sábado, 21 de agosto de 2010

Fábio Lucas (A Leitura do Crítico)


O poema não se concretiza como um silêncio perante um crítico . No mínimo deseja emocioná-lo, quando não entra em diálogo com ele, seu leitor mais equipado. Anseia por que ele fale após a leitura. Torna-se um apelo.

Cada ficção traz consigo uma rede de eventos, cuja conexão precisa ser decifrada. Repousa por detrás da trama um argumento, talvez o relato do mundo real. Constitui uma provocação ao comentário, exige uma resposta as inumeráveis questões ali adormecidas.

A obra necessita de uma fala, de um eco que a julgue e consagre. O despertar de qualquer peça literária reside na sua leitura. O leitor passivo acorda os apelos mais elementares, se satisfaz com o senso comum mais vulgar, pelo qual se conhecem as pessoas de fácil manobra. Já o leitor ativo não se contenta com os argumentos e as imagens retraçadas pelo autor, ou pelo agente de uma intencionalidade direta, refratária às sutilezas verbais. A cadeia de palavras organizada no texto despertam nele, leitor, as reminiscências de outras informações, captadas de leituras passadas e observações colhidas no comércio com a comunidade em estado de comunicação. Ativa memória da convivência coletiva.

O texto que se apresenta ao leitor ativo de consciência crítica, está mergulhado no grande universo da Cultura, na herança histórica, que compreende gerações e gerações de expectativas colhidas na rede literária.

O crítico é o leitor qualificado que tenta levar aos seus próprios leitores a experiência da leitura armada. Sua escrita se reveste de juízos de valores, numa perspectiva de maior objetividade possível. Reconhece a dificuldade de pesar a emoção despertada mediante a leitura, assim como a aquisição argumentada.

Ademais, durante a leitura, o crítico é levado a suspender temporariamente a noção que tem da realidade. Ou a pactuar com a forma e o sentido que o autor imprimiu à obra, dando a este cabal credibilidade. Quem já leu Invenção de Orfeu de Jorge de Lima e Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa sabe do ajuste mental do leitor ao linguajar do escritor.

Ninguém desconhece que o poeta é capaz de transmitir experiência cujo refinamento e precisão não chegam a ser usuais aos outros meios de comunicação. Isso quer dizer que o poeta emprega uma técnica verbal que exprime intensamente um modo exclusivo e pessoal de sentir. É que ele se mostra tanto interessado nos sentimentos, quanto nas palavras. Emoções, palavras e conceitos são inseparáveis do poeta na construção do seu texto.

Pela glosa ou comentário crítico transformamos o texto em sentido, asseveram os adeptos da hermenêutica literária. A interpretação seria o substrato da experiência da leitura, concedemos ao texto uma interpretação crítica, arte de conferir sentido aos signos identificados na serie literária.
Há, na duração histórica, duas respostas básicas ao estatuto da obra no conjunto literário. A primeira canoniza-a e a torna unidade singular entre os paradigmas representativos que estruturam o paço social.

A obra “clássica” destina-se a realizar a mediação entre ó passado e o presente, na medida em que é portadora de validade nas diferentes épocas em que é lida. Permanece singular na sucessão das expectativas, pois estabelece uma situação dialógica com o publico de cada época. Interessa, portanto, na continuidade movente da experiência literária, mantendo-se intacta diante dos horizontes que não param de mudar.

Se ultrapassa os tempos é porque submeteu-se ao julgamento estéticos de épocas diferentes, desde a inicial até a presente, numa cadeia de recepções que lhe atribuem determinado escalão na hierarquia literária. Sobreviveu desde o efeito inicial até o atual sem decair de significação.

O leitor de hoje seguramente não consegue reviver o efeito da recepção inicial da obra. Teria que transportar para hoje os leitores da edição inicial, conhecer-lhes as motivações da leitura. É desta que se da o verdadeiro nascimento da obra, como ato cognitivo, somente se opera na data da leitura, ou seja, quando a obra se dá à luz do entendimento.

Estamos ainda na resposta canonizadora da obra, aquele que atravessa o tempo da cristalização do efeito das leituras através das gerações. Há, na fase contemporânea, o falso efeito canonizador; o efeito do consumo, sob o jugo do mercado e da publicidade. A moda, no caso, leva à instrumentação da consciência contábil, que aprisiona a consciência ingênua.

O efeito de consumo se compraz em seduzir a demanda desarmada, aquela que vive ao arrepio das solicitações primarias dos espíritos.

Já o efeito seletivo é diferente: une ao conhecimento da obra duas forças: a primeira vem a ser a passagem pela prova do tempo, o que significa guardar a aura que ela carregou nas várias fases de indagações de variadas épocas; a segunda demonstra o reconhecimento da transcendência da obra ao horizonte da vulgaridade. A leitura o leitor aparelhado adiciona a comparação com outras leituras, formado na consciência do seu leitor uma instância de escrutinação valorativa.
Daí decorre a leitura transtextual, já que a obra comumente se remete a outra, cita, alude, parodia, glosa ou, em suma, se intertextualiza.

Passemos, agora, à segunda resposta à leitura crítica: a que investiga a obra como transgressora do paradigma, na sua busca de originalidade expressiva. Como em tudo o que eu constitui promessas de ciência e objetividade no âmbito das Humanidades, temos que determinar a natureza do desvio da norma ou da ruptura com o sistema vigente de valores.

Ora, analisar uma obra intrinsecamente, desgarrada de seu contexto, torna-se impossível sem a remissão às demais obras de que ela se tornou desvio ou exceção. Somente após consulta a um amplo espectro de analogias e de contrastes é que se encontrará o rosto da originalidade, dissonância e excepcionalidade da obra. Somente na ação comparativa é que se determinam os prógonos e os epígonos.

O estilo da época vira uma constante narrativa supra-histórica. O Clássico é, ao mesmo tempo, uma realidade histórica e supra-histórica. O critério de valor (norma) confere à obra sua legitimação histórica e supra-histórica, ou seja, estilística. Algo lhe garante a presença intemporal: contemporânea de qualquer tempo presente. De certa forma, uma das modalidades do ser histórico.

O prógono é o cume de um estilo, possui antecedentes e conseqüentes, precursores e sucessores. Tem a força de propagação e sobrevive às ruínas do tempo. É clássica uma obra porque deve a si mesma a sua significação. Depende ela da negatividade introduzida no seu tempo: ser exceção nos paramos da arte expressividade.

A força estética da obra repousa em três aspectos; unidade, complexidade e intensidade. A obra artística, não raro, apresenta-se como uma peça da totalidade, como o arco de um círculo. A obra pode sugerir ao leitor a sua aliança com uma totalidade aparentemente ausente. Ao mesmo tempo, ela é uma totalidade intensiva, como a concebeu G. Lukacs.

Toda obra e arte, para alcançar o seu mais respeitável e legítimo juízo de valor, tende a responder, na sociedade contemporânea, às seguintes questões: primeiro, às solicitações do publico, cujos critérios de avaliação estão muito próximos das sugestões levantadas da oferta comercial, portanto, da publicidade. Segundo; compor-se de acordo com a internacionalidade do autor, que determina a natureza de sua experiência e, ao mesmo tempo, apresenta-se à opinião, a fim de obter tanto o reconhecimento estético, quanto os meios de subsistência pessoal. O artista aspira a ser um profissional do seu ofício, além, é claro, de satisfazer-se com a necessidade íntima de se comunicar por intermédio da sua obra, já que também atende a uma pulsão comunicativa e desinteressada. A tais objetivos corresponde, por parte do leitor (consumidor) a necessidade de receber informação nova.

Enfim, a obra ideal a que visa o crítico é aquela universal e intemporal, que constituía o bem comum da humanidade e legítimo patrimônio nacional. Há de ter, como vimos, a conjuração dos três aspectos: unidade, complexidade e intensidade.

A obra nasce com a leitura e esta é feita de acordo com determinado horizonte de expectativas. Que horizonte seria esse? Assemelha-se a um conjunto de hipótese compartilhada por uma geração de leitores. Entre o leitor, a obra e o público forma-se uma cumplicidade de informações e valores, de tal sorte que se instaura entre eles verdadeira harmonia com o quadro social.

A apreciação individual do crítico, quando atinge os canais de comunicação com o publico, exerce função didática, estabiliza conceitos e ajuda a fixar padrões de gosto. De forma auxilia a formular a avaliação coletiva e social da obra de arte.

A legitimidade do juízo crítico provém do julgamento da posteridade, quando lhe dá sustento, homologação e reconhecimento, o que pressupõe a objetivização do valor, ainda que de modo empírico. A longo prazo, a boa literatura prima sobre a má, que cai no olvido. O tempo cassa a literatura dos falsos valores, consagra a tradição do novo. Instaura a dinâmica da negatividade. Obras excepcionais refazem o quadro contextual, alteram o gosto e as expectativas.
Escolas e teorias passam e a obra continua sem a resposta cabal dos seus críticos. Ela aparece costumeiramente caucionada a uma verdade. A verdade transitória da época.

Artigo publicado na revista da Academia Paulista de Letras.

Fontes:
Helio Consolaro. Portal Por Tras das Letras.
Imagem = André Lux

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