segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Antonio Cândido (Literatura e Cultura de 1900 a 1945: panorama para estrangeiro) Parte 2


Na literatura brasileira há dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência: o Romantismo, no século XIX (1836-1870), e o ainda chamado Modernismo, no presente século (1922-1945). Ambos representam fases culminantes de particularismo literário na dialética do local e do cosmopolita; ambos se inspiram, não obstante, no exemplo europeu. Mas, enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirmar contra ela a peculiaridade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal, pura e simplesmente: o diálogo perdera o mordente e não ia além da conversa de salão. Um fato capital se torna deste modo claro na história da nossa cultura; a velha mãe pátria deixara de existir para nós como termo a ser enfrentado e superado. O particularismo se afirma agora contra todo academismo, inclusive o de casa, que se consolidara no primeiro quartel do século XX, quando chegaram ao máximo o amaciamento do diálogo e a consequente atenuação da rebeldia.

Convém assinalar que a literatura brasileira no século XX se divide quase naturalmente em três etapas: a primeira vai de 1900 a 1922, a segunda de 1922 a 1945 e a terceira começa em 1945. A primeira etapa pertence organicamente ao período que se poderia chamar pós-romântico e vai, grosso modo, de 1880 a 1922, enquanto as duas outras integram um período novo, em que ainda vivemos: sob este ponto de vista, o século literário começa para nós com o Modernismo. Para compreendê-lo, é necessário partir de antes, isto é, da fase 1900-1922.

Comparada com a da fase seguinte (1922-1945), a literatura aparece aí essencialmente como literatura de permanência. Conserva e elabora os traços desenvolvidos depois do Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos; e, o que é mais interessante, parece acomodar-se com prazer nesta conservação. Como a fase 1880-1900 tinha sido, em contraposição ao Romantismo, antes de busca de equilíbrio que de ruptura, esta, que a acompanha sem ter o seu vigor, dá quase impressão de estagnar-se. Uma literatura satisfeita, sem angústia formal, sem rebelião nem abismos. Sua única mágoa é não parecer de todo européia; seu esforço mais tenaz é conseguir pela cópia o equilíbrio e a harmonia, ou seja, o academismo.

No romance, o Naturalismo, desprovido da forte convicção determinista que animou um Aluísio Azevedo e um Adolfo Caminha, enlanguesce nas mãos de Emanuel Guimarães, Xavier Marques, Canto e Mello. A écriture artiste e o relevo psicológico de Raul Pompéia são agora a retórica e o amaneiramento de Coelho Neto, que domina esta fase com foros de gênio. Mas o produto típico do momento é o romance ameno, picante, feito com alma de cronista social para distrair e embalar o leitor. Forma-se pela confluência do que há de mais superficial em Machado de Assis, da ironia amena de Anatole France e dos romances franceses do Pós-naturalismo, sentenciosos, repassados de sexualismo frívolo: Paul Bourget, Abel Hermant. Afrânio Peixoto é o representante-padrão desta tríplice tendência, enquanto Léo Vaz se atem aos aspectos mais puramente iruchadianos. Veiga Miranda, Hilário Tácito, Théo Filho, Benjamin Costallat são exemplos, em escala decrescente, do pendor cada vez mais acentuado para a leviandade do tema sexual-humorístico.

O regionalismo, que desde o início do nosso romance constitui uma das principais vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay, transforma-se agora no "conto sertanejo", que alcança voga surpreendente. Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. Esse meio foi o "tonto sertanejo", que tratou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito idéias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético. É a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade de Gornélio Pires, o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou do Coelho Neto de Sertão; é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900 e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no rádio.

A publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha, em 1902, assim como a divulgação dos estudos de etnografia e folclore, contribuiu certamente para esse movimento. Ele falhou na medida em que não soube corresponder ao interesse então multiplicado pelas coisas e os homens do interior do Brasil, que se isolavam no retardamento das culturas rústicas. Caberia ao Modernismo orientá-lo no rumo certo, ao redescobrir a visão de Euclides, que não comporta o pitoresco exótico da literatura sertaneja.

A poesia se apresenta, nessa fase, bastante solidária em espírito ao romance. Ao contrário do Naturalismo, que trouxe a este um vigoroso impulso de análise social, o Parnasianismo pouco trouxera de essencial à nossa poesia, apesar do grande talento de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa ou Vicente de Carvalho. Dera-lhe uma regularidade plástica maior, mas agravara a sua tendência para a retórica, aproximando-a do tipo de expressão prosaica e ornamental. Talvez o que haja de melhor nos parnasianos seja o seu romantismo — e foi justamente o que desapareceu nos epígonos deste século, para deixar em campo as fórmulas e a logomaquia, num academismo rotundo que lembra os neoclássicos da última geração (primeiro quartel do século XIX).

O Simbolismo, projeção final do espírito romântico, constitui desenvolvimento mais original, limitando-se, porém, à obra de Cruz e Sousa (ainda próxima dos parnasianos a despeito de tudo), e à de Alphonsus de Guimaraens, pouco conhecida antes dos nossos dias. Como movimento estético e ideológico, o Simbolismo serviu de núcleo a manifestações espiritualistas, contrapostas ao Naturalismo plástico dos parnasianos. As tendências oriundas do Naturalismo de 1880-1900, tanto na poesia quanto no romance e na crítica, propiciaram na fase 1900-1922 um compromisso da literatura com as formas visíveis, concebidas pelo espírito principalmente como encantamento plástico, euforia verbal, regularidade. É o que se poderia chamar Naturalismo acadêmico, fascinado pelo Classicismo greco-latino já diluído na convenção acadêmica européia, que os escritores procuravam sobrepor às formas rebeldes da vida natural e social do Novo Mundo.

Alma de origem ática e paga
Nascida sob aquele Armamento
Que azulou as divinas epopéias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento

E a serena elegância das idéias — diz no fim dessa fase Raul de Leoni, resumindo toda a ideologia de que se nutriram os seus contemporâneos mais característicos.

Esta busca de elegância mediterrânea — em que se adelgaçou até esgarçar o Naturalismo vigoroso do século anterior, de intenção mais científica do que estética, — contamina a própria exploração dos temas regionais, pelo gênero ambíguo do conto sertanejo.

Em Alphonsus de Guimaraens e Augusto dos Anjos, em Euclides da Cunha e Lima Barreto, poderiam os escritores dessa fase encontrar discordâncias estimulantes para a sua atividade literária. No entanto, ou os deixaram de lado, ou foram buscar neles o que tinham de comum com as limitações de que padeciam: a tenuidade afetiva do primeiro, o desequilíbrio verbal dos outros dois, a ironia superficial do último.
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Em crítica literária, a fase 1880-1900, por suas três principais figuras — Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo, — havia desenvolvido e apurado a tendência principal do nosso pensamento crítico, isto é, o que se poderia chamar a crítica nacionalista, de origem romântica. Como em todos os países empenhados então na independência política, o Romantismo foi no Brasil um vigoroso esforço de afirmação nacional; tanto mais quanto se tratava aqui, também, da construção de uma consciência literária. A nossa crítica, rudimentar antes de Sílvio Romero e do Naturalismo, participou do movimento por meio do "critério de nacionalidade", tomado como elemento fundamental de interpretação e consistindo em definir e avaliar um escritor ou obra por meio do grau maior ou menor com que exprimia a terra e a sociedade brasileira.

Fruto direto da estética romântica, — relativista, ciosa dos fatores históricos, inspirada sobretudo em Madame de Staél e Schlegel, através de Garrett e Ferdinand Denis — ela foi no Brasil um elemento importante de autodefinição e diferenciação, principalmente quando se associou às filosofias naturalistas da segunda metade do século.

Na fase que nos ocupa, esta linha se prolonga sem a coerência e sem a necessidade do século anterior. Não é injusto dizer que, amparando-se nos três mestres e modelos já citados, os críticos se eximiram de aprofundar e renovar pontos de vista. Denotam conformismo e superficialidade, indicando não apenas o esgotamento da crítica nacionalista, mas a incapacidade de orientar-se para rumos mais estéticos e menos científicos, como se esperaria de uma geração inclinada ao diletantismo, o purismo gramatical, o culto da forma. A passagem do historicismo à estética se esboçava na obra de José Veríssimo, o mais literário dos nossos velhos críticos, e nessa fase é tentada pela crítica de inspiração simbolista e idealista, representada sobretudo por Nestor Victor, mas que não chegou a amadurecer e realizar-se. A crítica se acomodara em fórmulas estabelecidas pelos predecessores.

A Pequena história da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho (1919), resume toda a evolução crítica anterior, combinando o arcabouço interpretativo do nacionalismo com um sentimento mais vivo da beleza, devido, porém, menos a um critério estético definido do que à euforia verbal própria do autor. Neste livro e nos ensaios posteriores de Ronald, se encontra a fusão superficial e elegante da crítica brasileira do século anterior, menos a ideologia naturalista, com a inclinação estética dos simbolistas, menos o fervor espiritualista.
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continua...
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

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