois dos que estavam comigo não sabiam nadar; numa atitude nervosa, quase alucinados, eles estavam prevendo um fim desesperado: se a maré, crescendo, chegasse a cobrir totalmente as pedras e, sobre estas, as águas atingissem, como de habitual, a altura de um metro, decerto morreríamos afogados.

Eu e o meu amigo, que sabíamos nadar, ficamos também dominados por uma angústia terrível, que era pensar como íamos deixar ali, sobre as pedras, os dois que não sabiam nadar; e pensar de que maneira poderíamos vencer a nado a distância, agora mais longa, e num mar muito agitado; distância dos recifes até a praia.

E a maré subia! Subia! Ouvíamos a onda bater cada vez mais alta nas pedras, cada vez mais avançava e se arrastava de volta, em curvas caprichosas. A maré subia! Os fachos que ainda nos iluminavam iam, pouco a pouco, acabando. A luz não dava para distinguir cinco metros de noite sobre o mar, e, na área, nada se via que pudesse ser uma jangada. Certamente ela estava bastante afastada dos recifes.

Foi então que o jangadeiro tomou uma resolução: atirar-se à água e procurar a jangada. Não devia estar muito longe, dizia ele. E assim fez; lançou-se na água e começou a nadar; logo perdemo-lo de vista, penetrou na noite escura, marítima. Perguntamos aos berros:

– Jangadeiro! Algum sinal da jangada?

Ouvíamos, vindo da distância escura, a sua resposta:

– Nenhum! A escuridão não me deixa distinguir coisa alguma!

A aflição entre nós prosseguia, ou melhor, subia, como subia a maré, no mesmo compasso da maré, com a mesma ondulação, as mesmas súbitas pancadas. Os amigos que não sabiam nadar começaram a chorar, desolados, perdidos na ausência de tomarem uma decisão. Depois de algum tempo, todos os fachos quase queimados, ficamos à espera de qualquer sinal do jangadeiro; por fim, vimo-lo aproximar-se, nadando, para o local onde estávamos; chegava cansado e desanimado.

– Então? dissemos todos. Já com a água no meio da canela, respondeu:

– Nada! Está muito escuro, é impossível ver dois metros adiante.

Tomei então a deliberação seguinte: disse-lhe que voltasse a nadar em torno daquele ponto onde estávamos, mas agora levaria um facho na mão, um dos que ainda restavam, para melhor iluminar aquelas águas escuras.

E ele voltou a investigar a densa escuridão, agora erguendo numa das mãos um luzeiro; nadando somente com os pés e o braço livre, avançou mar adentro; em breve saiu daquela treva espessa, tornou-se apenas um ponto luminoso que, de repente, desaparecera. Ficamos aflitos. Cada vez mais os que não sabiam nadar não davam pausa ao seu desespero, choravam, gemiam, arrancavam os cabelos. E a maré subia! Subia! Subia; as águas do mar subiam, e os fachos de luz morriam. De repente, ouvimos um grito distante:

– Achei a jangada!

Foi um alívio. Aos lábios de todos voltou um sorriso de alegria, houve um desafogo, até os que choravam criaram novo ânimo, convictos de que o seu terrível dilema tinha cessado. Mas logo, para destruir toda a esperança, veio outro grito:

– Não! Não é; é um tronco boiando.

De novo, e agora mais profunda, a decepção; um desânimo total apoderou-se de todos nós; naquele momento, pensamos e decidimos morrer todos. Nunca deixaríamos ali, abandonados, os que estavam fadados a perder a vida sob as águas de maré cheia; tínhamos determinado.

Faríamos, entretanto, o máximo que pudéssemos. Tentaríamos levá-los, os dois em nossas costas, até a praia, enfrentando aquele mar já encapelado pela crescente ameaça de próximos aguaceiros, procurando vencer a nado a distância até a praia; lutando contra as águas da maré cheia e os açoites do vento cada vez mais constantes e violentos.

As nuvens se espessavam, se escureciam cada vez mais; ameaçava chover dentro em breve. O jangadeiro não dava mais sinal de vida, os feixes de folhas secas de bananeira tinham-se esgotado; e a maré subia, subia sempre. A água cobria agora todas as pedras; estávamos com os pés inteiramente dentro d’água, e em muitos, lugares, também as pernas mergulhadas mais de um palmo. O equilíbrio sobre as pedras tornava-se cada vez mais difícil. Sobre elas, as águas passavam com um movimento vivo e oscilante, numa dança de avanços e recuos, de giros e rodopios, confirmando que a maré continuava subindo.

Já estávamos preparados, na escuridão, para lançarmo-nos ao mar e nadarmos, levando os nossos companheiros em direção à praia, quando uma voz longínqua, quase apagada, falou da noite do mar, como uma revelação misteriosa; como uma voz vinda do além, uma voz distante, vinda do outro lado do mundo, vinda da morte de alguém.

E a voz dizia, ao mesmo tempo que a água subia:

– Achei a jangada! Achei a jangada!

Parecia a voz do jangadeiro, ou a voz de além-túmulo. Estacamos, paramos, a escutar, não acreditando na realidade daquela voz, que parecia uma ressonância, dentro de nós mesmos, da outra que já tínhamos ouvido, pronunciando as mesmas palavras; ou como o canto ilusório de uma sereia:

– Achei a jangada!

Era de fato a jangada que se aproximava: ouvíamos ainda distante, dentro do clamor das ondas, o seu resvalar sobre a superfície do mar. Com um grito de júbilo, todos nós o esperamos no escuro, uma vez que não havia mais um facho para acender: o que o jangadeiro levara consigo, tinha se apagado.

Tirei a minha camisa que estava ainda seca; enrolei-a em torno de um pau que ainda restava, tirei fósforos e com dificuldade consegui inflamá-la, aliás quase depois de gastar todos os fósforos; empenhei-me vivamente nesse trabalho, único meio de indicarmos onde nós estávamos. O pano afinal pegou fogo e se tornou o último archote; dirigida por essa luz, a jangada encontrada chegou enfim até nós; à sua aproximação, atiramo-nos os quatro de bruços sobre os seus paus flutuantes.

Abandonamos tudo: os cestos com lagostins e todos os aparelhos de pesca; o jangadeiro, sem mais nada, impeliu a jangada em direção à praia, com a maré já alta. O céu continuava enfarruscado. De súbito, sobre nós, começou a cair uma chuva intensa e pesada: uma chuva cantante, completa, amargurada.

Fonte:
http://www.joaquimcardozo.com/