sábado, 14 de agosto de 2010

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 2


1— Um grupo virtual

O primeiro agrupamento de escritores eminentes participando de valores comuns, procurando construir uma obra em torno deles e agindo em função de um estímulo recíproco, parece haver-se esboçado no intercâmbio e na produção de Pedro Taques de Almeida Paes Leme, na do seu parente frei Gaspar da Madre de Deus e na de Cláudio Manuel da Costa. Os dois primeiros eram amigos, comunicavam-se nos estudos, valiam-se em mais de um transe. A circunstância que os aproximou do terceiro, nascido em Minas, onde viveu, foi a Academia Brasílica dos Renascidos, da qual foram acadêmicos supranumerários Cláudio e frei Gaspar, e que, da sua sede baiana, deitou laços de congregação sobre outras Capitanias, num primeiro arremedo de consciência literária comum. O paulista e o mineiro talvez nunca se tenham visto, e não restou correspondência escrita de um a outro. Entre ambos, porém, forma elemento de ligação Pedro Taques e, mais ainda, como veremos, o sentimento comum de paulistanismo à busca de expressão intelectual.

Na resposta à comunicação de que fora eleito para os Renascidos, e aceitando a incumbência de escrever a história do Bispado de São Paulo, pondera frei Gaspar: "Se o Sargento-mor Pedro Taques de Almeida Paes, natural daquela cidade e nela morador, fosse nosso sócio, ajudar-me-ia muito, ainda mais que escreveu as Memórias para a História Secular da dita Capitania" etc. O nome do linhagista andou, portanto, nas cogitações da Academia, e decerto teria sido eleito se ela não acabasse tão depressa.

Assim, Cláudio, frei Gaspar e Taques estiveram congregados espiritualmente a certa altura, além de terem mantido, a seguir, um intercâmbio que podemos inferir por vários motivos. No FUNDAMENTO HISTÓRICO do seu poema Vila Rica (terminado depois de 1770), diz Cláudio: "O sargento-mor Pedro Taques de Almeida Paes Leme, natural (…) da cidade de São Paulo, e ali morador, de estimável engenho e de completo merecimento, remeteu ao autor desde aquela cidade todos os documentos que conduziram ao bom discernimento desta obra" etc.

Esta relação é da maior importância, pois estes três homens foram os primeiros a dar expressão intelectual coerente ao sentimento localista dos naturais de São Paulo, e não apenas tiveram consciência disso, mas colaboraram neste sentido em alguns casos.

Antes de entrar em contacto com os outros, Cláudio já se manifestara ufano da tradição paulista em 1759, nos APONTAMENTOS PARA SE UNIR AO CATHALOGO DOS ACADÊMICOS DA ACADEMIA BRAZILICA DOS RENASCIDOS, que Lamego divulgou, e cujo manuscrito se encontra na Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Declinando a filiação, é flagrante a diferença de importância que atribui à linhagem paterna e à linhagem materna:

"Seus avós por parte paterna: Antônio Gonçalves e Antonia Fernandez, moradores que forão no lugar das Arêas, Freguezia de S. Mamede das Talhadas, Bispado de Coimbra. Pela parte materna: O capitão Francisco de Barros Freire e D. Izabel Rodrigues de Alvarenga, moradores que foram na Freguezia de N. S. de Guarapiranga, Comarca do Ribeirão do Carmo, hoje cidade de Marianna, vindos de S. Paulo onde tem a sua ascendência de Famílias mui distinctas".

Esta prosápia o liga a Pedro Taques e a frei Gaspar, e ele a exprime poeticamente no poema épico Vila Rica, sugerido talvez pela epopéia perdida de Diogo Grasson Tinoco em louvor a Fernão Dias. Encarando em conjunto as obras dos três homens, veremos que elas representam a elaboração de um sistema de valores, difusos na sociedade paulista e reforçados tanto pelo conflito com os Emboabas quanto pelo encerramento do ciclo bandeirante. Figuremos essa sociedade limitada na sua expansão geográfica, privada da riqueza efêmera das minas, sangrada de certo modo pela dispersão de muitos dos seus filhos, obrigada a buscar novo amparo na agricultura sedentária. Figuremo-la, ainda, já estruturada por um sistema estável de vilas e freguesias, e, na cidade capital, com certo desenvolvimento da civilização. A consciência heróica do passado, emergindo do sentimento nativista, aparece como recurso de integração; como justificação de uma sociedade em crise de reajustamento das suas atividades. Daí o recurso à história, por meio da qual se cristaliza a tradição, projetando no plano ideológico os valores grupais, que deste modo se organizam.

Este processo se manifesta pela criação de uma consciência de estirpe, na Nobiliarquia, de Pedro Taques; pela definição de uma sequência histórica, nas Memórias, de frei Gaspar; pela transfiguração épica, no Vila Rica, de Cláudio Manuel.

Debruçados sobre o passado da terra, os três homens procuram traçar a sua projeção no tempo, irmanados pelo sentimento de orgulho ancestral e a consciência de dar estilo aos duros trabalhos que plasmaram metade do Brasil. A verdade e a fantasia irmanam-se igualmente no seu labor, e dele sairá a primeira visão intelectual coerente da grande empresa bandeirante.

Contrariando as informações dos jesuítas, e de vários reinóis, acentuam a lealdade, a magnanimidade, a nobreza dos aventureiros de Piratininga, traçando-lhes o perfil convencional que passou à posteridade.

Vê os Pires, Camargos e Pedrosos, Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos, Lemos, Toledos, Pais, Guerras, Furtados, E os outros, que primeiro assinalados Se fizeram no arrojo das conquistas, Ó sempre grandes, ó imortais Paulistas! brada Cláudio Manuel em versos que parecem transpostos da Nobiliarquia; Cláudio, cujo amor tão vivo à sua terra mineira fundava-se na consciência de ser ela devida ao esforço do bandeirismo:

Dos meus Paulistas honrarei a fama.
Eles a fome e sede vão sofrendo,
Rotos e nus os corpos vêm trazendo,
Na enfermidade a cura lhes falece,
E a miséria por tudo se conhece;
Em seu zelo outro espírito não obra
Mais que o amor do seu rei: isto lhes sobra.

Pedro Taques, do seu lado, dourava e redourava linhagens, procurando ajeitar às convenções européias o destino mameluco e americano desse povo errante, guindando os "modestos fidalgotes portugueses companheiros da travessia aventurosa de Martim Afonso de Sousa" (Taunay).

Nesta ordem de idéias, mencionemos a valorização do antepassado vermelho, feita pelos três à maneira do que faziam, para Pernambuco e Bahia, Jaboatão e Borges da Fonseca.

Afirmar o Autor, que da mistura do sangue saiu uma geração perversa, é supor que o sangue dos índios influiu para a maldade, suposição que muito desonra, senão a crença, ao menos o juízo de um sábio católico:

porquanto nem a Divina Graça perde a sua eficácia, nem a natureza se perverte, ou a malícia adquire maiores forças, quando o sangue europeu se ajunta com o brasílico. Pelo contrário, a experiência sempre mostrou, que os indivíduos nascidos desta união, reluzem aquelas belas qualidades, que caracterizam em geral o indígena do Brasil.

Nesta excelente refutação a Charlevoix, frei Gaspar lança as bases de um argumento que será por excelência romântico. Dando um passo a mais, Pedro Taques aristocratiza as Bartiras criadeiras do planalto, promovendo-as a "princesas do sangue brasílico" e fazendo grande cabedal da sua ancestralidade. Cláudio, recorrendo largamente ao índio para o maravilhoso e o romanesco do seu poema, culmina traçando amores ideais entre Garcia Paes e uma silvícola, tão mimosa, Que à vista sua desmaiava a rosa.

Vê-se, pois, que o "paulistanismo" aparece ideologicamente configurado, norteando as obras desses três escritores e nutrindo as suas relações, além de adquirir nelas as tonalidades características, que serviriam para definir a consciência do paulista moderno, e que operariam como poderosa arma de sentimento de classe, de um lado, e assimilação dos forasteiros, de outro.
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continua.... 2 - Um Grupo Real
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006
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